Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/VI

Eduardo achando-se a sós na varanda debruçou-se sobre o parapeito e com a cabeça entre as mãos refletia sobre as ocorrências daquela tarde. A estranha perturbação em que caí­ra Paulina no fim da conversação que com ele tivera, lhe causava a mais dolorosa impressão. Já por vezes lhe despontara no espírito a suspeita de que Paulina havia concebido amor por ele, por maior que fosse o cuidado e o esforço desta em ocultar seus íntimos sentimentos, e esta idéia o afligia sumamente. Foi de alguma sorte de propósito para sondar o coração da menina e atalhar os progressos de uma paixão, a que não podia corresponder, que Eduardo não hesitou em fazer-lhe a relação do amor, que consagrava a outra. Compre­endeu, então, claramente, quanto extremo de paixão abrasava aquela alma cândida e sensível, cuja paz viera perturbar com seu aparecimento a um tempo providencial e desastrado. Teve infinita pena dela, e arrependeu-se mil vezes das palavras que dissera e da cruel revelação que lhe fez sem calcular as conseqüências. Teria sido menos cruel deixá-la na incerteza, e encarregar ao tempo e à ausência a cura de um mal que ele com suas palavras não fez mais que exacerbar.

Além disso acrescia a consideração de que Roberto o reputava um rival e não podia encará-lo com bons olhos. Somente o velho chefe da casa não tinha para com ele pre­venção alguma. Achava-se, pois, Eduardo em posição sumamente melindrosa naquela casa, e sua estada ali por mais tempo não poderia deixar de produzir cenas desagradáveis e funestos resultados. Era-lhe pois forçoso e indispensável deixar o mais breve possível aquela fazenda, e quanto mais pensava e refletia, mais se firmava nessa resolução.

Destas reflexões o veio despertar Roberto, que se apro­ximando bruscamente, disse-lhe em tom áspero e seco:

– sr. Eduardo, é preciso que sem mais demora o senhor saia desta casa!...

Eduardo olhou para ele espantado.

– O que está dizendo, homem? respondeu-lhe.

– É preciso que o senhor saia quanto antes desta casa, repito, se não quer que eu ou o senhor nos ponhamos a perder.

Eduardo ia assomar-se; mas refletiu, que nenhum proveito tirava em brigar com aquele simples e estouvado rapaz; repor­tou-se e respondeu-lhe.

– Senhor Roberto, eu por ora acho-me muito bem aqui, e nem vejo motivo algum para pôr-mo-nos a perder. Os donos da casa creio que nem por sombra pensam em despedir-me; e como quem quer o senhor enxotar-me?

– Se o dono da casa soubesse que o senhor anda querendo lhe desencaminhar a filha...

– Alto lá, senhor caluniador! devagar com isso! onde e por que modo viu o senhor que eu faltasse ao respeito no míni­mo ponto que fosse à sra. d. Paulina?... se aturo com paciên­cia suas sandices, não estou de ânimo a agüentar tão infame calúnia.

– Sandeu e caluniador será ele! veja onde está e com quem fala... olhe que não sou nenhum caipira tocador de burros, arrieiro ou capataz de tropa. Cuida que não ouvi... ainda agora... ali debaixo da gameleira?

Com esta arrieirada Eduardo ia perdendo a paciência, e posto que nenhuma arma tivesse consigo e se achasse ainda fraco e em convalescença para poder medir-se com um atleta armado de faca e cacete e em pleno gozo de saúde e robustez, já de punho fechado se dispunha a responder-lhe com meia dúzia de sopapos, quando uma idéia que atravessou-lhe o espírito deteve-lhe o braço.

– Ouviu o quê, senhor amansa-garrotes? perguntou ele. Fale; não esteja a me impacientar com suas meias palavras.

– Ouvi, sim; ouvi o senhor estar se derretendo todo, e dizendo melúrias a minha prima; até por sinal, que estava lhe falando assim: hei de amá-la sempre; nunca mais hei de dei­xar de amá-la.

A estas palavras Eduardo, apesar da triste e grave dispo­sição em que se achava, apesar da impaciência e indignação, que lhe causavam as impertinências e impropérios do primo, não pôde conter uma gargalhada.

– E o senhor ainda ri-se! bradou Roberto enfurecido, e avançando com gesto ameaçador.

– Tenha mão lá, senhor Roberto; disse Eduardo segu­rando-lhe brandamente o braço. O caso não é para brigar­mos...

– Como não? queria ainda mais?

– Ora venha cá, escute um pouco, senhor Roberto dos meus pecados. Eis aí a que nos podem levar as aparências. Um engano da sua parte o ia levando a praticar desatinos contra uma pessoa que nunca o ofendeu, e nem lhe deseja mal algum. Mas o senhor está desculpado, pois decerto não ouviu toda a conversa, e era fácil enganar-se.

– Ouvir mais para quê?... foi de sobra o que eu ouvi.

– Não é assim, homem de Deus; tenha paciência, escute-me. Sua prima vendo-me ali sentado sozinho e pensativo, perguntava-me a razão por que ando triste, e se já estava aborrecido de estar aqui. Eu respondi-lhe que me achava muito bem nesta casa, porém que tinha muitas saudades de minha terra, e principalmente de uma pessoa de lá, de uma moça a quem quero muito bem, com a qual se Deus não mandar o contrário, tenho de me casar. Era dessa moça, que eu dizia a sua prima, que nunca hei de deixar de amá-la.

– Vá contar essa mais adiante, que por cá não pega. Com essa ainda não me embaça, sr. Eduardo.

– Oh! senhor!... que necessidade tenho eu de enganá-lo?... creia, que é a pura verdade; juro-o por minha alma, e se isto não basta, pode perguntar à própria d. Paulina.

Ao ouvir a explicação de Eduardo, Roberto sentiu no íntimo da alma uma alegria, um alívio como há muito tempo não experimentara. Parecia-lhe que lhe tinham tirado um enor­me peso do coração, e tomando a mão de Eduardo, disse-lhe com efusão:

– Perdoe-me, meu amigo; agora vejo que fui um grosseiro, um estonteado. Mas o senhor bem deve saber, que onde há amor há ciúme, e eu... não posso negar, quero um bem a minha prima... o ciúme é um inferno... faz a gente dar por paus e por pedras sem saber o que faz... arre! cruz!... eu mesmo estou envergonhado... mas esqueçamo-nos disso, sr. Eduardo; aperte esta mão, e fiquemos amigos como dantes.

– Pois não, senhor Roberto; amigos sempre como dan­tes. O senhor tem toda a desculpa; o caso não era para menos. Mas espero, que fique firmemente, acreditando que eu nem de leve sou capaz de faltar ao respeito nem desencaminhar a quem quer que seja, quanto mais a senhora sua prima a quem tributo o maior respeito, simpatia e até admiração, que de tudo isso ela é merecedora, mas sem a menor dose de amor, porque como já lhe disse, tenho o coração ocupado e minha palavra comprometida com outra.

– Isso é que eu queria saber. Agora sim! posso ficar com o coração sossegado, já que o senhor me afirma e jura, que não quer bem nem tem pretensão alguma sobre minha prima... e que nunca...

– Sim, senhor Roberto; atalhou Eduardo acudindo ao embaraço do pobre rapaz e adivinhando-lhe o pensamento. Juro-lhe pelas cinzas de meu pai, que sinto pela sra.d. Pauli­na muita afeição, mas que esta afeição em nada se parece com amor; e juro-lhe também, que nunca em dias de minha vida porei o menor embaraço, nem servirei de estorvo por qualquer modo que seja ao seu amor, e ao seu futuro casamento com ela. Bem sabe que sou paulista, e quando um paulista jura... nem é preciso jurar; basta dar sua palavra, nem que lhe cortem a cabeça, é capaz de faltar a ela.

– Muito bem!... viva isso, meu amigo!... assim é que eu gosto de homem. Toque aqui, havemos de ser sempre amigos... E adeus! não quero aborrecê-lo mais. Boas-noites.

Já era noite fechada. Eduardo recolheu-se a seu quarto cada vez mais firme na resolução de retirar-se o mais breve que lhe fosse possível daquela casa, onde o acaso o havia conduzido para ser sem o querer a chave do enlace de um drama, cujo desfecho poderia ser fatal.

Quanto a Roberto, esse respirava enfim desafogado, com o espírito livre do pesadelo que o perseguia, isto é ciente de que um homem como era o senhor Eduardo, de tanto mérito e galhardia, longe de ser seu rival morria de amores por outra.

Portanto apenas dele se despediu andou por todos os cantos da casa em que podia penetrar, à cata da prima a fim de expandir um pouco com ela o contentamento de que se achava possuído. Debalde: a pobrezinha tinha-se encerrado em seu quarto e nessa noite ninguém mais lhe viu o rosto. E o simples do primo não compreendia, que aquilo mesmo que tanto prazer lhe causava, levara angústia mortal ao coração de sua prima.

Daí a dois dias Eduardo despedia-se da casa do sr. Joa­quim Ribeiro, depois de se trocarem de parte a parte os mais vivos protestos de eterno reconhecimento e amizade, e depois de ter Eduardo renovado em particular a Roberto o juramento de nunca ter pretendido e nem pretender para o futuro ao amor, nem à mão da senhora d. Paulina.

Ao apertar na despedida a mão desta, sentiu que estava gelada, e que a agitava um tremor convulso, que ela procurou disfarçar retirando-a prontamente. Eduardo, como fica dito, sentia por ela a mais viva e terna simpatia; compungiu-se den­tro da alma, e não pôde conter as lágrimas que lhe rolavam pelas faces. Paulina as viu e não pôde chorar, porque a angústia lhe havia secado a fonte das lágrimas.

Da janela de seu quarto ela viu Eduardo sumir-se além das últimas colinas. Nesse momento os ouvidos lhe zuniram, e seus olhos se escureceram.

Pareceu-lhe que o túmulo a devorava em vida, e que sua alma se afogava nas trevas da noite eterna.