Assim se passaram uns quinze dias, durante os quais o espírito de Paulina se agitava na mais cruel ansiedade entre a esperança e o desalento.

Entretanto Eduardo, mais vigoroso e quase completa­mente restabelecido, tinha-se já levantado do leito, em que jazera por tantos dias, e ensaiava alguns passeios em derredor de casa, pelos currais, pelo pomar e pelos campos vizinhos.

Estava uma linda tarde, vaporenta e melancólica, como só as há naquelas descampadas e formosas regiões uberaben­ses. Como era tempo da queima dos campos, a fumaça das queimadas embaciando os horizontes dava-lhes formas e coloridos vagos e fantásticos. O ar estava morno, imóvel e embal­samado. Em frente da casa se desenrolava mágico e sublime o panorama das solidões sem-fim numa sucessão interminável de plainos, florestas, colinas e espigões, cujas formas iam mor­rer indecisas ao longe engolfadas nas ondas de um vapor dourado. O arpejo tão lânguido, tão cadenciado do sabiá harmo­nizava-se docemente com aquele místico e voluptuoso remanso, que envolvia toda a natureza. Também cantava ao longe o boiadeiro que vinha tocando as manadas para os currais, e o chiado monótono dos carros, que cortavam os chapadões carre­gados de fartas colheitas.

Em um ângulo do vasto curral que ficava na frente da casa, havia uma dessas gameleiras colossais, como as há em quase todos os currais das fazendas daquele sertão, e que podem abrigar debaixo de sua gigantesca cúpula uma nume­rosa manada de gado, de tronco nodoso e cheio de fendas e cavidades, em qualquer das quais um homem se abrigaria comodamente do mais violento temporal. Servem ao mesmo tempo de aprisco para o gado, e de coberta, onde se guardam carros, cangas e mais arreios de carreação.

Recostado sobre a mesa de um carro, que se achava à sombra da gameleira, achava-se Eduardo tomando o fresco, e espairecendo as vistas pela elevadora perspectiva que tinha diante dos olhos; sem dúvida cismava saudades de sua terra, de sua mãe, e da sua querida Lucinda. O velho fazendeiro achava-se também encostado ao peitoril da varanda, armado de um bom par de óculos, lendo um grosso e velho alfarrábio. Não havia muito tempo que Eduardo se achava ali entregue a seus pensamentos, quando Paulina descendo ligeiramente a pequena escada de pedra que vinha dar ao curral, trouxe-lhe uma cesta de laranjas, e lhas ofereceu com um encantador sorriso e expressões cheias de amabilidade. Como seu pai se achava ali à vista entendeu que nenhum mal ia à sua honestidade e recato em conversar a sós com Eduardo alguns mo­mentos. Há muito que suspirava por uma ocasião de entreter-se com ele sem testemunhas, e procurar devassar-lhe, se possível fosse, os segredos do coração, e por isso aproveitou-se com sofreguidão daquela primeira oportunidade que se lhe oferecia, e vencendo a custo o natural pudor e acanhamento, encetou timidamente uma conversação cuja direção já tinha ideado.

O primo Roberto, porém, que sempre desconfiado e ardendo em zelos não perdia um só passo de Paulina e Eduar­do, já de uma janela os estava observando, e não podia supor­tar com paciência aquele espetáculo, que o torturava. Interrom­per e perturbar a todo transe e de qualquer modo que fosse, aquilo que a seus olhos era uma entrevista despejada e escan­dalosa, foi logo o seu pensamento. Intrometerse bruscamente de permeio na conversação seria uma grosseria, que iria ma­goar sua prima, a quem ao lado do muito amor tinha ele muito respeito ou antes muito medo.

– Com mil diabos! exclamava Roberto trincando os dentes e arrancando os cabelos. – Lá estão a conversar sozi­nhos! o que estarão cochichando aquelas duas almas! eu dera a vida por ouvir tudo!... aquela prima jurou de me estraça­lhar o coração. Doidinha!... às barbas de seu pai, e à minha vista, estar a cochichar com um estranho!... e continuam!... não sei onde estou que... e como se estão derretendo um com outro! oh! não! isto é demais... não consinto.

Entretanto aquele silêncio e serenidade, que ainda há pouco reinava em torno daquela pacífica habitação, tinha-se convertido em tumulto e algazarra infernal. O gado que che­gava do campo e entrava de tropel pela porteira do curral, atordoava o ar com seus mugidos; não menos atordoadora era a gritaria dos campeiros, que o tocavam. Os negros que vinham do trabalho e se recolhiam às senzalas ou conversando ou cantando em voz baixa ao toque da marimba faziam um zum­bido semelhante ao das abelhas, quando se recolhem ao col­meal. Não menos gritava o patrão lá de sua varanda inter­rompendo a espaços sua leitura para ralhar e dar ordens a seus campeiros e escravos. Enfim o chiado dos carros, que se avizinhavam carregados de cana para o engenho, acabava de azoinar todos os ouvidos com aquele zunido agudo, inces­sante, desesperador, que nos martiriza e quase arromba os tímpanos, som de uma intensidade e aspereza tal, que não há no dicionário palavra assaz expressiva para significá-lo.

Enquanto se dava toda aquela barafunda e vozeria, Ro­berto desceu aos pinotes para o curral boleando em torno da cabeça um comprido laço. Aquela tropelada tinha-lhe sugerido um expediente, que de pronto tratou de pôr em execução para atrapalhar a conversa dos dois jovens.

– Olá, prima! – bradou ele de longe para Paulina com voz atordoadora e sempre boleando o seu laço. – Olhe cá; quer ver como se laça e se dá um tombo de rachar em qual­quer destes boizinhos? – Matias! – gritou ele para um dos campeiros, toca para cá aquele boi laranjo, espanta-o bem, de modo que venha bem disparado.

O rapaz espantou o boi, que correndo à disparada passou a algumas braças de distância por diante de Roberto; este atirou-lhe o laço, que caiu-lhe direito sobre os chifres. O moço segurou a extremidade do laço sobre o quadril, estacou, fez finca-pé, e de um safanão fez tombar de costas o mísero animal.

Conhece, boizinho! – bradou Roberto, e correndo para o boi sem dar-lhe tempo de levantar-se agarrou-lhe nas pontas, cravou-as no chão, e sentou-se sobre o boi, que ficou subju­gado e sem poder mexer-se do lugar.

– Está vendo, prima, como se escorna um boi!... Agora vou pealar aquele garrote pintado, que ali está me fazendo fosquinhas. Quer que peale pelas mãos ou pelos pés? hem, prima?... toca esse boizinho, Matias.

O escravo espantou o novilho, que saiu aos corcovos. Roberto boleou o laço e apanhou-o pelas patas dianteiras, dando ao pobre animal um horrível tombo, que o fez revirar pelos ares de cambotas, e estourar no meio do curral de um modo lastimoso.

– Olá, senhor Roberto!... gritou da varanda o velho com voz áspera;

– Que brincadeiras são essas! Vosmecê dessa maneira vai a me dar cabo de quanta rês tenho no curral.

– Não tenha susto, meu tio; queria somente desabusar este novilho; este diabo está muito arisco; precisa levar todos os dias uma boa esfrega; senão tão cedo não serve para o carro.

– Não duvido, meu sobrinho; mas não é quebrandolhe as costelas nesse chão duro, que virá a servir. Por favor mode­re essas esfregas, que são mais de matar, que de amansar.

– Não tenha cuidado, meu tio; estou muito acostuma­do a lidar com este bicho... Viu, minha prima, como se joga um pealo bem jogado?

O amalucado rapaz vingava-se assim nos pobres bois da raiva, com que estava contra Paulina e Eduardo, e enquanto assim desabafava procurando atrapalhá-los escutemos a curta conversação, que tiveram à sombra da gameleira, conversação a cada passo interrompida pelos gritos e algazarras do ataba­lhoado primo. Foi Paulina quem a encetou pelo seguinte modo:

– Como lhe vi aqui tão sozinho e tão triste, sr. Eduardo, tomei a liberdade de vir trazer-lhe estas laranjas para se refrescar e também se distrair com elas. Bem vejo, que é fraca distração, mas ao menos enquanto as descasca....

Ora, d. Paulina!... um presente de suas mãos seria bastante para acabar com toda a minha tristeza, no caso que eu tivesse tristeza no coração. Acha então a senhora, que ando triste?

– Muito, e cada vez vai-se tornando mais triste, e não é de hoje que reparo isso.

– Deveras, minha senhora?... pode ser, e nesse caso será já o efeito da saudade, que hei de levar deste belo sítio, e das pessoas, que nele moram.

Este princípio não estava mau, e Paulina a estas últimas palavras do mancebo sentiu ameigar-se-lhe o coração ao sopro de uma aura de esperança.

– Não parece, – replicou Paulina; o que pelo contrá­rio me parece certo, é que as saudades que tem da sua terra, não lhe dão muito tempo para pensar em nós.

– Oh! perdão, d. Paulina; a senhora me faz grande injus­tiça: não sou ingrato a tal ponto, que as saudades dos meus e da minha terra me risquem da memória pessoas, a quem devo tantas finezas, e as quais sempre trarei gravadas no coração. Lembro-me na verdade sempre e com muita saudade de minha bela Franca; tenho lá minha mãe, parentes, amigos, e...

Eduardo interrompeu-se e suspirou.

– E mais alguma coisa, não é assim? atalhou Paulina esforçando-se por sorrir, porém com o coração num susto, numa ansiedade como quem espera a sentença, que vai decidir de todo o seu futuro.

– Sim, senhora; e mais alguém, – respondeu Eduardo com acento melancólico, – para que hei de eu negá-lo, e sempre que olho para a senhora, me lembro de uma moça que lá conheço.

– Então parece-se comigo?

– Alguma coisa... ao menos na formosura. Linda como ela, só a senhora e mais ninguém.

– Que lisonja! murmurou Paulina, que cada vez se tor­nava mais pálida e estava branca como papel.

– Lisonja não, senhora. Eu pensava, que não seria possível encontrar no mundo criatura tão bela como Lucinda; depois que vi a senhora, desenganei-me, e falo sinceramente e com o coração nas mãos, se não quisesse tanto bem a Lucinda, teria impreterivelmente de amar a senhora...

– Quem sabe!... disse automaticamente Paulina, des­concertada, trêmula e sem já saber o que dizia. – Então o senhor quer muito bem a essa moça?

– Muito! muito! – disse Eduardo com exaltação e sem reparar na crescente perturbação de Paulina. Amo-a sincera e ardentemente, e nunca, nunca hei de deixar de amá-la.

– Feliz mulher!... mas dizem que os moços todos são tão inconstantes...

– Pode ser... mas eu... eu nunca serei infiel... porém d.Paulina!... que tem?.. está tão pálida e trêmula! Meu Deus! está sofrendo alguma coisa?...

– Não é nada; replicou Paulina esforçando-se por mostrar-se tranqüila; – quando o sol entra, este sereno da tarde sempre me faz calafrios. É bom que me recolha. Boa-noite, sr. Eduardo.

Roberto, que com suas algazarras e proezas com os bois nada tinha conseguido no intuito de perturbar o colóquio de Eduardo e Paulina largara o laço, e saindo sem ser notado para fora do curral, e cozendo-se com a cerca do mesmo viera sutilmente postar-se junto deles, de modo que sem ser visto podia otimamente espreitá-los e escutá-los. Chegou justa­mente a tempo de ouvir clara e distintamente aquelas palavras de Eduardo – Amo-a muito; amo-a sincera e ardentemente, e nunca, nunca hei de deixar de amá-la. – Supõe para logo que eram dirigidas a sua prima, e não quis ouvir mais. Desta vez não pôde conter-se, rangeu os dentes enfurecido, e sem atender a consideração alguma puxou pela faca, que sempre trazia à cinta, e ágil como um gato saltou de um pulo para dentro do curral.

Exatamente no instante, em que Roberto de faca em punho saltava a cerca e avançava furibundo para os dois, um troço de gado, que os campeiros estouvadamente escaramuçavam pelo curral, entrava atropeladamente por baixo da gameleira e amea­çava envolver em seu turbilhão a pobre Paulina no momento em que tendo-se despedido de Eduardo se ia retirando. Ro­berto vendo o iminente perigo que corria sua prima, esqueceu-se de sua cólera, e em vez de avançar para Eduardo, correu a acudi-la. Assim por um estranho capricho do acaso, que também parecia zombar do infeliz rapaz, achou este mudado o seu papel no momento em que entrava em cena, e forçoso lhe foi aceitar a mudança. Em dois saltos colocou-se junto a Paulina, e protegendo-a com o corpo, e a pontapés esparro­dava para um lado e para outro o gado, que corria de tropel para o lado dela. Eduardo também, apesar de sua fraqueza, lançando mão de um ferro, que arrancou do carro, saltara para junto de Paulina. Afugentado que foi o gado, e passado aquele incidente, Roberto achou-se em presença de sua prima e de Eduardo na mais estranha e esquerda situação, que imagi­nar-se pode. Estes de sua parte nem por sombra podiam des­confiar qual tinha sido a sua primeira e sinistra intenção, pois que na triste disposição de espírito em que se achavam, nem tinham visto donde ele surgira, e estavam na persuasão que ele ali se apresentara no único intuito de acudir a Paulina. Esta com voz trêmula e com um sorriso forçado, lhe rendia os devidos agradecimentos.

– Deus lhe pague, meu primo; o senhor é um valente; se não fosse o senhor, esses malditos bois me teriam esma­gado... ah! meu Deus! – acrescentou lançando a Eduardo um rápido olhar – que dia aziago este de hoje!

Roberto desconcertado, com os olhos baixos e como que corrido nada respondia a sua prima, e não sabia o que devia dizer, nem fazer. O infeliz até mesmo em seus furores sofria os mais estranhos e cruéis desencantamentos.

– Que é lá isso, senhores? – gritou da varanda o pai de Paulina, que observara aquele alvoroto. – Menina, o que andas fazendo no meio desse curral cheio de gado bravo e espantadiço? Sr. Eduardo, recolha-se também; olhe que este sereno não lhe pode fazer bem.

Roberto entendeu, que devia escoltar sua prima, e condu­ziu-a para casa. Eduardo acompanhou-os e deixou-se ficar na varanda, enquanto Paulina retirando-se para seu aposento foi devorar em segredo sua angústia e desesperação, e ensopou de lágrimas o travesseiro, por não ter um seio amigo em que pudesse derramá-las.

Tinha no coração amarguras a transbordar, e as lágrimas que chorava, lágrimas de fel e fogo, não podiam aliviá-lo. Era desgraçada e não tinha a quem lançar a culpa de sua desven­tura, senão ao destino ou ao céu que trazendo ali aquele mancebo em tão fatais circunstâncias viera como que de pro­pósito e sem piedade arrojá-la no caminho do infortúnio. A morte era o único pensamento consolador, em que se abrigava aquela alma ulcerada. Tão vivo e ardente fora o afeto que concebera por Eduardo, tão doloroso o golpe, que este sem querer acabava de lhe vibrar no coração.