Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/VII

Era uma bonita e radiante tarde de sábado.

A Vila Franca do Imperador, linda e risonha povoação da província de S. Paulo, – como que se espanejava alegre e faceira em cima de sua colina aos últimos raios do sol de dezembro.

Era véspera do dia de descanso para os que verdadeiramente trabalham, de prazer para os patuscos e folgazões, missa e rezas para os padres e devotos.

Na verdade descansa-se, reza-se e diverte-se muito em todos os domingos. Mas as tardes e noites de sábado sabem muito mais do que as de domingo. Naquelas espera-se pela festa, o que dizem ser o melhor dela; nesta acaba-se com ela, o que não deixa de ser triste.

Ninguém deita-se da cama mais aborrecido em uma noite de domingo do que o estudante, o lente, o empregado público, o jornaleiro, enfim do que todo mundo – católico, bem enten­dido, – à exceção do soldado, do escravo e outros miseráveis, para os quais não há domingo nem dia santo, e do imperador, do duque, do frade e outros, para os quais todo o dia é dia santo.

Eis a razão por que se escolhem de ordinário as tardes e as noites de sábado para os casamentos, batizados, bailes, concertos, espetáculos, enfim para tudo quanto é regozijo.

No largo da matriz da Franca havia mais um motivo para a efervescência da alegria e do prazer.

Celebrava-se nesse dia com muita pompa e arrojo o casamento de uma moça pertencente a uma das mais ricas e distin­tas famílias da Franca. Os sinos repicavam alegre e incessantemente entre as mãos de encarniçados rapazes; uma imensidade de foguetes e girândolas estouravam nos ares, e toldavam a atmosfera com uma abóbada de fogo e fumo. À porta da igreja restrugia uma numerosa banda de música. Na igreja, pelo adro, pelas ruas não se via senão gente alegre, alardeando asseados e garridos trajes domingueiros, pois em toda a vila não ficou uma pessoa, que pusesse gravata ao pescoço, que não fosse convidada. Parecia aquele noivado uma festa pública, e fazia recordar as bodas de Gamacho.

A moça era formosa por sua rara beleza, e fora o alvo cobiçado e disputado por muitos e guapos pretendentes de fora e do lugar. Era filha do major José Ferreira, um dos mais abastados fazendeiros de toda a comarca e chamava-se Lucinda.

Pelo nome e pelos predicados o leitor já terá atinado que a noiva não era mais nem menos senão a namorada, a senhora dos pensamentos do jovem muladeiro Eduardo, que vimos quase papado por uma onça na fazenda de Joaquim Ribeiro, querendo salvar-lhe a filha. Adivinhou e sem dúvida terá também adivinhado que o noivo era o próprio Eduardo, e nada mais natural; eram dois amantes firmes, que há muito tempo se queriam, e dignos um do outro; dois belos e interessantes jovens, para os quais de há multo o himeneu entretecia sorrindo os laços de seda e ouro, com que devia uni-los para sempre.

No momento, em que os dois guapos e jovens noivos com as mãos enlaçadas recebiam em face do altar-mor a bênção nupcial, um viandante cavalgando uma linda e possante mula coberta de poeira e suor, envolto em uma pala de linho branco, e calçando botas de mateiro guarnecidas de largas chilenas de prata, entrava pela vila e passando pelo largo da matriz, ao ver aquela influência de povo e alvoroto festival, picado de curiosidade apeou-se para ver que santo se feste­java, e ao mesmo tempo rezar uma oração e dar graças ao céu por ter-lhe dado até ali próspera viagem. Deixando o ani­mal entregue ao camarada que o acompanhava, entrou pela porta principal, atravessando a custo a multidão. A cerimônia. estava concluída, e os noivos entonados e radiantes vinham descendo da nave para a porta do frontispício, atravessando a multidão que se abria para dar-lhes passagem, como dois soberbos cisnes cortando as ondas encrespadas de um lago agitado pelos ventos. Vendo o grande préstito que vinha pelo meio da igreja, o viandante arredou-se para um lado para vê-lo passar. Os noivos, que vinham na frente, foi como era natural o primeiro objeto de sua atenção. Mal deu com os olhos neles – Lucinda! – bradou ele com voz que ressoou por toda a igreja.

Ao som daquela voz Lucinda empalideceu e cambaleou. Todos voltaram-se para o lado donde ele rompera, mas o viandante, agachando-se, encolhendo-se, rompeu sereno e rá­pido como uma seta por entre a turba, que se agitava, e enquanto todos atônitos indagavam com os olhos donde parti­ra aquele grito, saiu rapidamente por uma porta travessa, montou de um salto a cavalo, e desapareceu no primeiro beco que encontrou. Foi direito apear-se em casa de sua mãe, em cuja companhia morava sempre que estava na Franca.

– Meu filho! enfim... sempre chegaste! exclamou a velha, apenas o viu, estendendo-lhe os braços.

– Ah! minha mãe! minha mãe! exclamou o mancebo, e lançou-se nos braços dela soluçando, mas com os olhos secos e chamejantes.

– Que tens, filho, que estás assim amarelo e a tre­mer...

– Que golpe, minha mãe! que golpe acabo de receber!

– Golpe, meu filho?... agora?... dizia a mãe assusta­da reparando por todo o corpo.

– Neste instante.

– Mas... não vejo sangue... onde foi o golpe? fala, meu filho; não me assustes assim.

– Não é isso, minha mãe; Lucinda... quem o diria!...

– Ah! já sei; já sei. Já se casou... Graças a Deus, respiro sossegada; pensei que te havia sucedido alguma des­graça.

– Pois quer maior desgraça, minha mãe?...

– Qual desgraça, menino! não perdes nada com isso...

– Ah! minha mãe, só Deus sabe quanto perco. Perco o sossego e a alegria do coração e para sempre...

– Qual para sempre! estás ainda muito tolo, meu filho. Não há mágoa, que o tempo não console. Tu és ainda muito criança. Não faltam por esse mundo moças mais bonitas que a Lucinda, e – aqui entre nós – mais bem-educadas, que te queiram. És um rapaz bem parecido e de muito boas maneiras; o ponto é que sejas comportado e saibas trabalhar, como até aqui tens feito, que noivas ricas e formosas te sai­rão aos centos.

– Nem falar nisso, minha mãe! eu acreditar mais em moças!?... não quero sujeitar-me a levar outra vez uma des­feita destas.

– Sossega, meu filho; há males que vêm para bem. Bem sabes, que nunca aprovei muito essa tua inclinação para se­melhante rapariga. Achava nela um não sei quê de leviana e de estouvada que nada me agradava, e nunca tive fé com esta gente de Ferreiras; são todos falsos, e sem palavra. As provas estás vendo. Queres que te diga uma coisa?... se não te visse tão agoniado, era este um dos dias mais felizes de toda a minha vida.

– Mas, minha mãe, ela mostrava querer-me tanto, e os pais pareciam fazer tanto gosto em nosso casamento. Quem sabe se não houve por aí algum embuste, alguma patranha... aquele Hipólito é um infame capaz de tudo.

– Meu filho, se eu disser que aí não houve de todo sua tal ou qual velhacaria da parte do moço, minto. Mas his­tórias! aquilo é mesmo gente sem cruz nem cunho.

– Ah!... logo vi. Então sempre houve patranha.

– Um enredo que de nada valeria, se eles fossem pes­soas de palavra.

– Mas enfim, minha mãe, qual foi esse enredo?... estou ardendo por sabê-lo.

– Tu pensas, que não se soube logo por aqui de uma célebre caçada de onça, em que andaste lá pela Uberaba?... Correu por aqui que com risco de vida tinhas livrado das goelas de uma onça uma mocinha, filha de um fazendeiro muito rico, e que dizem ser linda como um sol.

– Até aí tudo é pura verdade; mas que tem isso com...

– Vai escutando. Disseram mais que ficaste por tal forma embelezado pela tal mocinha, que te invernaste na dita fazenda a ponto de parecer que de lá nunca mais sairias, que eras lá todo de dentro, e já parecias um filho da casa; que já nem cuidavas de teus negócios, e mil outras coisas, que não me lembro.

Eduardo suspirou. Este suspiro era um pensamento vago, que queria dizer: – Pobre Paulina!... antes assim tivesse acontecido!

– Daqui a Uberaba não é longe, – continuou a velha,– umas vinte léguas quando muito, e não faltaram portado­res que cá trouxessem todas essas novidades. De todas essas coisas o espertalhão do Hipólito da Cana Verde, que bem sabes que era um dos maiores apaixonados da Lucinda, se aproveitou e foi metê-las todas nos ouvidos dela e dos pais, e decerto acrescentando pontos e pintando a coisa com cores ainda mais feias.

– Ah! miserável intrigante! bradou Eduardo batendo os queixos e espumando de cólera. – Não soube aquele infame dizer também que estando eu a caçar o acaso me fez chegar àquela fazenda perseguindo uma onça; que fiz por aquela moça o que faria todo o homem de bem e de coragem, – não ele, que não tem brios, e não passa de um miserável poltrão; – que a onça arrojando-se sobre mim feriu-me gravemente, e atirou-me no chão sem sentidos e esvaindo-me em san­gue...

– Santo Nome de Jesus!... exclamou a velha benzen­do-se. – Disso ninguém soube por cá. Que perigo! santo Deus!... nunca deixará dessa maldita mania de caçar!... e como vais? – não sofres mais nada?...

– Nada, minha mãe, graças a Deus. Não tive senão perda de sangue, estou perfeitamente bom. O tratante, continuou ele, esqueceu-se também de dizer, que fui levado em braços para a casa do fazendeiro, e que forçoso me foi ficar ali longos dias para curar minhas feridas e restabelecer minhas forças quase de todo esgotadas em razão da imensa perda de sangue; que se fui tratado com todo o carinho e desvelo pelo pai e pela filha, é porque nenhuma outra coisa se devia espe­rar de pessoas de coração bem formado e agradecido vendo-me em tal estado, ainda que nenhum serviço tivessem de mim recebido.

Esqueceu-se também o infame velhaco, que essa moça desde criança está prometida em casamento a um primo e vi­zinho seu, que a estima extremosamente; enfim que por esses motivos todos foi-me indispensável demorar pela Uberaba muito mais do que seria preciso para aviar meus negócios, sofrendo não pequenos prejuízos. Ah! maldito mexeriqueiro! – concluiu Eduardo espumando de raiva e dando sobre uma mesa um murro furioso. – Não sei onde estou, que não vou já arrancar-te essa língua danada e com ela essa alma de lama!.. mas todo o tempo é tempo. Amanhã... amanhã te­mos de ajustar contas, infame trapaceiro.

– Sossega, meu filho; não te ponhas a perder por tão pouco. A culpa não é tanto do Hipólito. Se a Lucinda e sua gente tivessem grande empenho no teu casamento, não teriam acreditado tão de leve nesses mexericos. Olha o que te digo; os Ferreiras não estão lá muito bem de fortuna, por mais que se diga. O Hipólito tem fama de possuir mundos e fundos, posto que seja um gangolina, um trapaceiro. Demais é ainda parente deles, e essa gente gosta muito de casar parente com parente e por isso é que vai saindo essa perrada mofina que estás vendo. E tu, meu filho, não passas de um principiante, e eis aí por quê...

– Seja lá como for, minha mãe, – interrompeu com impaciência o filho, – em todo o caso é uma tremenda desfeita, que me fizeram, um desaforo, que não posso por nada agüentar de cara alegre, e de que mais tarde ou mais cedo, desta ou daquela maneira juro que hei de me vingar.

– Cala-te, filho; o melhor modo de te vingar é não te dares por achado. Deus e o tempo é que te hão de vingar. O tal Hipólito além de ser um paspalhão muito sem graça, é um atroado, um libertino. A senhora Lucinda, oh! Essa nunca me enganou, e Deus me perdoe, – está me parecendo, que vem a dar em uma... refinada sirigaita...

– Que está dizendo, minha mãe?...

– Não te enfades, Eduardo; não queiras tomar as do­res por quem te atraiçoa... quer me parecer, que esse ca­samento... não é praga, que estou rogando, não; Deus tal não permita; – quer me parecer, que não pode acabar bem.

– Dê no que der, juro que não hão de ter muito alegre a sua lua-de-mel. Pelo menos hei de quebrar a cara àquele tratante.

– Deixa-te disso, menino; é como te disse, não te dês por achado. O desprezo é a melhor vingança, e a única que eles merecem. Finge mesmo que vieste apaixonado pela linda uberabense, e que te julgas feliz por te terem aliviado de uma carga, que outra coisa não é a tua Lucinda, e deixa correr trinta dias por um mês. Enfim, meu filho, há muito tempo de conversar: sossega esse coração e vai descansar, enquanto eu vou preparar-te uma boa ceia.

– É escusado, minha mãe; não tenho fome nenhuma, a boca amarga-me como fel, e a minha cabeça é uma brasa.

– Quem sabe, tens algum ramo de febre.

– Qual febre! a minha febre é a raiva, é o desespero.

– Ora por quem és, esquece-te disso e vai descansar.

– Não estou cansado, minha mãe; vou passear para distrair-me um pouco.

– Passear! não caias em tal. Olha, não vás fazer por aí alguma loucura, Eduardo.

– Protesto que nada farei, minha mãe.

– Não quero que saias; mandarei avisar os teus amigos de tua chegada; com eles te distrairás.

– Ora, minha mãe, o passeio me convinha mais; para que incomodar os amigos?...

– Não, não, Eduardo; não sairás; se és meu filho, hás de me obedecer.

A velha retirou-se, e Eduardo, que nunca nem mesmo nas mais insignificantes coisas desobedecera a sua mãe, dei­xou-se ficar em casa.