O MUSEU DA EMÍLIA[1]

PERSONAGENS: Dona Benta, Narizinho, Pedrinho, tia Nastácia,
o Visconde de Sabugosa, Emília, a menina da Capinha Ver-
melha e um lobo, como são imaginados nas "Reinações de
Narizinho" do mesmo autor.

CENÁRIO: Sala de jantar duma modesta casa de fazenda — O
sitio de Dona Benta. Dona Benta está em cena examinando
várias peças de roupa de Pedrinho, amontoadas sobre a
mesa. Há uma cadeira comum, de pernas serradas — cadeira
de velha.


DONA BENTA — Não sei o que Pedrinho faz dos botões. Com
certeza os come. Toda a semana levo consertando a roupa
dele e pregando botões. Olhem só este paletó sem um só
botão e sem bolsos também. Parece incrível! (Toma aquele
paletó e senta-se na cadeira de pernas serradas junto à qual
está a cesta de costura.) Nastácia! (Pausa) Nastácia!...

UMA VOZ DE DENTRO — Já ouvi, Sinhá. Já vou indo. (Nastácia
aparece enxugando as mãos no avental.)

TIA NASTÁCIA — Que é, Sinhá?

DONA BENTA — Onde andam os meninos? Saíram cedo e até
agora nem sinal.

TIA NASTÁCIA — Onde andam!... Por esses mundos a fora,
Sinhá, fazendo quanta estripulia há. Aqueles diabretes são
"capaz" de tudo, Sinhá. Depois que deram comigo na Lua,
e me deixaram lá cozinhando para São Jorge e com aquele
horrivel dragão que me espiava e lambia os beiços com a
lingua de ponta de flecha, eu não acho nada impossível.
Credo! Só de me lembrar disso sinto ainda um arrepio no
corpo...[2]

DONA BENTA — A Emilia foi também?

TIA NASTÁCIA — Se foi! A Emília está virando a Lampeãozinha
do bando, depois que se apanhou dona daquele boi dum
chifre só na testa, o tal ri... ri...

DONA BENTA — Rinoceronte.

TIA NASTÁCIA — Se foi! A Emilia está virando a Lampiãozinha
intima do tal "rinoceronte", está que está uma rainha, de
tão mandona. Diz cada desaforo para mim, Sinhá que só
vendo. Me destrata de "anarfabeta" è "inguinorante" para
baixo, a pestinha, como se não fosse eu que fizesse ela.

DONA BENTA — Que a fizesse, Nastácia. Olhe a gramática.

TIA NASTÁCIA(suspirando) — Inda mais essa agora, a tal gra-
mática, como se não fosse pouca a minha trabalheira na
cozinha, com o raio do ri... "rinoceronte" no quintal me
espiando o tempo inteiro, tal qual o dragão. Eu é porque...

DONA BENTA — Espere: Que horas são?

TIA NASTÁCIA(Que tinha vista curta, trepa a uma cadeira para
ver as horas no relógio de parede.) — Quatro e meia, quase
horas de jantar. Sinhá não se assuste, que a cambadinha
não tarda ai. Garanto. Quando a fome aperta, vêm todos
ventando, nem que seja da Lua. Nesses países encantados
onde costumam passear — ou aventurar, como eles dizem
— parece que há de tudo — fadas, príncipes que viram ursos,
castelos de ouro e marfim, tudo, menos comida.

DONA BENTA — E que está fazendo para o jantar?

TIA NASTÁCIA — Sopa de batata, salada, salsa, galinha enso-
pada...

DONA BENTA — Que galinha matou?

TIA NASTÁCIA — Aquela franga sura de seis dedos no pé direito.

DONA BENTA(Recordando-se.) Essa franga parece
que era da Emília, não? Ouvi aí um negócio entre a Emília
e Narizinho a propósito dessa sura.

TIA NASTÁCIA — Eu sei, Sinhá. A franga era de Narizinho, mas
Narizinho vendeu o pé da franga para a Emília e me deu o
resto, de modos que matei a franga e guardei o pé de seis
dedos para a Emília, que anda agora com mania de fazer
um museu de coisas esquisitas. Tem cada uma . . .

Barulhada no terreiro vem interromper a conversa. É o bandinho que chega. Entram Narizinho, Pedrinho, Emília e o Visconde, atropelada-
mente.

NARIZINHO — Bom dia, ou boa tarde, vovó. (Corre a beijar a
mão da velha; Pedrinho faz o mesmo.)

DONA BENTA — Então? Por onde andaram?

NARIZINHO e PEDRINHO(Ao mesmo tempo em atropelo, um
dizendo uma frase e outro outra.) — Nem queira saber, vovó!
Tivemos uma aventura das mais perigosas. Na floresta
dos Tucanos Amarelos. Sim, lá perto da casa da menina
da Capinha Vermelha. Ela não estava em casa.

DONA BENTA(Levando as mãos aos ouvidos.) — Parem!
Vocês me deixam tonta, tonta. Cada um fale por sua vez.
Vamos, comece, Narizinho.

EMÍLIA(Que está a um canto mostrando qualquer coisa ao Vis-
conde.) — Não seja bobo! Eu sei o que faço. (E começa
a cochichar-lhe ao ouvido.)

NARIZINHO — Pois é isso, vovó. Fomos parar bem perto da casa
da Capinha Vermelha. Mas sabe quem encontramos? O
lobo! Aquele horrível lobo que comeu a avó dela! ...

TIA NASTÁCIA(Que já se ia retirando para a cozinha, entre-
para ao ouvir a palavra "lobo" e persigna-se, murmurando:
"Credo!")

NARIZINHO(Continuando.) E sabe o que a Emília fez? De-
safiou o lobo! "Vá lá no sítio comer Dona Benta para ver
o que acontece, seu cara de coruja seca!", disse ela bem no
focinho dele, imagine! Eu, Pedrinho e o Visconde, assim
que vimos o lobo, não quisemos saber de história e trepamos
a uma árvore bem alta. Ele estava com cara de fome velha.
Mas Emília nem se mexeu. Plantou-se diante dele com as
mãozinhas na cintura, a dizer os maiores desaforos que um
lobo ainda ouviu. Até de analfabeto o xingou.

DONA BENTA(Para a Emília.) — Emília, como é que você
faz isso? Nunca devemos ofender os passantes, e principal-
mente um passante perigoso como esse lobo. Por vingança
ele é bem capaz de vir rondar aqui a casa e no mínimo me
apanhar umas galinhas.

EMÍLIA — Pois que venha, é isso mesmo que eu quero. Provo-
quei-o de propósito e já botei o rinoceronte de guarda
na porteira, de chifre armado. Assim que o lobo aparecer
com aquele focinhão e começar a farejar o ar para ver se
tem avó de menina aqui dentro ...

DONA BENTA — Que história é essa de avó de menina?

EMÍLIA — Esse lobo só se alimenta de avós de meninas. Comeu
a avó de Capinha e gostou do petisco.

DONA BENTA — Que bobagem, Emília! Você bem sabe que o
lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas
por um lenhador.

EMÍLIA — O lenhador não o matou bem matado e o lobo reviveu
outra vez com mais fome de velha ainda. Cheguei bem per-
tinho e vi no corpo dele os sinais das machadadas.

PEDRINHO — Não perca tempo com essa boba, vovó. Ela não
viu sinal nenhum. Era um lobo à-toa, como outro qualquer,
Pergunte ao Visconde.

VISCONDE — Na minha opinião... (Emilia finca as mãos na cin-
tura e encara o Visconde com tais olhos que ele treme e diz
justamente o contrário do que ia dizendo.) ... esse lobo era
exatamente o mesmo que comeu a avó de Capinha. (Emília
vitoriosa põe a língua para Pedrinho — Ahn!)

Barulho fora. Alguém bate com aflição na porta. "Abram!" Pedrinho corre a abrir, mas primeiro espia quem é pelo buraco da fechadura. "Uma menina!" exclamou. Abre a porta. Aparece a menina da Capinha Vermelha.

CAPINHA(Entra de impeto e fecha a porta, ficando a escorá-la,
enquanto volta-se para os demais, de olhos arregalados.)

O lobo! O lobo que comeu vovó!...

Grande pânico. Dona Benta abana-se com o paletó de Pedrinho: está com as pernas tão moles que não pode erguer-se da cadeira. O Visconde trepa em cima da mesa, tira dum prego o binóculo de Dona Benta e põe-se a espiar o terreiro pelo vão da janela.

VISCONDE — Não vejo lobo nenhum. Foi rebate falso. Espe-
rem ... Estou vendo sim, lá longe, uma coisa. Parece o
cachorro do compadre Teodorico. Muito longe. Um quilô-
metro daqui.

{{bloco centro|width=80em|EMÍLIA — O Visconde é um idiota. Não sabe ver lobo. (Corre
para ele e toma-lhe o binóculo e olha.) É lobo, sim. Cachorro
do compadre Teodorico o nariz dele. Lobíssimo! Com dois
{{gap}olhos que são duas tochas. E dentes arreganhados. Vem
babando de fome. Já percebeu que aqui há avó de menina.
Pedrinho, feche Dona Benta dentro do guarda-comida!}}

DONA BENTA — Nossa Senhora da Aparecida! Essa criançada
me acaba pondo maluca. Não há mais sossego neste sítio.
Cada dia uma coisa — ou é rinoceronte, ou é dragão de São
Jorge ou é lobo... (Abana-se aflita.)

CAPINHA — Chamem o homem do machado!

NARIZINHO — Nesta casa o único homem é Pedrinho, que só
usa bodoque.

CAPINHA — Então não sei como vai ser, porque, sem homem
com machado não há meio de vencer esse lobo.

EMÍLIA(Sempre a observar pelo binóculo.) — Lá vem vindo
ele! Vem lambendo os beiços. Já farejou duas velhas aqui
dentro. É exatamente o mesmo que comeu a avó da Capi-
nha. Estou vendo as cicatrizes das machadadas e até estou
vendo um pedaço de machado que ficou na testa dele...

DONA BENTA — Que olhos a Emília tem!

EMÍLIA(Continuando.) — Já passou a porteira... Está no
terreiro. Vem vindo, vem vindo... Parou para farejar
o mastro de São João. Vai comer o mastro!...

DONA BENTA(Consigo.) — Será possível?

EMÍLIA(Continuando.) — Não comeou o mastro, não. Vem
vindo para a varanda. Chegou. (Pula da mesa e tranca a
janela.)

Todos se agitam, menos Dona Benta, que não consegue despegar-se da cadeira, embora o tente. Pedrinho empurra um móvel para escorar a porta. "Ajuda, garotada, que o negócio é sério". Emília ajuda, levando a vassoura para fazer peso na porta. Narizinho reflete, de mão no queixo. Nisto ouve-se um arranhar de tábua. É o lobo arranhando a porta.

EMÍLIA — Pronto! Está aí ele arranhando a porta e quero ver
agora como vocês se arranjam. (Para Dona Benta.) E a
senhora que é tão sabida, de tantos livros e dicionários que
leu, quero ver como se salva. Veja no seu dicionário, que
ensina tudo quanto se quer, se ensina jeitos de espantar lobo,
Eu não preciso ir ao dicionário. Sei um jeito que é tiro e
queda.

NARIZINHO — Então diga logo. Tenha dó da aflição de vovó.

PEDRINHO(Fazendo muxoxo.) — Não dou um vintém pelo
tal jeito.

EMÍLIA(Muito lampeira.) — Só direi se Narizinho me der
uma coisa...

NARIZINHO — Já sei. Quer que eu dê a minha coleção de po-
tinhos de barro para você botar no museu, não é? Dou,
sim, diga o jeito agora.

EMÍLIA(Mais lampeira ainda.) — Todos são testemunhas de
que Narizinho me deu os potinhos, não é assim? Muito
que bem. Nesse caso direi que meu rinoceronte já está avisado
de tudo e logo que eu der um assobio ele investe contra o
lobo e o espeta, bem espetado, no seu chifre pontudo.

DONA BENTA — Pois dê logo esse assobio, Emília, e não nos ator-
mente mais. Não seja tão mazinha.

EMÍLIA — Esperem. Para dar o assobio eu quero que Pedrinho
me dê aquele...

PEDRINHO — O cavalinho sem rabo, não é? Pois não dou. Não
tenho medo de lobos. Você é uma cigana, mas comigo não
tira farinha.

O lobo arranha com mais força a porta e dá uns roncos terríveis, pondo-se em seguida a uivar. Pedrinho amedrontou-se.

PEDRINHO — Isto é, só dou se vovó mandar. Por mim não dou
— mas se vovó mandar é outra coisa ...

DONA BENTA — (Sempre aflita.) — Dê, Pedrinho. Dê tudo quanto
ela quiser. A Emília já tomou conta desta casa ...

EMÍLIA(Vitoriosa.) — E o Visconde também tem que me dar ...
É uma tristeza isto de fidalgos arruinados. Eles nunca têm
nada para dar. Só a cartolinha — que é tudo quanto o Vis-
conde possui ...

NARIZINHO — Ande, Emília! Chega de amolar. Assobie logo.
Tenha dó de vovó, coitada.

O lobo atira-se contra a porta. Ouve-se um estalo de madeira rachada. Emilia assusta-se e leva dois dedos à boca. Assobia. Há uma pausa. Todos ficam à escuta do que se passa lá fora. Emilia assobia de novo. Nada acontece lá fora e o lobo continua a despedaçar a porta. Emilia assobia pela terceira vez.

EMÍLIA — Que será que aconteceu?

NARIZINHO — Com certeza o rinoceronte ficou surdo com a chuva
desta noite.

PEDRINHO(Zombeteiro.) — Fiem-se numa boneca ...

CAPINHA — Não ficou surdo, não. O que ele está é dormindo.
Quando vim para cá encontrei-o atravessado na porteira,
roncando. Até pulei por cima, sem medo nenhum. Juro
que está dormindo ainda.

EMÍLIA(Embaraçada.) — Com essa não contei. Dormindo,
ladrão. Nesse caso temos de acordá-lo. Mas como?

PEDRINHO — Se ele não tivesse o couro tão duro eu o acordava
com uns pelotaços de bodoque no focinho. Mas pelotada
de bodoque em couro de rinoceronte é o mesmo que beijo
de mosquito.

Tia Nastácia, que está fora de cena desde o começo, entra da cozinha com uma colher de pau na mão. Não sabe nada do que se passa.

TIA NASTÁCIA — Que barulhada é essa, gente? Sosseguem, que é
hora de arrumar a mesa.

DONA BENTA — É o lobo, Nastácia!

TIA NASTÁCIA — Que lobo, Sinhá? Mecê parece que está ca-
ducando. Onde já se viu lobo a estas horas por aqui? Lobo
nada. Os meninos estão empulhando mecê. (Percebe a pre-
sença de Capinha.) Ué? A menina da Capinha Vermelha
por aqui! Que novidade é essa?

CAPINHA — O lobo que comeu vovó me perseguiu na floresta
e corri a esconder-me aqui. Está na porta, arranhando
despedaçando as tábuas.

O lobo dá um uivo prolongado e arranha as tábuas com mais fúria. Tia Nastácia compreende tudo e põe-se a tremer de medo. A colher de pau cai da sua mão.

TIA NASTÁCIA — Credo! Figa, rabudo! É o lobo mesmo. E
agora, Sinhá, que vai ser de nós?

DONA BENTA — Emília foi quem arranjou isso e tinha combi-
nado a defesa com o rinoceronte. Era só dar um assobio
que ele avançava com o chifre contra o lobo e o varava de
lado a lado. Mas já assobiou três vezes e nada. Diz Capinha
que ele está ferrado no sono, lá na porteira. Estamos pen-
sando num jeito de acordá-lo.

TIA NASTÁCIA — Pois é mandar o Visconde fazer esse serviço.
Para que serve um Visconde tão importante em casa senão
para esses serviços perigosos? (Voltando-se para o Visconde.)
Ande, Visconde! Vá lá na carreira e acorde o ri. . . o "ri-
noceronte". Mexa-se.

CAPINHA — E se o lobo comer o Visconde?

TIA NASTÁCIA — Não come nada, menina. O Visconde é de sa-
bugo e os lobos são "carnivo".

DONA BENTA — Bela idéia! Vá, Visconde. Vá numa carreira
acordar o rinoceronte.

CAPINHA(Sempre com dó do Visconde.) — O lobo pode não
comer o Visconde mas é bem capaz de espedaçá-lo. Não
existe lobo mais malvado que esse.

TIA NASTÁCIA — Não se incomode, menina. O Visconde é de
sabugo e foi feito por estas mãos aqui. Se levar a breca faço
outro ainda mais bonito hoje mesmo. Vamos, seu Vis-
conde. Que está esperando? Pule. Salve a família.

O Visconde prepara-se para sair, mas antes disso vai espiar o terreiro e vê a vaca mocha de Dona Benta mascando umas palhas ali por perto.

VISCONDE(Apavorado.) Não posso ir. Ela está no ca-
minho!...

NARIZINHO — Que ela é essa, medroso?

VISCONDE — A vaca mocha! De lobo, de dragão, de rinoceronte
eu não tenho medo, mas de vaca tenho e hei de ter sempre.
Foi a mocha quem comeu meu pai e minha mãe e todos os
meus irmãos e parentes. Essa peste de vaca não perdoa a
um só sabugo. Assim que vê um colhe-o com aquele linguão
vermelho e o vai mascando com a maior sem-cerimônia.
Não vou, não vou e não vou.

O lobo continua a uivar e arranhar a porta. Dá um grande urro. Capinha, muito pálida, vacila.

NARIZINHO — Acudam Capinha está desmaiando!...

Pedrinho corre para Capinha e a sustenta nos braços. Leva-a para o colo de Dona Benta. Depois corre ao bodoque e, de cima da mesa, através do vão da janela, prega umas pelotas na vaca. A vaca foge para o pasto.

PEDRINHO — Para a mocha, bodoque! "Zum!" Acertei uma na
anca. "Zum!" Outra na orelha. Lá vai ela fugindo. "Zum!"
Mais uma na teta. Esta valeu! Pronto, Visconde! O caminho
está desimpedido.

O Visconde sai, ajudado pelo menino.

{{bloco centro|width=80em|PEDRINHO(Sempre a espiar.) — Lá vai ele com muito medo,
a olhar de todos os lados. É o eterno medo que o Visconde
sempre teve da vaca mocha, porque ele é sabugo e vaca não
perdoa sabugos. Come mesmo. Agora fez um rodeio para
não passar perto do galo. Medo que o galo coma os três

grãos de milho que ele ainda conserva no peito. Chegou...
Está berrando no ouvido de Quindim... Mas Quindim
não dá pela coisa. O Visconde berra inutilmente. Mudou
de lugar. Foi berrar no outro ouvido. Nada! Agora está
sapateando em cima de Quindim, mas não há meio. Quin-
dim não acorda.}}

NARIZINHO(Torcendo as mãos.) — Nossa Senhora! Que será
de nós!

PEDRINHO(Sempre a espiar.) — A vaca aparece lá, longe e
o Visconde disparou. Vem vindo na volada. Tropeçou
numa casca. Vem chegando. (O menino recolhe-o.) E
então, senhor mensageiro?

VISCONDE(Enxugando o rosto suado com as palhas do pescoço.)
— Impossível acordar aquele dorminhoco. Parece que mor-
reu. Fiz tudo. Berrei-lhe no ouvido. Sapateei em cima.
Nada. Não acorda.

EMÍLIA — É um estafermo este Senhor Visconde! Não presta
nem para acordar rinoceronte.

O lobo solta novo uivo de cólera e arranca mais uma tábua da porta. Enfia pelo buraco o seu horrível focinho.

TIA NASTÁCIA — Nossa Senhora! É lobo mesmo, do "legite"!

DONA BENTA(Prestes a desmaiar também, pendendo a cabeça
para o encosto da cadeira.) — Legítimo, Nastácia...

PEDRINHO e NARIZINHO(Pulando da mesa para o chão.) — E
agora?

Emilia corre à cozinha e volta com o vidro de pimenta em pó. Trepa à mesa e salta para fora, dizendo antes de pular:

EMÍLIA — Esperem que eu arranjo tudo. Quero ver se o sono
do Quindim resiste a esta pimenta. Vou mostrar ao sarambé
do Visconde como é que se acorda rinoceronte.

Pedrinho volta ao seu posto de observação em cima da mesa. Tia Nastácia faz cruzes no peito e reza em voz baixa. Narizinho vai para junto de Dona Benta, que ainda tem ao colo a menina da Capinha Vermelha.

PEDRINHO — Lá vai a sirigaita muito lampeira com o vidro de
pimenta. Pimenta precisa ela. Vai correndo sem olhar para
trás. Chegou junto ao rinoceronte. Está abrindo o vidro
de pimenta. Abriu. Despejou-o quase inteiro nos olhos
do pobre animal. Malvada! O rinoceronte fez uma careta.
Sacudiu a cabeça. Ergueu-se. Emília o está descompondo
de cachorro para baixo, como se ele tivesse culpa de dormir,
com um sol quente destes. Agora ela está apontando para
o lobo — está atiçando Quindim contra o lobo...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Esta comédia foi escrita por Monteiro Lobato, especialmente para ser representada na Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo, a 8 de janeiro de 1938.
  2. Viagem ao Céu.