Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal/I
LIVRO I
Durante os doze primeiros seculos da igreja foi aos bispos que exclusivamente incumbiu vigiar pela pureza das doutrinas religiosas dos fiéis. Era isso para elles, ao mesmo tempo, um dever e um direito que resultavam da indole do seu ministerio: ninguem podia, portanto, intervir nesta parte tão grave do officio pastoral, sem offender a auctoridade do episcopado. Esta era a doutrina e a praxe dos bons tempos da igreja. Um tribunal especial e extranho á jerarchia ecclesiastica, incumbido de examinar os erros de crença que a ignorancia ou a maldade introduziam; um tribunal que não fosse o do pastor da diocese, encarregado de descubrir e condemnar as heresias, sería, nos seculos primitivos, uma instituição intoleravel e moralmente impossivel. E todavia, esse tribunal, se nalguma parte houvera então existido, não teria sido na essencia senão aquella instituição terrivel que, ajunctando ao monstruoso da origem e natureza a demencia das suas manifestações e a atrocidade das suas formulas, surgiu no seio do catholicismo durante o seculo xiii, e que veio com o nome de Inquisição ou Sancto-Officio, a cubrir de terror, de sangue e de lucto quasi todos os paizes da Europa meridional e, ainda, transpondo os mares, a opprimir extensas provincias da America e do Oriente.
Como é facil de crer, essa instituição fatal nasceu debil e desenvolveu-se gradual e lentamente. Creada de subito, embora o fosse com muito menos attribuições que as adquiridas depois, teria expirado no berço, esmagada pela resistencia do episcopado. E’ certo que, já antes do seculo xiii, as commissões chamadas synodos, que constituiam nos diversos districtos de cada diocese uma especie de tribunaes dependentes do bispo, tinham a seu cargo proceder contra os herejes. Essas commissões, porém, depois de os qualificarem como taes e de lhes applicarem a excommunhão, deixavam o resto á acção do poder civil. Ha, na verdade, exemplos de condemnarem os juizes seculares os herejes ao ultimo supplicio, embora nenhuma lei da igreja, nem de direito romano lhes imposesse maior pena do que o confisco dos bens : todavia , no meio do fanatismo que inspirava semelhantes crueldades, o systema de processo contra os delinquentes desta especie não tinha analogia alguma com o que depois a Inquisição adoptou. Não havia juizes especiaes para investigarem e apurarem os factos; serviam para isso os tribunaes ordinarios. O accusado assistia aos actos do processo, dava-se-lhe conhecimento de todas as accusações, facilitavam-se-lhe os meios de defesa, e nada se lhe occultava. Era inteiramente o inverso das praxes posteriores; e, ainda assim, póde-se dizer que a igreja era, até certo ponto, extranha á imposição de penas afflictivas e ao derramamento de sangue com que mais de uma vez se manchou a intolerancia religiosa antes do seculo xiii.
E nisto ella respeitava as tradições primitivas do christianismo. Nos primeiros seculos, os bispos e prelados, sendo inexoraveis em separar do gremio dos fiéis os dissidentes da fé, no que, em rigor, nada mais faziam do que certificar a existencia de um facto, paravam ahi ou, quando muito, davam conta ao poder secular do que tinham practicado. Na opinião de alguns, isto mesmo era uma falta de caridade, e por isso occultavam aos officiaes publicos a excommunhão que haviam fulminado. E’ certo que outros entendiam serem uteis os castigos materiaes para obstar ao progresso das heresias, e por isso instigavam os magistrados a cumprirem as leis imperiaes contra os dissidentes, as quaes, como dissemos, não eram excessivamente severas, e, se alguns exemplos restam de se impor a pena ultima a heresiarchas, a intolerancia, envergonhando-se de os condemnar pelas suas doutrinas religiosas, qualificava-os, para isso, como cabeças de motim. Em taes circumstancias, os ecclesiasticos abstinham-se de comparecer nos tribunaes e sinceramente se esforçavam por salvar os réus. O espirito evangelico era tão vivo em alguns que o grande Sancto Ambrosio e S. Martinho consideraram como excommungados os bispos Itacio e Idacio, por haverem sido perseguidos e condemnados á morte alguns priscillianistas que elles tinham accusado, insistindo no seu castigo perante os imperadores Graciano e Maximo. Escrevendo a Donato, proconsul d'Africa, Sancto Agostinho declarava-lhe, mui positivamente, que se elle continuasse a punir de morte os donatistas, os bispos cessariam de os denunciar, ficando elles, assim, impunes, e que, se queria que as leis se cumprissem, era necessario usar em taes materias de moderação e brandura. A tolerancia moderna ainda não soube exprimir-se mais nobremente nem com mais philosophia do que Salviano, o chamado mestre dos bispos, que tantos elogios mereceu a Sancto Eucherio e a outros padres da primitiva igreja : «São herejes» — dizia elle, falando dos arianos — «são-no; mas ignoram-no. Herejes, entre nós, não o são entre si ; porque tão catholicos se reputam que nos têem por hereticos. O que elles são para nós somos nós para elles. A verdade está da nossa parte; mas elles pensam que está da sua. Cremos que damos gloria a Deus; elles pensam tambem que o fazem. Não cumprem o seu dever ; mas, longe de o suspeitarem, acreditam servir a religião. Sendo impios, persuadem-se de que seguem a verdadeira piedade. Enganam-se ; mas é de boa fé e por amarem a Deus, não porque o aborreçam. Alheios á crença verdadeira, seguem com sincero affecto a sua, e só o supremo juiz póde saber qual será o castigo dos seus erros.» No tempo da Inquisição, o mestre dos bispos teria perecido numa fogueira, se houvesse escripto estas admiraveis phrases, onde, tão judiciosamente, se acham ligadas a intolerancia doutrinal e legitima com a tolerancia material e externa.
Depois da quéda do imperio romano até os fins do seculo xi as heresias e os herejes foram raros, e nesses mesmos casos a igreja limitou-se aos castigos espirituaes, ás vezes remidos por um systema de penitencias que equivalia ás muletas por delictos civis. Se a repressão material se julgava opportuna, essa continuava a ser regulada pela lei civil e applicada pela magistratura civil. O seculo xii viu pullular muitas discordias religiosas, filhas de varias causas, sendo as principaes a lucta dos imperadores com os papas, lucta nascida da desmesurada ambição de alguns pontifices e da corrupção extrema a que haviam chegado os costumes da cleresia, consistindo, por isso, inicialmente, a maior parte dessas heresias na negação da auctoridade ecclesiastica. A opinião reagia contra os excessos do clero; mas, como succede em todas as reacções, ultrapassava, não raro, os limites do justo. Partindo-se de um sentimento de indignação legitima, quebrava-se frequentemente a unidade da crença. A propria corrupção ecclesiastica, de que o episcopado não era exempto, afrouxando o zelo dos prelados, fazia com que não mantivessem a severidade da disciplina. Ao passo que, assim, se facilitava o progresso das dissidencias, augmentando-se as difficuldades do combate por esse motivo, a tibieza dos bispos achava desculpa no numero e poder dos dissidentes para dissimular com elles. As cousas tinham chegado a termos que as pessoas prudentes procuravam evitar as discussões em materias de fé, e, até o papa Alexandre iii, escrevendo a Geroho, prior de Reichsberg, lhe ordenava se abstivesse de debater pontualidades e ápices da doutrina religiosa, porque desses debates, de que nenhum bem procedia, só se tirava o cahirem em erros de fé as intelligencias apoucadas e rasteiras.
Entretanto sentia-se vivamente a necessidade de acudir ao mal. No terceiro concilio geral de Latrão (1179) decretaram-se providencias severissimas contra as heresias que, pelo seu incremento e pelas violencias dos seus sectarios, se tinham tornado mais perigosas. Taes eram as dos patarenos, catharos, publicanos e outras que, principalmente, se espalhavam pelas provincias d’Alby, Tolosa, Aragão, Navarra e Vasconia e que já empregavam violencias brutaes, ou para se defenderem ou para reduzirem ao seu gremio os que se conservavam fiéis á doutrina catholica. A’ guerra o concilio respondeu com a guerra. Mas, ainda assim, não esqueceram de todo as antigas tradições. «Bem que a igreja — diziam os padres do concilio — não admitta sanguinolentas vinganças e se contente das penas espirituaes; todavia, as leis seculares muitas vezes exercem acção salutar pelo temor dos supplicios, no remedio das almas transviadas.» Assim, lançando o anathema sobre essas novas e turbulentas seitas e sobre seus fautores e protectores, negando, até, a estes a sepultura ecclesiastica, o concilio chama ás armas os catholicos, auctorisa os príncipes para privarem de seus bens os culpados e reduzirem-nos á servidão e concede indulgencias por dous annos a todos os que combaterem pela religião, mandando negar o sacramento da eucharistia aos que, admoestados pelos bispos para tomarem as armas, recusassem obedecer-lhes. De certo, o concilio lateranense, com estas e outras provisões analogas, saía da extrema mansidão e brandura que os antigos padres aconselhavam e seguiam, mas não confundia a acção respectiva dos dous poderes. Á auctoridade ecclesiastica ficava competindo do mesmo modo o uso dos castigos espirituaes; aos príncipes o dos temporaes. Além disso, a jurisdicção episcopal era respeitada, e não se introduziam juizes ou tribunaes novos e independentes pendentes para serem julgados os casos de heresia, nem se estabelecia nova ordem de processo. E comtudo as medidas extremas tomadas por aquella assembléa e a linguagem do decreto conciliar estão revelando até que ponto subiam os receios dos bispos alli congregados e a extensão do mal a que se pretendia dar remedio no presente e obstar de futuro.
A constituição promulgada por Lucio iii em 1184 é considerada por alguns escriptores como a origem e germen da Inquisição. Aquelle acto do poder papal, expedido de accordo com os principes seculares, ordena aos bispos que, por si, pelos arcediagos, ou por commissarios de sua nomeiação, visitem uma ou duas vezes por anno as respectivas dioceses, afim de descubrir os delictos de heresia, ou por fama publica ou por denuncias particulares. Nessa constituição apparecem já as designações de suspeitos, convencidos, penitentes e relapsos, com que se indicam diversos graus de culpabilidade religiosa, com diversas sancções penaes. Todavia conserva-se ahi ainda pura a distincção dos dous poderes, limitando-se a igreja aos castigos espirituaes e deixando ao poder secular a applicação de outras penas. Não parece ter-se ahi por objecto senão combater a frouxidão dos prelados e compelli-los a desempenharem o seu dever. As commissões extraordinarias a que nella se allude não são na essencia cousa diversa dos antigos synodos, exercendo pura e exclusivamente uma delegação dos bispos. O que naquella constituição ha mais notavel é o fixarem-se, até certo ponto, as formulas do processo ecclesiastico em relação aos dissidentes; mas essas formulas não offendiam a razão, porque não desarmavam os accusados das necessarias garantias. Mal se póde, portanto, ver no acto de Lucio iii a origem de um tribunal cuja indole era exactamente cantraria ao espirito das provisões que ahi lemos, e que apenas tem commum com ellas a idéa de um systema especial de processo para esta ordem de réus.
Foi, verdadeiramente, no seculo xiii que começou a apparecer a Inquisição, como entidade, até certo ponto, independente; como instituição alheia ao episcopado. Altivo, persuadido, já antes de subir ao solio, dos immensos deveres e, por consequencia dos immensos direitos do pontificado, resolvido a reconquistar para a igreja a preponderancia que lhe dera Gregorio vii e a restaurar a severidade da disciplina, meio indispensavel para obter
O nome de inquisidores da fé tinha sido dado a esses diversos legados do papa ; mas nem tal designação importava o mesmo que depois veio a significar, nem elles constituiam um verdadeiro tribunal, com formulas especiaes de processo. O seu ministerio consistia em descubrir os herejes, e, nessa parte, o trabalho não era grande em combatê-los pela palavra, em excitar o zelo dos principes e magistrados e em inflammar o povo contra elles. Na verdade, estes incitamentos produziam scenas atrozes, quaes se deviam esperar em epocha de tanta barbaria, excitando-se a crença até o grau do fanatismo ; mas a acção dos inquisidores vinha, assim, a ser unicamente moral, e indirectos os resultados materiaes della. Todavia, a independencia de que gosavam e as faculdades que lhes haviam sido atribuidas, com quebra da auctoridade episcopal, eram um grande passo para a creação desse poder novo que ía surgir no meio da jerarchia ecclesiastica.
Apesar, porém, dos esforços empregados pelos inquisidores da fé, o incendio continuava a lavrar no meio-dia da França, e os albigenses (nome com que se designavam, sem sufficiente distincção, todas as seitas que naquellas provincias se affastavam mais ou menos da doutrina catholica) nem davam ouvidos ás prédicas dos dominicanos e de outros controversistas, nem cediam á violencia, onde e quando achavam em si recursos e força para a repellirem. A historia da guerra dos albigenses não é senão um tecido de atrocidades practicadas pelos catholicos contra os herejes e por estes contra aquelles. No meio das mutuas vinganças, Pedro de Castelnau, um dos proprios legados do papa a quem o bispo de Osma e Domingos de Gusmão tinham vindo ajudar, foi assassinado (1208) pelos dissidentes. O espirito d’intolerancia e os odios religiosos produziam os fructos ordinarios destas pessimas paixões. Todavia, no meio de tantos horrores appareciam intelligencias summas que sabíam manter as antigas tradições christans, conservando puras de sangue as vestes sacerdotaes. Tal foi S. Guilherme, bispo de Bruges, que recusou constantemente associar-se ao systema da compulsão violenta contra os herejes. Deixando aos legados de Roma e aos prelados das outras dioceses confiarem a defensa do catholicismo ao ferro dos combatentes e aos supplicios dos algozes, limitava-se a exhortar os endurecidos no erro, a convencê-los com razões e a implorar a graça divina para que os alumiasse. Quando muito, recorria, ás vezes, á ameaça da imposição de muletas, mas nem essa mesma fraquissima ameaça se realisava. A’ morte do sancto prelado (1209) seguiu-se em breve a sua canonisação. Tanto é certo que, ainda no meio do delirio das paixões e da perversão das idéas, nunca se obscurece de todo o respeito á san razão e á verdadeira virtude.
Os decretos do imperador Friderico ii, promulgados entre 1220 e 1224, para a repressão das heresias vieram dar novo vigor e, em grande parte, absolver, revestindo-o de sancção legal, o sistema d'intolerancia sanguinaria adoptado contra os dissidentes. A responsabilidade moral do novo direito que o poder civil creava, e que substituia a comparativa moderação do direito romano, não podia recahir, ao menos directamente, sobre o sacerdocio, como recahiam os anteriores incitamentos das multidões fanatisadas. Entretanto, a intolerancia material, levada ao extremo naquela legislação, fazia degenerar a intolerancia legitima da igreja, transportando-a do mundo das idéas para o dos factos. Sería absurdo exigir do catholicismo que tolerasse o erro; que admitisse a possibilidade theorica de qualquer ponto de doutrina contraria á sua; porque isso equivaleria a fazer descer a crença catholica das alturas do dogma ao nivel das opiniões humanas; mas estas leis ferozes tornavam necessariamente odiosa aos olhos das suas victimas a causa remota e innocente de males que só, na realidade, eram filhos de bruto fanatismo e, ás vezes, de conveniencias politicas.
O anno de 1229 é a verdadeira data do estabelecimento da Inquisição. Os albigenses tinham sido esmagados, e a lucta fora assás longa e violenta para deverem contar com o exterminio. O legado do Papa Gregorio ix, Romano de S. Angelo, ajunctou nesse anno um concilio provincial em Tolosa. Promulgaram-se ahi quarenta e cinco resoluções conciliares, dezoito das quaes eram especialmente relativas aos herejes ou suspeitos de heresia. Estatuiu-se que os arcebispos e bispos nomeiassem em cada parochia um clerigo, com dous, tres ou mais assessores seculares, todos ajuramentados para inquirirem da existencia de quaesquer heresiarchas ou de alguem que os seguisse ou protegesse e para os delatarem aos respectivos bispos ou aos magistrados seculares, tomando as necessarias cautelas para que não podessem fugir. Estas comissões eram permanentes. Os barões ou senhores das terras e os prelados das ordens monasticas ficavam, além disso, obrigados a procurá-los nos districtos ou territorios da sua dependencia, nos povoados e nas selvas, nas habitações humanas e nos esconderijos e cavernas. Quem consentisse em terra propria um desses desgraçados sería condemnado a perdê-la e a ser punido corporalmente. A casa onde se encontrasse um hereje devia ser arrasada. As demais disposições , em analogia com estas, completavam um systema de perseguição digno dos pagãos, quando tentavam affogar no berço o christianismo nascente. Ao mesmo tempo, Luiz ix promulgava um decreto, não só accorde na substancia com as provisões do concilio tolosano, mas em que, tambem, se ordenava o supplicio immediato dos herejes condemnados, e se comminavam as penas de confisco e infamia contra os seus fautores e protectores. Assim, o espirito da legislação de Friderico ii, que dominava já na Allemanha e numa parte da Italia, estendia-se agora a França e tornava muito mais tremendas as providencias tomadas na assembléa de Tolosa.
Fosse, porém, qual fosse o caracter de cruel intolerancia que predominava naquelle conjuncto de leis civis e canonicas, havia, ainda, uma differença profunda entre essas inquisições, digamos assim, rudimentares e a instituição collossal a que, posteriormente, se deu o mesmo nome, no seculo ſ e nos seguintes. A auctoridade episcopal era respeitada. Tudo quanto se referia á qualificação e condemnação dos herejes dependia dos prelados diocesanos, guardando-se nesta parte a antiga disciplina. Depois, embora nas assembléas ecclesiasticas se imposessem penas temporaes aos dissidentes, esta invasão nos dominios da auctoridade secular tinha, até certo ponto, desculpa, porque os principes decretavam ao mesmo tempo iguaes ou mais severos castigos, legitimando-se, assim, mutuamente os actos dos dous poderes. Além disso, posto que, em relação ao exterminio dos herejes, as duas auctoridades se invadissem mutuamente na practica, a igreja não se esquecia de reconhecer officialmente que a sua acção propria se restringia aos dominios da espiritualidade. Sobre isso são expressos e terminantes alguns canones do iv concilio geral de Latrão (1216) e outros monumentos ecclesiasticos daquella epocha. Não tardou, porém, que esses principios começassem a ser pospostos, ganhando com isso vigor a nova instituição, já permanente, mas debil.
O que é certo é que, apesar de submettidos os albigenses, Roma, d’onde partia toda a actividade externa da igreja, e onde só se podia appreciar bem a situação geral della, sentia vacillar a terra debaixo dos pés do clero. A heresia era, por toda a Europa civilisada, semelhante aos fogos subterraneos de um terreno vulcanico, no qual, ao passo que numa cratera cessa o incendio, e apenas se ouvem alguns rugidos longinquos ou se alevanta um fumo tenue, rebentam por outras partes novas crateras, que arrojam de si lavas e escorias candentes. Ás heresias da França meridional succedia na Allemanha uma nova especie de manicheus, os stadings, seita que, a principio, se limitava a negar a solução dos dizimos, e a cujo incremento se obstou a ferro e fogo. Preferimos acreditar que as execuções por heresia de que se acham vestigios na historia desta epocha, pela França central, por Flandres, por Italia e por outras provincias, recahiam, de feito, sobre heresiarchas, e não eram atrocidades gratuitas perpetradas contra innocentes; mas, em tal hypothese, como explicar estas tendencias de rebellião por toda a parte? D’onde vinha este espirito de reacção contra a igreja? Da corrupção e dos abusos dos seus ministros; corrupção e abusos repugnantes, de que nos dão testemunho, não os adversarios do clero, mas sim os proprios monumentos e historiadores ecclesiasticos. Esta multiplicidade de heresias não era, com já advertimos, senão um excesso de indignação que, transpondo os limites do justo, vinha a gerar o erro. Se os papas intelligentes e energicos, taes como Innocencio iii e Gregorio vii, que hoje é moda exaltar acima de seus merecimentos, tivessem empregado meios tão poderosos para remover o escandalo e reformar o sacerdocio, como empregaram para exterminar os herejes, é necessario confessar ou que o teriam obtido ou que era tão profunda a gangrena que o pôr-lhe obstaculo se tornara impossivel, proposição blasphema que equivaleria a accusar Deus de abandonar a sua igreja. A verdade é que esses espiritos absolutos, irrasciveis, impetuosos achavam mais facil fazer passar á espada ou conduzir á fogueira os seus adversarios do que reprimir com incansavel severidade as demasias do sacerdocio. Os apologistas cegos do clero, os que suppõem vinculada a causa da religião á dos seus ministros têem querido obscurecer estas considerações, que atenuam a culpa dos dissidentes e tornam mais odiosas as perseguições contrarias ao espirito do evangelho, attribuindo á bruteza e devassidão daquellas epochas a corrupção e os crimes do corpo ecclesiastico, que, dizem elles, não podia elevar-se acima da sociedade em que vivia. E’ uma dessas evasivas deploraveis a que, na falta de boas razões, os espiritos prevenidos costumam soccorrer-se. Nós perguntariamos a esses apologistas imprudentes se a sociedade romana na epocha do imperio era ou não um charco das mais hediondas paixões, dos vicios mais abjectos, e se, apesar disso, o sacerdocio dos primitivos seculos se deixou corromper pelo ambiente pestifero em que respirava; se não foi pelo contraste das suas virtudes austeras, do seu respeito ás doutrinas evangelicas, que elle fez triumphar do paganismo a religião de Jesus e esmagou heresias muito mais importantes do que as do seculo xiii, sem recorrer ás impias catecheses do soldado ou do algoz. Perguntar-lhe-hiamos, por fim, se elles entendem que é o christianismo que póde actuar nas sociedades, para as regenerar quando corruptas, ou se, porventura, são ellas que pódem actuar no christianismo para o corromper, e se não é justamente no meio da perversão geral que o sacerdocio deve e póde representar melhor a sublimidade das doutrinas moraes de uma religião divina na sua origem e, por isso, incorruptivel e immutavel na sua essencia.
Apesar dos extremos rigores decretados para a repressão das heresias ou, talvez, por causa desses mesmos rigores, os bispos e as inquisições delles dependentes creadas em 1229 procediam mais frouxamente do que, no entender do papa, cumpria á extirpação do erro. A ordem dos dominicanos ou prégadores , que desde a sua origem fora o flagello dos heresiarchas, havia crescido assás, posto que não tanto como a dos menores, minoritas ou franciscanos, cujo desenvolvimento era, na verdade, prodigoso. Gregorio ix mostrava por aquelles novos institutos singular predilecção, sobretudo pelo primeiro. O seu proprio penitenciario e confessor era o dominicano hespanhol Raymundo de Peñaforte, e d’ahi se póde inferir qual sería a influencia da ordem e quanto as maximas do pontifice deveriam ser não diremos inspiradas por essa corporação, mas accordes com o pensamento della. Dava-se geralmente o cargo de inquisidores aos dominicanos, os quaes practicavam taes crueldades que não tardaram a ser expulsos violentamente (1233) de Tolosa, de Narbonna e de outras povoações da França meridional. A justiça deste acto, reconhecida pelos historiadores contemporaneos, o foi igualmente pelo legado do papa, que, restabelecendo nessas malfadadas provincias (1234) os frades inquisidores com as mesmas attribuições, ajunctou a cada commissão um minorita para temperar pela sua brandura o rigor dos dominicanos. Era um grito de remorso que escapava aos labios do fanatismo. Ao mesmo tempo que os processos inquisitoriaes renasciam alli, mais ou menos rigorosos, Gregorio ix, incumbia os confrades do seu confessor de exercerem exclusivamente o ministerio d'inquisidores na Lombardia com poderes, a bem dizer, discricionarios. Em Aragão, onde muitos dos perseguidos albigenses se tinham refugiado, havia-se estabelecido e organisado, em 1232, o systema dos inqueritos sobre materia de crença, recommendando especialmente o papa, nessa mesma conjunctura, ao metropolita da provincia terraconense que nomeiasse os prégadores para o exercicio deste ministerio. Assim, os implacaveis filhos de Domingos de Gusmão iam estendendo pela Europa a rede da perseguição contra os dissidentes.
No complexo das bullas e mais diplomas pontificios relativos aos precedentes factos sente-se que a Inquisição, como instituto distincto, na sua indole e objecto, da auctoridade episcopal, tendia rapidamente a constituir-se. Mas os papas procediam na materia com a destreza proverbial da curia romana. As resistencias que encontravam da parte dos prelados diocesanos e, até, das antigas ordens monasticas, que não podiam ver sem ciume os progressos das novas corporações mendicantes e, sobretudo, o poder dos dominicanos, aconselhavam a prudencia. Empregando-se o systema de providencias especiaes, cerceiando gradualmente a intervenção dos bispos nos negocios inquisitoriaes ou annullando-a de facto, sem a destruir de direito, seguia-se um caminho mais seguro. Em Aragão, por exemplo, recommendavam-se ao metropolita os dominicanos para inquisidores; na Lombardia dava-lhes o papa esse cargo, como uma delegação sua, e sem na respectiva bulla fazer a menor allusão aos prelados diocesanos. A politica romana occultava-se ou descubria-se mais ou menos, conforme as circumstancias o permitiam.
As actas do concilio narbonnense de 1235, em que intervieram os tres metropolitas de Narbonna, Arles e Aix, servem para fazermos sufficiente conceito dos progressos que o systema de perseguição regular e permanente obtivera desde o concilio de Tolosa. O primeiro facto notavel é que as resoluções da Assembléa de Narbonna são dirigidas aos frades prégadores por versarem unicamente sobre a repressão dos herejes. Assim, em relação a estes, o poder episcopal estava, se não de direito, ao menos de facto, inteiramente nas mãos da nova milicia papal. Ha, depois disso, no todo das disposições conciliares algumas particularidades assás significativas, Uma daquellas disposições é que fiquem suspensas as reclusões dos dissidentes condemnados a carcere perpetuo até definitiva resolução do pontifice, visto declararem os inquisidores ser tal a multidão dos que estavam nesse caso que não só falleciam recursos para construir masmorras, mas que, até, faltavam, quasi, pedras e cimento para isso. Outra é que se abstenham os frades, por honra da sua ordem, de impor penitencias pecuniarias e de practicar exacções contra os fiadores dos herejes fugidos contra os herdeiros dos que falleceram sem serem penitenciados em vida. Mas os prelados concluem por declarar que de nenhum modo pretendem coagir os inquisidores a acceitarem como preceptivas as regras estabelecidas no concilio, porque seria um menoscabo da discreta liberdade que lhes fora concedida no methodo de procederem, e que taes decisões não passam de conselhos amigaveis, com que desejam ajudar aquelles que fazem as suas vezes num negocio proprio dos mesmos signatarios.
Se esta conclusão não é uma amarga ironia, ella prova quão profundamente o episcopado se curvava já perante os inquisidores, como estes se consideravam exemptos da auctoridade diocesana, e como as tradições da antiga disciplina se achavam offuscadas. As recomendações ácerca das mulctas pecuniarias indicam que entre os inquisidores os interesses do céu não faziam esquecer absolutamente os da terra, e essa circumstancia nos está dizendo que já então se davam incentivos, menos desculpaveis do que um zelo cego, para achar tantos herejes e que nenhuns calabouços eram bastantes a conter só os sentenciados a reclusão perpetua.
Até o pontificado de Innocencio iv a historia dos progressos da Inquisição nada offerece notavel, senão um facto, d'onde se deduz que os abusos de que em seculos mais modernos ella foi acusada remontam aos tempos da sua fundação. Inventada para satisfazer os impetos do fanatismo; tendo, por isso, origem num sentimento impio, embora velado com o manto do enthusiasmo religioso, ella trazia comsigo o desenfreiamento de muitas outras paixões ruins, que igualmente se disfarçavam com as exterioridades do zelo christão. Os odio particulares, a cubiça, os desejos obscenos, quantas vezes não fariam bater debaixo dos escapularios os corações dos inquisidores! Quantas vezes o rosto austero, os olhos cavos e scintillantes do dominicano, erguidos para o céu no momento em que elle vibrava a condemnação e o anathema, não reprimiriam a custo a explosão do jubilo por ver, emfim, saciada uma longa sede de vingança! Um manicheu convertido, Roberto, por alcunha o Bulgaro (denominação que nalgumas partes se dava aos albigenses, patarenos e outros herejes), o qual professara na ordem dos prégadores, era, pelos annos de 1239, um dos mais ardentes perseguidores dos seus antigos co-religionarios. Por suas dilligencias, tinham sido queimadas de uma só vez, perante um grande concurso dos povos de Champagne, perto de duzentas pessoas tidas por hereticas. Em frei Roberto o zelo pela fé era illimitado, e insaciavel a sede de sangue. Protegido por Luiz ix, o seu nome tinha-se tornado o terror das provincias de Flandres, onde, a cada passo, ardiam as fogueiras accendidas por elle. Para que esse terror não diminuisse, onde não podia achar culpados queimava innocentes. A força, porém, do seu ardor veio a perdê-lo. Os gemidos de tantas victimas geraram suspeitas. Inquiriu-se do inquisidor e achou-se que era um malvado. Os seus crimes foram taes que o benedictino Matheus Paris, historiador coevo, diz que o melhor é guardar silencio ácerca delles. Tiraram-lhe o cargo e condemnaram-no a prisão perpetua. Com mais alguma prudencia , quem sabe se hoje o seu nome figuraria no amplo catalogo dos sanctos da ordem de S. Domingos?
Não só a penalidade contra os delictos de heresia se havia exacerbado com as leis do imperador Friderico, mas tambem as formulas do processo se tinham tornado mais severas desde que o conhecimento desta especie de causas pertencia, quasi exclusivamente, aos frades prégadores. Depois do concilio geral de Lyão de 1245, em que dois principes foram depostos, Friderico ii de Allemanha e Sancho ii de Portugal, celebrou-se um concilio provincial em Béziers, no qual se redigiu, por ordem de Innocencio iv, um regulamento definitivo sobre o modo de proceder contra os herejes. Este documento, que reproduz algumas provisões anteriores, tanto dos concilios, como dos papas, accrescentando-lhes outras novas, é assás importante, porque serviu de base a todos os posteriores regulamentos da Inquisição. Está distribuido em trinta e sete artigos, nos quaes se ordena, em substancia, que, chegando os inquisidores a qualquer logar, convoquem o clero e o povo e, depois de fazerem uma practica, leiam a patente da sua nomeiação e exponham os fins que se propõem, ordenando a todos os que se acharem culpados de heresia ou que soubessem que outrem o está a virem, num certo praso, declarar a verdade. Os que assim o cumprirem dentro daquelle praso, chamado tempo do perdão, ficarão exemptos das penas de morte, carcere perpetuo, desterro e confisco. Serão, depois, citados individualmente os que não se houverem apresentado no tempo prefixo, dando-se-lhes termo para comparecerem e liberdade para a defesa; mas, se esta não for satisfactoria e se não confessarem as suas culpas, serão condemnados sem misericordia, ainda submettendo-se elles ás decisões da igreja. Os nomes das testemunhas devem ser occultos aos réus, salvo se, declarando estes que têem inimigos e dizendo os nomes delles, se achar que são as mesmas testemunhas. Quaesquer pessoas criminosas e infames, por serem participantes no crime de heresia, devem ser admittidas por accusadores e testemunhas, á excepção dos inimigos mortaes do réu. Os que fugirem serão julgados como se estivessem presentes e, se quizerem voltar, mandá-los-hão prender ou darão fiança, a bel-prazer dos inquisidores. Os que recusarem converter-se fá-los-hão confessar-se como herejes em publico, para depois se relaxarem á justiça secular. A morte não absolve ninguem de perseguição: os herejes fallecidos serão condemnados, citando-se os seus herdeiros para a defesa. As penitencias não cumpridas, em todo ou em parte, pelos reconciliados durante a vida devem ser remidas pelos seus bens depois de mortos. Ficam condemnados a carcere perpetuo os relapsos, isto é, os que, depois de convertidos, recahirem ao erro, os contumazes, os fugitivos que vierem entregar-se e os apprehendidos depois do tempo do perdão. Regula-se a policia que deve haver entre estes individuos perpetuamente encarcerados, para os quaes se adopta o systema cellular, e igualmente se estabelece o modo de penitenciar os condemnados a pena menos dura. Ordena-se uma abjuração geral das heresias, feita por todos os habitantes daquellas provincias, e que os magistrados e officiaes publicos prestem juramento de ajudarem efficazmente os inquisidores e de exterminarem os herejes. Renova-se a instituição dos commissarios de parochia para fazerem continuas pesquizas pelas habitações, cabanas, subterraneos e esconderijos, destruirem estes e colherem ás mãos os dissidentes. Mandam-se arrasar as casas onde qualquer delles se haja occultado, e confiscar os bens dos donos. Estatue-se, finalmente, que os seculares não possuam livros latinos sobre objectos theologicos e que nem seculares, nem sacerdotes os possuam em vulgar sobre taes objectos. A’s trevas materiaes dos calabouços ficavam, assim, correspondendo cá fóra as trevas mais espessas do espirito.
Entretanto a morte do imperador Friderico, desapressando Innocencio iv de um terrivel adversario, deixava-o quasi unico arbitro da Lombardia e d’outras provincias d’Italia. Aproveitando a conjunctura, o papa resolveu constituir nesses territorios tribunaes d’Inquisição fixos e independentes, compostos de dominicanos e minoritas. Repugnava, na verdade, demembrarem-se as causas de heresia do foro episcopal e excluir-se a intervenção dos magistrados seculares, a quem, pelo antigo direito romano, pelo moderno imperial e pelo municipal das cidades d’Italia, competia a punição dos herejes. Esquivou-se a primeira difficuldade, creando-se em cada diocese um tribunal composto do bispo e do inquisidor, mas ficando tudo a cargo deste, ao passo que o prelado apenas ahi intervinha nominalmente ; esquivou-se a segunda, attribuindo-se a nomeiação dos novos assessores ao poder civil, mas por eleição dos inquisidores já em exercicio, e, além disso, auctorisando-se o magistrado civil do districto para mandar um agente seu com cada delegado da Inquisição que fosse sindicar pelas aldeias. Com estas e outras provisões, que, como observa frei Paulo Sarpi, tornavam os officiaes publicos mais servos do que collegas dos inquisidores, se fingiu respeitar as leis da igreja e as da sociedade. Em 1252 expediu-se uma bulla aos magistrados da Lombardia, Romagna e Marca Trivisana, providenciando-se ao que se julgava necessario para se favorecer o progresso da Inquisição. Os ministros deste tremendo tribunal ficavam por esta bulla auctorisados a compellir o poder secular a executar o que nella se ordenava por meio de excomunhões e de interdictos.
Cumpre aqui mostrar que tanto estas providencias relativas a uma parte da Italia, como as que successivamente se decretaram para o meio-dia da França e para outros paizes, não tiveram nunca o caracter de universalidade, nem a Inquisição tomou jámais a natureza de uma instituição geral da igreja. Apesar da sua acção ser, na realidade dos factos, superior á auctoridade dos bispos, cuja jurisdicção defraudava, o direito commum eclesiastico era sempre o mesmo em these, e ainda, ás vezes, na hipotese; porque, onde a Inquisição faltava, os bispos continuavam a conhecer das heresias pela fórma ordinaria, quando ellas surgiam nas respectivas dioceses.
A’ medida, porém, que os tribunaes d’Inquisição se multiplicavam, as reacções contra o seu barbaro procedimento multiplicavam-se tambem. Se parte a parte faziam-se aggravos fundos, que geravam vinganças, e as vinganças augmentavam a irritação, de que provinham novas atrocidades. Onde e quando os herejes ou reputados taes podiam recorrer ás violencias para obter desforço não as poupavam. A tolerancia e a resignação evangelicas tinham sido completamente banidas. A Inquisição, que era forte, tinha o cadafalso e a fogueira; a heresia, que era fraca, tinha o punhal. Era de uma parte o tigre que despedaçava; era da outra a vibora que se arrastava e, quando podia, cravava na fera os dentes envenenados. Os horrores das perseguições religiosas do seculo xiii poderão avaliar-se, aferindo-os pela triste historia das luctas civis de hoje. Carreguemos as cores do quadro com as negras tintas da ferocidade e ignorancia daquellas eras rudes e com as, ainda mais negras, do fanatismo religioso, cuja energia não soffre comparação com a do fanatismo politico. Conceberemos assim quão medonhas scenas se passariam nas provincias devastadas por um systema de catechese digno dos primeiros sectarios do islamismo. Ao passo que, depois de queimarem muitos dissidentes ou suppostos taes, eram assassinados em Aragão e em diversos logares os inquisidores Planedis, Travesseres e Cadireta, Pedro de Verona morria apedrejado em Milão, e outros por diversas partes. Aos inquisidores, que assim pereciam victimas do seu e do alheio fanatismo consideravam-nos como martyres, e os dominicanos ganhavam de dia para dia uma consideração e influencia illimitadas, que os franciscanos, seus emulos, procuravam combater, nascendo d’ahi disputas vergonhosas entre as duas ordens. O repugnante ajunctava-se ao horrivel, e diante de taes scenas a religião velava a face. A universidade de Paris era em geral adversa aos frades, sobretudo aos da ordem de S. Domingos. A lucta entre os mendicantes e aquella corporação, onde residia nessa epocha, talvez, a maior soma de luzes, foi longa e renhida, e as mutuas accusações, principalmente as da universidade contra os frades, produziram bastante escandalo para estes perderem muito da sua popularidade. Todavia, a universidade foi vencida, não só materialmente, porque os mendicantes tinham o favor do rei e do papa, mas tambem moralmente, porque não havia no meio dos seus habeis membros intelligencias capazes de luctarem vantajosamente com o principal campeão do monachismo mendicante, S. Thomaz de Aquino.
Foi nos principios desta contenda (1255-1256) que, pelas rogativas de Luiz ix, o papa, então Alexandre iv, generalisou a Inquisição em França. Foram nomeiados para presidirem a ella o provincial dos prégadores e o guardião dos menores ou franciscanos de Paris, continuando a subsistir separada a antiga Inquisição das provincias meridionaes. A principio, as instrucções dadas para se proceder na materia eram moderadas e em harmonia com o caracter do principe que impetrava a respectiva bulla, mas o papa foi successivamente aperfeiçoando a sua obra, e no fim daquelle pontificado os regulamentos da nova Inquisição eram aproximadamente accordes com os que regíam as mais antigas. Na verdade, Alexandre iv, numa das bullas relativas á Inquisição francesa, manda que no julgamento e condemnação dos réus sejam ouvidos os respectivos prelados diocesanos; mas a isto póde-se applicar a observação de Sarpi ácerca da nominal ingerencia dos officiaes publicos nos processos da Inquisição lombarda. O direito divino dos bispos era ferido por quasi toda a parte, e essa nova instituição, desconhecida nos doze primeiros seculos da igreja, elevava-se acima do episcopado.
Entretanto, nas provincias d’Italia, onde ella se havia plantado com as formulas mais absolutas, as resistencias eram taes que os papas viram-se obrigados a ir moderando essas formulas. As providencias de 1252 foram successivamente renovadas com modificações por Alexandre iv e Clemente iv, em 1259 e em 1265. Nem por isso, todavia, cessou a opposição, e os quatro papas immediatos acharam serios embaraços em dilatar a jurisdição inquisitorial. As causas principaes da repugnancia eram, por um lado, a severidade indiscreta dos frades inquisidores e as extorsões e violencias que faziam e, por outra parte, a má vontade dos municipios em pagarem as despesas que tinham de fazer com aquelles tribunaes. Cedeu-se, por fim, neste ponto e, além disso, para temperar a ferocidade inquisitorial, restituiu-se aos bispos uma parte daquella acção que de direito lhes pertencia em taes materias. Apesar de tudo, porém, a republica de Veneza só acceitou a Inquisição em 1289, ainda com maiores limitações e pondo-a debaixo da acção do poder civil, de modo que fosse considerada, não como uma delegação pontificia, mas como um tribunal do estado. Era por esse tempo que ella chegava em França ao seu apogeu, para declinar em breve, até se reduzir a uma instituição insignificante e desapparecer. Ainda em 1298, Philippe o Formoso promulgava uma ordenação na qual se estatuia que os heresiarchas e seus sectarios condemnados pelos bispos ou pelos inquisidores fossem punidos pelos juizes seculares, sem se lhes admittir appelação; mas já em 1302 o mesmo principe se oppunha ás usurpações do tribunal da fé em detrimento do poder civil, prohibindo aos inquisidores perseguissem os judeus por usuras e sortilegios e por quaesquer outros delictos que não fossem precisamente da sua competencia. Nos fins do mesmo seculo (1378), Carlos v pôs termo ao absurdo systema, sanccionado no concilio de Béziers, de se derribarem as habitações dos herejes, e fez esfriar o zelo dos ministros da Inquisição, ordenando que, em logar de herdarem uma quota dos bens das suas victimas, vencessem um estipendio regular. No seculo xvi a instituição estava morta em França, e os tenues vestigios que se encontram, naquella epocha, do cargo de inquisidor, representam antes a recordação dum titulo innocente dado a alguns dominicanos de Tolosa do que os restos de uma terrivel realidade.
A Inquisição, como já dissemos, tinha quasi desde os seus começos penetrado na Peninsula, e o Aragão, onde as heresias que lhe deram origem haviam tambem penetrado, foi o theatro das suas crueldades. Ahi, como por outras partes, ella encontrava resistencias, e alguns inquisidores, conforme vimos, cahiram victimas da vingança daquelles que implacavelmente perseguiam. De uma bulla dirigida ao bispo de Palencia em 1236 deduz-se que este tribunal de sangue entrara tambem em Castella; mas o castigo de varios herejes, em tempo de Fernando iii, parece antes indicar que entre os castelhanos subsistia, nesta parte, a antiga disciplina. Na verdade, por um grande numero de diplomas pontificios pertencia ao provincial dos dominicanos hespanhoes nomeiar inquisidores apostolicos, isto é, dependentes directamente da curia romana, em todos os logares onde os julgassem necessarios para cohibir os erros de fé; mas o que resulta da historia é que, durante o seculo xiii, elles só existiram permanentemente nos estados da coroa de Aragão. Em Portugal não se mostram nessa epocha vestigios da nomeiação de um unico inquisidor para exercer as funções do seu ministerio em parte alguma. As tentativas do dominicano Sueiro Gomes para fazer vigorar no paiz certas leis, que parece tendiam a lançar os fundamentos do systema inquisitorial, foram energicamente repellidas por Affonso ii, o qual, nas cortes de 1211, regulara a penalidade contra os herejes, mas herejes que fossem havidos por taes em virtude do julgamento dos prelados diocesanos, conforme a legitima disciplina da igreja. Depois, por occasião do celebre processo dos templarios, no principio do seculo xiv, a bulla de Clemente v dirigida a D. Dinis, para que procedesse contra os cavalleiros daquella ordem nos seus reinos, parece presuppor a existencia de inquisidores em Portugal, onde, de feito, podia havê-los, em virtude do poder que para os instituir residia no provincial dos frades prégadores; mas nem restam memorias da sua intervenção naquelle ou noutro processo sobre materias de fé, nem a bulla, especie de circular aos principes christãos, prova que elles existissem de facto. As suspeitas de que em Portugal se tinham introduido alguns erros de doutrina suscitaram em 1376 uma bulla de Gregorio xi a Agapito Colonna, bispo de Lisboa, pela qual o papa o encarregava, visto não haver inquisidores neste pais, de escolher um franciscano, dotado dos requisitos necessarios para o mister de inquisidor, o qual, revestido de todos os poderes que o papa lhe conferia, verificasse a existencia das heresias e zelosamente as perseguisse e extirpasse. Frei Martim Vasques foi o escolhido, e é este o primeiro de quem consta que fosse, determinada e especialmente, revestido desse cargo [1]. As nomeiações successivas dos franciscanos frei Rodrigo de Cintra (1394) e frei Affonso de Alprão (1413) e do dominicano frei Vicente de Lisboa (1401) não têem valor algum historico. Não passavam, provavelmente, de qualificações obtidas para satisfazer vaidades monasticas, e eram, talvez, resultado da emulação das duas ordens rivaes, a dos menores e a dos prégadores. Accrescia a isso o haver então dous papados, um em Avinhão, outro em Roma, e obedecerem os castelhanos a um e os portugueses a outro, do que resultava não reconhecerem os dominicanos de Portugal o seu provincial de Castella, que reputavam scismatico, e a quem, todavia, andava annexo o ministerio de chefe dos inquisidores. D’ahi procediam mil questões fradescas, indignas da attenção da historia. O que importa a esta, porque interessa á humanidade, é que esses inquisidores, franciscanos ou dominicanos, com autoridade legitima ou sem ella, revestidos, perpetua ou accidentalmente, de um poder fatal, não usaram ou abusaram delle para verter sangue humano, ou, se practicaram alguma atrocidade, a memoria de taes factos não chegou até nós. Essas mesmas intrigas insignificantes cessaram com a separação dos dominicanos portugueses dos seus confrades castelhanos, formando uns e outros no seculo xv duas provincias distinctas, e ficando, segundo se diz, o provincial português revestido do titulo vão de inquisidor geral do seu paiz e da faculdade de lisongeiar alguns dos subditos com a qualificação de inquisidores especiaes.
Se, no seculo xiv, a Inquisição era em Portugal uma cousa, a bem dizer, nulla e, no xv, se achava reduzida a uma ridicularia fradesca, não succedia o mesmo no resto da Peninsula, ao menos no Aragão, onde os autos-de-fé se repetiam, no seculo xiv, com curtos intervallos. Ahi, bem como em Castella, os inquisidores intervieram mais ou menos activamente no processo dos templarios. Depois, os dominicanos Puigcercos, Burguete, Costa, Roselli, Gomir, Ermengol e outros associaram o seu nome á perseguição e ao exterminio de muitos individuos accusados de heresia, nas provincias de Valencia, Aragão e Ampurias. Entre elles, porém, avulta frei Nicolau Eymerico, inquisidor geral da monarchia aragonesa. A’ actividade com que perseguia aquelles que julgava deslisarem da fé catholica este celebre fanatico ajunctou os trabalhos juridicos, escrevendo o Directorio dos Inquisidores, corpo de toda a legislação civil e canonica e de toda a jurisprudencia então existentes sobre os crimes que a Inquisição era destinada a processar e punir. As provas do incansavel zelo de Eymerico e dos seus delegados, durante a segunda metade do seculo
Mas o tempo em que os excessos da intolerancia, circumscriptos até então, na Peninsula, quasi exclusivamente aos estados de Aragão, deviam abarcar a Hespanha inteira, era, emfim, chegado. Em logar desses accessos phreneticos de ferocidade com que se manifestara durante quasi tres seculos, a Inquisição ía tornar-se, na realidade dos factos, o que até então só fora na apparencia, uma instituição permanente e activa, procedendo nas trevas, fria, calculada, implacavel em todos os seus actos, preparando-se em silencio para assoberbar, não só os povos e os principes, mas tambem os proprios pastores da igreja. E’ nos fins do seculo xv que se póde fixar o estabelecimento da Inquisição como tribunal permanente, com superintendencia exclusiva sobre todas as aberrações da doutrina catholica e revestido dos caractéres e tendencias que nos seculos seguintes lhe conciliaram tão triste celebridade. Foi então que o episcopado se resignou a perder de todo, na practica ao menos, uma das suas mais importantes funcções e um dos seus mais sagrados direitos, quebra deploravel da antiga disciplina da igreja, contra a qual apenas nos apparecem depois as raras e inuteis protestações de um ou d'outro prelado que ousava ainda lembrar-se das prerogativas episcopaes.
Isabel, mulher de Fernando de Aragão rei de Sicilia, subira ao throno de Castella por morte de seu irmão Henrique iv (1474). Fallecido D. João ii rei de Aragão, Fernando de Sicilia, seu filho, succedeu naquella coroa (1479) e assim se acharam unidos os dois mais poderosos estados da Peninsula. O reino de Granada era o que apenas restava ao islamismo de todos esses estados mussulmanos que se tinham estabelecido áquem do Estreito. Fernando, principe ambicioso e guerreiro, não tardou em submettê-lo, bem como o reino christão de Navarra, do qual despojou o seu ultimo soberano, João de Albret. Ao aproximar-se, pois, o fim do seculo xv, a Hespanha, á excepção de Portugal, formava uma só monarchia, sob o regimen de Fernando e Isabel, embora nas formulas externas continuassem, até certo ponto, a sobreviver as diversas nacionalidades que nela existiam. Nascido no paiz onde, durante a idade média se conservara, mais ou menos fulgurante, mas sempre acceso, o facho da intolerancia material, Fernando v teve a triste gloria de ser o fundador da moderna Inquisição hespanhola. O inquisidor siciliano, frei Philippe de Berberis, vindo a Hespanha pedir aos reis catholicos a confirmação de um antigo privilegio, pelo qual a terça dos bens dos que eram condemnados como herejes ficava pertencendo aos seus julgadores (arbitrio excellente para achar culpados), depois de obter favoravel despacho, tractou de persuadir o principe aragonês de quanto sería conveniente estabelecer na Peninsula o tribunal permanente da Inquisição. Ajudava-os neste empenho o prior dos dominicanos de Sevilha, Hojeda; e o nuncio do papa, que via as vantagens que d’ahi podiam resultar para a curia romana, protegia com todo o vigor o empenho dos dous frades. Para se dar maior plausibilidade á pretensão, appareceram instantaneamente casos de desacato contra as cousas sagradas, casos na verdade secretos, mas quasi milagrosamente revelados. Ao menos, o dominicano Hojeda denunciava-os, e Fernando v estava predisposto a acreditá-los. As accusações de actos sacrilegios, occultamente practicados, recahiam sobre familias de raça hebraica, e as familias desta raça eram as mais ricas d’Hespanha. Condemnados os judeus como herejes, os seus bens seríam confiscados, ao menos em grande parte, e o incentivo para excitar o zelo religioso do monarcha era assás forte. Antepunha-se, todavia, uma difficuldade. Isabel, a catholica, repugnava a admittir na monarchia castelhana e leonesa a continua representação das scenas que eram consequencia forçosa do estabelecimento daquele sanguinario tribunal e que repugnavam á brandura da sua indole. Os votos dos conselheiros, que o rei e os dominicanos tinham imbuido das proprias idéas, moveram, emfim, o animo da rainha, fazendo-lhe crer que a adopção do tribunal da fé era altamente proficua e, talvez, indispensavel aos progressos do catholicismo. Cedeu por fim; e o bispo d’Osma, embaixador de Castella juncto á corte de Roma, recebeu ordem para supplicar ao papa a expedição de uma bulla pela qual se creasse em Castella aquelle tribunal.
As causas que tinham dado origem á Inquisição antiga tinham desapparecido. As heresias dos albigenses e dos outros sectarios que no seculo xiii ameaçavam de grande ruina a igreja eram assás importantes e derramavam-se com rapidez, subministrando, assim, motivos aos que não tinham bastante fé na indestructibilidade do catholicismo para procurarem livrar-se do proprio terror espalhando-o, tambem, entre os adversarios. A heresia tinha principes que a protegiam, soldados que combatiam por ella, e as vinganças sanguinolentas contra os heresiarchas e seus fautores não se executavam sem risco. O ferro açacalava-se e a fogueira accendia-se em ambos os campos. Era uma lucta selvagem, atroz, anti-christan; mas era uma lucta: tinha o que quer que fosse nobre e grandioso. A Inquisição era um meio impio de extermínio, como qualquer outro dos que então se empregavam. Nos fins do século xv, na Hespanha, as circumstancias vinham a ser absolutamente diversas. Os erros de fé, se appareciam á luz, não passavam de opiniões singulares e sem sequela; manifestavam-se raramente num ou noutro livro, sem echo entre as multidões, e, ainda nesses raros casos, não custava muito a obter a retractação do auctor. Contra quem, pois, se buscava estabelecer, de um modo novo e dobradamente efficaz, a perseguição permanente sob as formulas de magistratura ordinaria? Quasi só contra os judeus. Importa, por isso, conhecer qual era, nas ultimas decadas do século xv, a situação dessa raça, que constituía um povo separado e, ao mesmo tempo, uma seita distincta no meio da população hespanhola.
As familias de origem judaica eram numerosissimas na Peninsula, por motivos que não é nessario historiar aqui. Dotada de boas e de más qualidades em subido grau, essa gente distinguiu-se em todas as epochas pela pertinacia invencivel, pela ancia do ganho, levada até a sordidez, pela astucia e o amor ao trabalho. Vivendo por seculos entre os sectarios das duas grandes religiões do mundo civilisa-do, o christianismo e o islamismo, desprezados, quando não detestados, por elles, affeitos a supportar em silencio humilhações de mais de um genero e sujeitos a distincções odiosas, os judeus deviam, necessariamente, retribuir aos seus oppressores com sentimentos analogos. Na verdade, se compararmos a sorte delles durante a idade média com as perseguições atrozes de que foram victimas nas seguintes epochas, póde-se dizer que os seculos barbaros se mostraram altamente tolerantes; mas a tolerancia era inteiramente material. Deixavam-nos viver na sua crença, exercitar as suas profissões, fruir pacificamente dos bens que adquiriam; mas as leis civis que os protegiam harmonisavam-se, de certo modo, com as doutrinas canonicas. A injuria ía envolta, desde logo, nas provisões dessas leis beneficas, e a protecção nem sempre se estendia até a vida moral do hebreu. Eram obrigados a viver em bairros separados, a trazer distinctivos nas vestiduras, não podiam exercitar certos cargos publicos e, ainda nos actos da vida social, iam a cada momento encontrar uma usança, uma formula legal que lhes recordasse a reprovação que pesava sobre a sua raça. Desta inferioridade consolava-os até certo ponto, o bem estar material, tanto mais appreciavel quanto mais a humilhação fosse gastando nelles o sentimento da nobreza e da dignidade humanas. Os recursos economicos da Peninsula estavam, em grande parte, nas suas mãos. Laboriosos e regrados, excluidos das situações brilhantes e, portanto, exemptos das ostentações de luxo, o commercio e a industria fabril, no mais lato sentido destas palavras, eram as suas profissões predilectas, e o resultado dellas a posse da melhor parte da riqueza monetaria. Dispensados de brios e pundonores cavalleirosos, pela condição em que os haviam collocado, a usura, exercida com a dureza e o frio calculo que os desprezos da sociedade legitimavam nelles, vinha muitas vezes metter em seus cofres os valores creados pela industria agricola, principal mister das populações christans. As guerras continuas daquellas epochas semi-barbaras e um mau systema de fazenda publica punham, a cada passo, os principes em terriveis apuros, os quaes os obrigavam a levantar sommas avultadas, que só os judeus podiam subministrar-lhes. Aproveitando estas e outras circumstancias, obtinham o meneio das rendas do estado, sobretudo como arrematantes dellas, e, aconselhados ao mesmo tempo pelo presentimento e pela cubiça, retribuiam com oppressões o envilecimento. Não podendo luctar com elles nas relações economicas e tornados em grande parte seus devedores, os christãos iam convertendo gradualmente em odio o antigo desprezo. A aversão popular cubria-se com o manto religioso e, até certo ponto, estribava-se na antinomia das crenças; mas as causas principaes desse desfavor eram mais grosseiras e terrenas. As manifestações da malevolencia geral contra os judeus foram frequentes pelo decurso da idade média. As rixas e os motins da plebe, aconselhados pelo fanatismo e excitados pela inveja, repetiam-se por muitas partes, já nos seculos xii e xiv. Nos fins deste ultimo (1391) suscitou-se um tumulto violento, que se propagou pelas villas e cidades de diversas províncias de Hespanha, durante o qual mais de cinco mil judeus foram assassinados. Como para essa horrivel matança se invocava o pretexto da religião, e a raça hebréa era naturalmente dissimulada e timida, apenas constou que alguns haviam escapado á morte declarando que pretendiam receber o baptismo, milhares de judeus reconeram ao mesmo expediente, e os templos atulharam-se de individuos de ambos os sexos e de todas as condições e idades, declarando-se convertidos. Calculam-se em mais de cem mil as familias que nesta conjunctura abandonaram ostensivamente a lei de Moysés. As prédicas dos missionarios, que aproveitavam o terror para promover os triumphos do christianismo, produziram facil effeito, e novas conversões, verdadeiras ou simuladas, seguiram as anteriores. S. Vicente Ferrer distinguiu-se nos primeiros annos do século xv entre esses apostolos zelosos. O impulso estava dado. Os exemplos da apostasia, tão frequentes, incitavam os ambiciosos a abandonar a crença de seus paes para attingirem aos cargos e dignidades de que o judaismo os excluía. Estes diversos motivos faziam milhares d’hypocritas, mas poucos christãos sinceros. Depois, quando o terror ía asserenando em uns e a ambição de outros se achava satisfeita, o arrependimento fazia seu officio, e, segundo se affirmava, e era provavel, a maior parte dos que haviam abjurado voltava depois secretamente aos ritos do judaismo.
Todavia, como a diversidade de crença era a causa menos forte da malevolencia popular contra os judeus, essa malevolencia, se já não tão perigosa para os convertidos, nem por isso ficava amortecida. Aos christãos-novos, denominação geral dos que haviam abandonado o mosaismo, dava o vulgo os nomes de conversos e de confessos e, ainda, o de marranos, alcunha injuriosa, que na idade média equivalia a maldicto. Por mais que os neophytos occultassem o seu regresso ás tradições religiosas da lei velha, por mais pontualmente que guardassem as formulas externas do culto christão, não era possivel que alguns, entre tantos, deixassem de trahir a dobrez do seu procedimento. Além disso, não tendo valor para quebrar o tracto com os parentes e amigos que, mais audazes ou mais fervorosos, se tinham conservado fiéis á doutrina mosaica, elles tornavam plausiveis as insinuações do odio, fortificando as suspeitas populares com essa intimidade dos seus antigos co-religionarios.
Do rapido bosquejo que traçámos da origem e progresso da Inquisição antiga resulta um facto. E’ que essa manifestação da intolerancia não ultrapassava os limites da sociedade christan. Nesta parte, a igreja ía accorde com as suas tradições primitivas. O individuo que por nascimento ou por espontanea deliberação não pertencia a essa sociedade não devia estar sujeito ás leis della. Só aquelle que podia participar pelo baptismo das recompensas da outra vida era passivel das penas comminadas contra os membros corruptos do gremio. A perversão dos tempos tinha trocado os castigos espirituaes de uma associação inteiramente espiritual pelos corporaes. Era um erro na formula externa, mas o principio, quanto ao âmbito da acção da magistratura ecclesiastica, ficara intacto. Assim, a Inquisição antiga deixara em paz os judeus e os mussulmanos, ainda nos tempos dos seus maiores furores. Na verdade, a historia ecclesiastica subministra-nos um ou outro exemplo de judeus condemnados pelos bispos ou pelos inquisidores por actos relativos ao culto; mas isso acontecera quando o delinquente havia offendido de proposito deliberado a religião ou quando tinha empregado cousas sanctas para alguma superstição impia. Embora a punição de taes attentados, cuja verdadeira índole era civil, devesse pertencer aos principes seculares, como protectores da igreja , tal procedimento merecia, até certo ponto, desculpa, porque a igreja, forte e dominadora, repellia por esse modo uma provocação, uma injuria recebida.
A Inquisição, porém, cujo estabelecimento Fernando e Isabel pediam a Roma, assentava em bases moralmente mais ruinosas do que a antiga. Não era só a materialisação das penas que a tornava desde logo absurda e anti-christan: era-o tambem a causa, o principio da sua existencia. A conversão da maioria dos sectarios do mosaismo fora a todas as luzes uma violencia, a graça que os alumiara fora o terror da morte. Entre o martyrio e o fingimento tinham preferido o ultimo. Procedendo assim, usavam de um direito natural. Se, maldizendo interiormente o Christo no mesmo acto em que recebiam o baptismo, commettiam um sacrilegio, ficavam livres de imputação diante de Deus, e a responsabilidade recahia exclusivamente sobre a multidão que assassinara seus irmãos e sobre os que a excitavam a taes demasias. Todos os sophismas do fanatismo ou da hypocrisia são impotentes contra a verdade destas doutrinas, accordes com a consciencia, com a razão humana e com o espirito do evangelho. Póde-se affirmar que a nova Inquisição, independente do absurdo das suas formulas, da atrocidade dos seus ministros, da iniquidade relativa das suas resoluções pelas circumstancias e fins da propria instituição carecia absolutamente de sancção moral. As suas sentenças de morte não eram, não podiam ser, na maior parte dos casos, senão assassinios juridicos.
Como era natural, as supplicas de Fernando e Isabel foram attendidas em Roma. No 1.° de novembro de 1478, Sixto iv expediu uma bulla, pela qual auctorisava os reis de Castella e Aragão para nomeiarem tres prelados ou outros ecclesiasticos revestidos de dignidades, quer seculares quer regulares, de bons costumes, de mais de quarenta annos de idade, e theologos ou canonistas de profissão, a cujo cargo ficasse o inquerir em todos os dominios de Fernando e Isabel ácerca dos herejes, apostatas e seus fautores. Concedia-lhes o papa a jurisdicção necessaria para procederem contra os culpados, em harmonia com o direito e costume estabelecidos, e permittia aos dous soberanos demitti-los e nomeiar outros, conforme o julgassem opportuno.
Como á rainha tinha repugnado a impetração desta bulla, os seus ministros demoraram a execução della. Quiz-se primeiro recorrer a menos severos expedientes. O cardeal arcebispo de Sevilha publicou expressamente um catechismo para os neophytos e recommendou aos pastores seus subditos que tractassem de explicar-lhes convenientemente as doutrinas catholicas. Pedro d’Osma, tendo por este tempo sustentado algumas proposições contrarias ao dogma, foi citado perante uma juncta de theologos nomeiada pelo primaz das Hespanhas, o arcebispo de Toledo. Convencido do seu erro, retractou-se, e não se procedeu mais contra elle. Succedendo fazer certo judeu correr naquella conjunctura um livro em que a administração publica e a religião do estado eram acremente combatidas, em vez de o perseguirem, frei Fernando de Talavera, confessor da rainha, pegou na pena e refutou-o. Entretanto, nas cortes de Toledo, reunidas nos principios de 1480, procurava-se obstar a que o tracto e convivencia constante dos novos convertidos com os seus antigos co-religionarios fosse incentivo para recahirem no judaismo. Renovaram-se e ampliaram-se, por esse motivo, os regulamentos que interpunham barreiras materiaes e moraes entre os sectarios da lei velha e os catholicos, taes como o que impunha aos judeus o dever de habitarem sómente nos bairros separados a que chamavam judearias, e o de se recolherem para alli antes de anoitecer, o de trazerem signaes nos vestidos, e o de lhes serem prohibidas as profissões de medicos, de cirurgiões, de mercadores, de barbeiros e de taberneiros, com o que se removia a necessidade de um contacto frequente entre elles e o povo, nomeiadamente o das classes infimas.
Pouco depois, ordenou-se a frei Affonso de Hojeda, ao bispo de Cadix e ao governador de Sevilha que examinassem o effeito que estes meios indirectos tinham produzido. Hojeda era dominicano, e o rei e o nuncio do papa estavam empenhados em que se désse execução á bulla de 1478. Os meios brandos que Isabel preferia foram reputados insufficientes. Os dominicanos e o nuncio trabalhavam incessantemente. Por fim, a rainha consentiu no estabelecimento definitivo da Inquisição. A 17 de setembro de 1480 foram nomeiados primeiros inquisidores frei Miguel de Morillo e frei João de S. Martinho, ambos da ordem dos prégadores, dando-se-lhes por assessor João Rodrigues de Medina, clerigo secular. Um capellão da rainha, João Lopes del Barco, foi-lhes adjuncto como procurador fiscal. Sevilha parece ter sido o logar onde naquelle tempo residiam mais christãos-novos, visto que, até então, as attenções do governo para alli principalmente se haviam dirigido. Escolheu-se, portanto, Sevilha para ahi se estabelecer o tribunal. Apesar, porém, das prevenções populares contra os christãos-novos, elle foi recebido geralmente com repugnancia pelos habitantes daquella provincia. Os fidalgos que alli possuiam terras privilegiadas consideraram-nas do mesmo modo exemptas da acção dessa magistratura, que, se por um lado era religiosa, era pelo outro civil, e os officiaes e delegados da coroa acceitaram essa interpretação dos privilegios nobiliarios. Resultou disto saírem quasi todos os christãos-novos das povoações regalengas para as de senhorio particular. As terras do duque de Medina Sidonia, do marquez de Cadix, do conde dos Arcos e de outros nobres cubriam-se de fugitivos. Tomaram-se então por parte da coroa severas providencias contra os foragidos, e os inquisidores consideraram-nos, pelo facto da fuga, como quasi convictos de heresia. A perseguição estava, emfim, organisada.
Erecto o novo tribunal, o seu primeiro acto foi obrigar por um edicto os nobres que tinham dado guarida aos conversos a mandá-los presos a Sevilha, sob pena de exauctoração e confisco, além das censuras ecclesiasticas . O numero dos capturados foi em breve tão avultado, que o tribunal e as prisões tiveram de se mudar do convento dos dominicanos para o castello de Triana, nos arrabaldes da cidade. Pouco depois, os inquisidores publicaram segundo edicto, a que chamavam de perdão e em que convidavam os que haviam apostatado a virem espontaneamente, dentro de certo praso, confessar as suas culpas, com o que evitariam o castigo e obteriam absolvição. Assim o fizeram alguns; mas, como a mira dos inquisidores era descubrir victimas, negando-se a cumprir as promessas do edicto emquanto os que as tinham acceitado não denunciassem, debaixo de juramento, quantos apostatas conhecessem e, até, aquelles de que unicamente tivessem ouvido falar. Debaixo, tambem, de juramento, foram além disso, obrigados a guardar absoluto silencio sobre as delações que delles se exigiam. Deste modo os inquisidores vendiam aos desgraçados os bens e a vida a troco de trahirem seus irmãos. Expirado o praso fatal, publicou-se terceiro edicto, no qual se ordenava, com as mais graves ameaças, que, dentro de tres dias, se denunciassem todos os herejes judaisantes. Naquella especie de manifesto o tribunal estabelecia uma serie de indicios, cada um dos quaes bastava para reconhecer os criminosos. A maior parte desses indicios eram ridiculos, e outros poderiam apenas provar que os cristãos-novos conservavam certos habitos da vida civil contrahidos na infancia, sem que semelhantes habitos fossem necessariamente um signal do seu apego ás doutrinas mosaicas. Por este meio sería facil achar milhares de culpados, ainda quando nenhum existisse.
E a Inquisição depressa os encontrou. Nos fins de 1481, só em Sevilha, perto de trezentas pessoas tinham padecido o supplicio do fogo, e oitenta haviam sido condemnadas a carcere perpetuo. No resto da provincia e no bispado de Cadix, duas mil foram, nesse anno, entregues ás chammas, e dezesete mil condemnadas a diversas penas canonicas. Entre os suppliciados contavam-se muitas pessoas opulentas, cujos bens reverteram em beneficio do fisco. Para facilitar as execuções, construiu-se em Sevilha um cadafalso de cantaria, onde os christãos-novos eram mettidos, lançando-se-lhes depois o fogo. Este horrivel monumento, que ainda existia nos começos do presente seculo, era conhecido pela expressiva denominação de Quemadero.
Entretanto, o terror fazia com que abandonassem a Hespanha milhares de familias de origem judaica, acolhendo-se umas a Portugal, outras a França, á Africa, e, até, á Italia. Os que se refugiaram em Roma recorreram ao pontifice e acharam nelle favor. A curia romana adoptou desde logo nesta materia aquelle systema de variação e dobrez cujos vergonhosos motivos comprehenderemos claramente na prosecução deste trabalho. O papa expediu em 29 de janeiro de 1482 um breve, dirigido a Fernando e Isabel, em que se queixava das injustiças practicadas pelos inquisidores e declarava que, se não fosse haverem sido nomeiados por carta regia, os teria destituido; mas que revogava a licença para se nomeiarem outros, restabelecendo a autoridade do provincial dos dominicanos, cujos direitos se haviam offendido na bulla de um 1 de novembro de 1478, por engano da dataria apostolica. Seguiu-se a este outro breve, em que se nomeiavam inquisidores o geral dos prégadores e mais sete frades da mesma ordem, para exercerem o seu ministerio de accordo com os prelados diocesanos, observando a ordem de processo que se lhes estabelecia numa bulla especial. Não é precisamente conhecido o sistema adoptado nesta ultima provisão papal; o que consta é que suscitou grandes clamores e que o poder civil, que se curvara ás anteriores decisões de Roma, representou contra elle. O papa respondeu dando uma explicação analoga á que se lê no breve de 29 de janeiro. Estas novas providencias seriam reconsideradas, por haverem sido tomadas de leve por voto de alguns cardeaes que tinham fugido de Roma por causa da peste. Entretanto ellas ficariam suspensas, conformando-se os inquisidores nos seus actos com o direito commum e bullas apostolicas, ouvidos os prelados diocesanos.
Neste tempo a corte de Castella apresentava uma nova pretensão perante o papa. Era a de organisar definitivamente a Inquisição, dando-lhe a fórma de tribunal supremo, sem appelação para Roma. Sixto iv repugnava a isso. Por fim, conveio-se na criação de um juiz apostolico em Hespanha, o qual julgasse todas as appelações interpostas da Inquisição. Expediram-se ao mesmo tempo breves aos diversos metropolitanos para que intimassem quaesquer bispos seus suffraganeos que fossem de raça hebréa para se absterem de intervir nos processos relativos a questões de fé, nomeiando inquisidor ordinario o respectivo provisor ou vigario geral ou, se este estivesse no mesmo caso, um ecclesiastico de sangue limpo, ficando o metropolitano auctorisado para fazer a escolha onde o bispo se opposesse a esta providencia. Finalmente, por outro breve, foi nomeiado juiz das appelações o arcebispo de Sevilha, D. Inigo Manrique. Na apparencia, o papa entregava assim os judeus hespanhoes aos seus perseguidores, mas a concessão de um juiz supremo em Hespanha não passava de uma decepção. Era impossivel ceder a curia romana de boa vontade os proventos da revisão das culpas atribuidas a homens em grande parte opulentos e que mutuamente se protegiam. Apesar da nomeiação de Manrique, continuaram, sem interrupção, a receber-se em Roma as appelações dos christãos-novos condemnados pela Inquisição. Emfim, o papa dirigiu a Fernando e a Isabel uma bulla, datada de 2 de agosto de 1483, na qual declarava ter attendido ás supplicas de varios individuos que, receiando-se de ser ainda peior tractados pelos arcebispos do que pelos inquisidores, haviam recorrido á curia; que parte delles já tinham sido absolvidos pel Penitenciaria apostolica, mas que lhe constava que os perdões concedidos pela sancta sé eram em Sevilha reputados nullos, continuando-se os processos desses individuos e queimando-se alguns em estatua, emquanto não l’ho podiam fazer corporalmente; que, portanto, resolvera incumbir este negocio aos auditores da camara apostolica, declarando terminados taes processos em Hespanha e ordenando ao arcebispo de Sevilha e mais prelados que admittissem á reconciliação todos os que a pedissem, ainda estando condemnados ao supplicio das chammas. Impunha-lhes igualmente a obrigação de absolverem aquelles que se apresentassem com breves para isso e de reputarem como absolvidos os que o houvessem sido pela Penitenciaria romana. O papa concluia por aconselhar os dous príncipes a protegerem os seus subditos e a preferirem ao rigor a brandura e a caridade.
Mas esta bulla era uma decepção, após outra decepção. Ao lê-la, dir-se-hia que o amor da justiça e o espirito da mansidão evangelica a haviam inspirado. Por ella, a intolerancia e o fanatismo recebiam um golpe fatal, e a Inquisição perdia a força e ficava cohibida nos seus excessos. Porém, onze dias depois, praso demasiado curto, em que o diploma pontificio não podia ser recebido na corte de Hespanha, nem chegarem a Roma representações contra elle, o papa escrevia a Fernando de Aragão que, tendo reconhecido haversee expedido aquella bulla com summa precipitação, achara conveniente revogá-la. Effectivamente, dava-se uma razão para este dobre procedimento: os breves a favor dos que individualmente os tinham requerido, os perdões da Penitenciaria e o proprio diploma de 2 de agosto, requeridos, sollicitados, expedidos e pagos, não podiam produzir mais de um ceitil para a curia romana. A sua execução ou não execução eram cousas que pouco importavam. Voltando de Roma leves de dinheiro e providos amplamente de vãos pergaminhos, alguns christãos-novos, tirando em Portugal perante o bispo d’Évora, D. Garcia de Menezes, copias authenticas da bulla de protecção, apresentaram-se em Sevilha. Mas o papa tinha a tempo occorrido ao mal. Confirmadas as anteriores sentenças da Inquisição por Inigo Manrique, elles foram pontualmente queimados, e os seus bens appropriados definitivamente ao fisco, do qual só escapara o ouro dispendido em Roma. Assim, conciliavam-se todos os interesses, e o resultado de tão destro procedimento devia fazer rir bastante o pio rei D. Fernando de Aragão, os inquisidores e o papa.
Não só a precipitação com que a bulla de 2 de agosto se expedira foi remediada pela suspensão dos seus effeitos, mas tambem se tractou de dar uma organisação mais precisa ao systema inquisitorial, fortificando-o com a criação do cargo de inquisidor geral e com a de um conselho supremo da Inquisição. Entre os frades dominicanos que, em consequência do breve de 29 de janeiro de 1482 contra as violencias dos inquisidores escolhidos pelo governo, foram nomeiados pelo papa, juntamente com o geral da ordem, para exercerem aquelle ministerio (visto que, por esse mesmo breve, Sixto iv retirava aos reis catholicos a faculdade de elegerem mais algum) contava-se um certo frei Tomaz de Torquemada. Foi este o escolhido para primeiro inquisidor-mór de Castella. São obscuras as circumstancias que se deram na sua eleição para tão importante cargo, inclusivamente a data dessa eleição. Sabemos só que elle, já inquisidor geral de Castella, foi revestido da mesma dignidade no Aragão, por breve de 17 de outubro de 1483. Os amplos poderes attribuidos áquelle novo officio receberam em 1486 a confirmação da sé apostolica. Torquemada, cujo nome se tornou na historia o symbolo da mais cruel intolerancia, estabeleceu desde logo quatro tribunaes subalternos em Sevilha, Cordova, Jaen e Ciudad-Real (o ultimo dos quaes se transferiu, em breve, para Toledo), dando, além disso, commissão aos outros frades que, com elle, haviam sido nomeiados pelo papa em 1482, para exercerem o mister d’inquisidores em varias dioceses, Estes cederam de má vontade ás ordens do seu chefe, porque se reputavam dependentes immediatamente de Roma; porém Torquemada dissimulou com elles. Entretanto, para fortificar a sua auctoridade e regular melhor o systema de exterminio que concebera, escolheu por assessores dous jurisconsultos e com elles redigiu um codigo da Inquisição, cuja fonte principal parece ter sido o livro que no seculo antecedente Nicolau Eymerico escrevera sobre tal materia. Ao mesmo passo Fernando v, cujas idéas e designios se casavam maravilhosamente com os do inquisidor-mór, creava um conselho real da Inquisição, que ahi representasse o poder civil. Torquemada foi declarado presidente delle, e conselheiros o bispo eleito de Mazara e os dous doutores em leis, Sancho Velasques de Cuellar e Ponce de Valencia. O voto deliberativo dos tres conselheiros devia limitar-se ás questões civis: nas materias ecclesiasticas a decisão pertencia a Torquemada, revestido exclusivamente dessa auctoridade pelas bullas apostolicas. O inquisidor-mór convocou então uma juncta geral em Sevilha, onde se reuniram com elle os inquisidores de quatro tribunaes subalternos, os conselheiros regios e os dous assessores que Torquemada nomeiara. Nesta juncta se approvaram os regulamentos já preparados, e, com o titulo de Instrucções, promulgou-se o primeiro codigo inquisitorial d’Hespanha (outubro de 1484).
Em abril desse mesmo anno o rei de Aragão convocara cortes em Tarazona, e ahi fizera adoptar a nova reforma da Inquisição. Em consequencia disso, Torquemada creou em Saragoça um dos novos tribunaes, nomeiando para elle o dominicano Juglar e Pedro de Arbuès, conego da sé metropolitana. Fernando ordenou, ao mesmo tempo, aos magistrados da provincia que lhes déssem toda a protecção e concurso de que carecessem. Apesar, porém, de que a Inquisição era cousa antiga neste paiz, o novo tribunal apresentava-se com taes condições e caractéres que as resistencias começaram, desde logo, a manifestar-se. As pessoas mais influentes do reino, a maior parte das quaes pertenciam a familias de raça hebréa, dirigiram supplicas tanto á corte d’Hespanha, como á de Roma, para que ao menos se ordenasse aos Inquisidores a suspensão dos confiscos, por estes serem contrarios aos foros de Aragão. Emquanto, porém, se faziam estas diligencias, a Inquisição procedia contra os suspeitos e começava os autos-de-fé, queimando diversas pessoas. Estas execuções irritaram mais os animos, e o despeito subiu ao ponto, quando se receberam avisos da corte de que as supplicas dos procuradores eram repellidas. Mais impetuoso do que o dos castelhanos, o caracter aragonês não podia soffrer com paciencia a quebra do direito nacional, e o resultado foi uma conspiração contra a vida dos inquisidores. Ao terror oppunha-se assim o terror, e, se este systema se houvesse adoptado e seguido com constancia por toda a parte, a Inquisição ou houvera deixado de existir ou moderaria os seus furores. O direito natural legitimava aquelle meio de defesa, visto que os perseguidos não tinham recursos para uma rebellião declarada contra Fernando v. Assassino dos seus subditos por opiniões religiosas, neste principe a dignidade regia tornava-se apenas um facto. Os conjurados escolheram, provavelmente, para victimas aquelles que mais implacaveis se tinham mostrado contra os christãos-novos. Os votados á morte foram o inquisidor Pedro de Arbuès, o assessor Martim de Larraga e Pedro Frances, deputado do reino. A tentativa falhou uma e outra vez, até que Pedro de Arbuès foi assassinado uma noite na cathedral, apesar de trazer, debaixo dos habitos ecclesiasticos, uma cota de malha, e um capacete de ferro debaixo do barrete. A noticia da sua morte, espalhada entre o vulgacho, produziu um tumulto em Saragoça contra os conversos e, porventura, alienou-lhes anteriores simpathias. Irritados, sedentos de vingança, os inquisidores lançaram mão de todos os seus immensos recursos para descubrir os conjurados, o que não tardaram a alcançar. Vidal de Uranso, um dos matadores de Arbuès, descubriu quanto sabía, e o seu depoimento deu-lhes a chave do mysterio. Mais de duzentas victimas foram dentro em pouco sacrificadas á memoria do assassinado: maior era o numero dos desgraçados que entre as paredes dos carceres sombrios expiavam longamente um crime que muitos delles nem sequer teriam approvado. O simples acto de dar guarida a um dos perseguidos suscitava novas perseguições. Muitos membros das mais illustres familias de Aragão e Navarra, accusados e processados, vieram, assim, a figurar nos autos-de-fé. Um sobrinho do proprio Fernando v foi mettido num calabouço e penitenciado como protector dos herejes, e o mesmo aconteceu a alguns individuos revestidos de dignidades ecclesiasticas. E' quasi inutil dizer que os assassinos que se poderam prender foram cruelmente justiçados, cortando-se lhes as mãos em vida, á excepção de Vidal de Uranso, a quem se promettera perdão, denunciando os outros culpados, e ao qual, para não se lhe faltar inteiramente á promessa, só as deceparam depois de morto. Á indignação que o procedimento dos inquisidores produzia nas classes poderosas por nobreza ou opulencia, entre os quaes os christãos-novos exerciam grande influencia, parece deverem attribuir-se os tumultos e resistencias de Teruel, de Valencia, de Lérida, de Barcelona e de outros logares contra a Inquisição, tumultos e resistencias que o poder civil reprimiu energicamente. As multidões não podiam associar-se a esses movimentos, senão compradas pelos ricos ou impellidas pelos nobres, de quem muitas vezes dependiam. Ignorantes e fanaticas, os seus instinctos ferozes attrahiam-nas para aquelles espectaculos de crueza; com que os inquisidores se deleitavam e pelos quaes essa terrivel instituição se tornara um instrumento dos odios que as classes infimas, envilecidas e miseraveis, nutrem em todas as epochas contra os abastados e felizes. As resistencias, porém, ás tyrannias da Inquisição, da parte daquelles que receiavam ser por ella victimados, comprimidas pelo poder civil, ficaram completamente annulladas com as bullas de 1486 e 1487, que successivamente confirmaram Torquemada no cargo de inquisidor-mór, não só de Castella e Leão, mas tambem de Aragão, Valencia, Catalunha e, em geral, de todos os estados de Fernando e Isabel. Augmentadas por essas bullas as suas attribuições, o terrivel dominicano pôde dar campo aos impetos do fanatismo. Só em Ciudad-Real, no decurso de 1486, appareceram em varios autos-de-fé mais de tres mil e trezentos individuos; em Sevilha, desde este anno até o de 1489, calculam-se em tres mil os sentenciados, dos quaes perto de quatrocentos foram queimados vivos. Póde-se avaliar por este numero o das victimas daquelle nefando tribunal, nos outros logares onde existia. Neste meio tempo, desamparados do poder civil e tomados de profundo terror, os christãos-novos suspeitos de judaisarem, apesar de cruelmente ludibriados pela curia romana, recorreram de novo ao pontifice. Fiel ao systema que adoptara, Roma abriu-lhes os braços. Todos os que se dirigiam á Penitenciaria apostolica e que eram assás abastados para pagarem a taxa do perdão ou foram absolvidos ou obtiveram breves para o serem pelos ordinarios, com a prohibição expressa aos inquisidores de se intrometerem com elles. A corte d'Hespanha e a Inquisição representaram energicamente contra tal proceder. Então o papa, annullando no essencial os breves concedidos aos christãos-novos, declarou que esses perdões se limitavam ao foro da consciencia. Viam-se, assim, expostos de novo ás fogueiras dos autós-de-fé os desgraçados que haviam sacrificado parte dos seus bens para as evitar; mas os recursos e a humanidade de Roma eram inexgotaveis. Entregar inteiramente as victimas aos seus perseguidores sería seccar para sempre uma das fontes mais caudaes dos proprios proventos, e a curia não podia resolver-se de bom grado a tamanho sacrificio. Innocencio viii offereceu aos christãos-novos hespanhoes a perspectiva de novos perdões, sob condições novas; e elles cahiram no laço, como homens que atraz de si não viam senão o supplicio do fogo ou a sepultura em vida nas trevas dos carceres perpetuos.
Não seguiremos as phases dos varios tormentos das dolorosas decepções, da dilatada agonia em que as familias hebréas da Hespanha continuaram a debater-se, ora illudidas pelo doloso favor de Roma, ora entregues, sem protecção nem esperança, á ferocidade de Torquemada e dos seus delegados e esbirros. Chamam por nós os factos e as scenas que, na historia da hypocrisia e no fanatismo, particularmente nos interessam; os factos e as scenas que se passaram no nosso paiz. Cumpre-nos, todavia, expor um sucesso que, ligando os negros annaes da Inquisição castelhana á entrada dessa instituição em Portugal, é a transição natural deste rapido esboço das origens della, que, forçosamente, devia preceder a narrativa do seu estabelecimento entre nós.
Dissemos anteriormente que, no meio das conversões, quasi sempre forçadas dos judeus hespanhoes, desde os fins do seculo xiv até o ultimo quartel do xv, os mais audazes ou mais aferrados ás tradições e á crença de seus paes tinham resistido tanto ao terror, como aos sonhos de ambição e vaidade, pelos quaes muitos as haviam trahido. Bem que livres da jurisdicção dos inquisidores, esses judeus fiéis á religião de Moysés não podiam evitar os effeitos da malevolencia popular. O terror que a idéa do crime, augmentada pelo excesso da punição, excitava contra os seus irmãos convertidos, accusados de segunda apostasia, vinha reflectir sobre elles directa e indirectamente. A raça hebréa era envolvida em geral no odio contra os judeus apostatas do christianismo ou suppostos taes, e, assim, as antigas prevenções do vulgo ácerca daquela gente, digamos assim estrangeira na propria patria, tornavam-se mais intensas com a perseguição organisada e official. Traziam-se á memoria as lendas mais ou menos absurdas que a tradição ía legando de seculo a seculo sobre as villanias, barbaridades e superstições occultamente usadas pelos sectarios da lei velha. Tal era o costume, que se lhes attribuia, de furtarem creanças christans, para as crucificarem em sexta-feira sancta, ou hostias consagradas, para com ellas practicarem toda a casta de profanações. Accusavam-nos de terem mais de uma vez querido incendiar povoações e de insultarem a cruz, quando o podiam fazer a seu salvo. Emfim, os medicos, os cirurgiões e boticarios judeus, na opinião do vulgo, abusavam frequentemente da sua profissão para conduzirem á sepultura grande numero de christãos. O atrazo da therapeutica e da pharmacia e a imperfeição dos methodos cirurgicos deviam, na realidade, subministrar, frequentemente, factos que tornassem plausivel esta ultima accusação, ao passo que, tambem é crivel que, maltratados e perseguidos, os judeus mais de uma vez abusassem da medicina, a que especialmente se dedicavam, para exercerem vinganças que reputariam legitimas. O que, porém, sobretudo, os devia tornar odiosos aos olhos dos fanaticos sinceros era a influencia moral que exerciam sobre os seus antigos co-religionarios. Dizia-se que os conversos que apostatavam o faziam, principalmente, pelas occultas instigações deles. Nesta parte, ao menos, a opinião geral era razoavel. Ainda sem admoestações, o seu exemplo devia gerar contínuos remorsos nos que, por medo ou por conveniencia, haviam renegado da religião avíta; e é mais que provavel que os fanaticos do mosaismo não se limitassem a esperar os effeitos dessa muda eloquencia e tentassem, não raro, reconduzir por outros meios ao aprisco de Israel as ovelhas transviadas. Estas e outras considerações suscitaram a idéa de expellir da Hespanha os hebreus não convertidos. Tractou-se a questão nos conselhos de Fernando e Isabel, e os animos inclinaram-se para esse arbitrio. Avisados do que se delineava, , os judeus, que conheciam o caracter cubiçoso do rei de Aragão, ofereceram-lhe trinta mil ducados, a pretexto da conquista de Granada, facção que naquella conjunctura se emprehendera. Obrigavam-se, ao mesmo tempo, a cumprir á risca as obrigações civis que pelas leis lhes eram impostas, taes como o habitarem em bairros separados, recolhendo-se a elles antes de anoitecer, e a de se absterem daquelas profissões que se entendia deverem ser exercidas só por christãos. Estas propostas fizeram impressão no espirito de Fernando e Isabel, que se mostraram resolvidos a acceitá-las. O inquisidor-mór Torquemada julgou, porém, opportuno interpor o seu veto. Apresentando-se perante os reis de Castella e Aragão, com um crucifixo nas mãos, o fanatico e brutal dominicano teve a insolencia de lhes dizer «que Judas vendera seu mestre por trinta dinheiros, e que elles o queriam vender, segunda vez, por trinta mil ducados; que, por isso, lh'o trazia alli, para que com toda a brevidade podessem concluir a negociação». Em vez de punir o inquisidor-mór, os dois principes dobraram a cerviz diante de tanta audacia. A 31 de março de 1492 publicou-se uma lei para que todos os judeus não convertidos saíssem d'Hespanha até 31 de julho desse mesmo anno, sob pena de morte e confisco para os que desobedecessem, comminações que, igualmente, se estendiam aos christãos que déssem guarida a qualquer delles em suas casas apenas expirasse o praso fatal. Permittia-se aos banidos venderem os bens de raiz e levarem suas alfaias, excepto ouro e prata, que trocariam por letras de cambio ou por aquellas mercadorias cuja exportação não fosse prohibida. Entretanto, Torquemada fazia todos os esforços para os mover a seguirem o exemplo dos anteriores convertidos, vindo collocar-se pelo baptismo debaixo da sua jurisdição. O exemplo não era demasiado attractivo, e rarissimos o seguiram, preferindo quasi todos o desterro á paternal tutella dos inquisidores. Facil é de imaginar por que preço a maior parte delles, obrigados a despojar-se de tudo dentro de tão curto praso, alienaria os seus bens : dava-se uma casa a troco de uma cavalgadura, uma vinha por alguns covados de panno. Oitocentos mil judeus saíram assim, nesse anno, dos estados de Fernando e Isabel. Diz-se, e é provavel, que os foragidos imaginaram mil invenções para levar comsigo ouro e prata. Uns embarcaram para Africa ; outros, como veremos no seguinte livro, obtiveram licença para entrar em Portugal. Qual foi a sorte destes vê-lo-hemos, tambem, depois. Dos que embarcaram para a Mauritania uns, acossados pelos temporaes, entraram de novo em varios portos da Hespanha, e então, ou horrorisados do desterro, depois de experimentado, ou constrangidos pelos seus implacaveis perseguidores, acceitaram o baptismo ; outros, desembarcando em Africa, depois de espoliados e avexados cruelmente pelos mouros, preferiram voltar a Hespanha, fingindo abraçar o christianismo ; outros, emfim, martyres da sua fé, submetteram-se ás tyrannias dos mussulmanos, que, ao menos, respeitavam as suas crenças, e estabeleceram-se definitivamente entre elles. A Inquisição reinava, finalmente, em Hespanha com poder illimitado, e Torquemada e os seus sicarios podiam, sem contradicção, fazer reinar o terror sobre todos os habitantes das vastas provincias sujeitas ao sceptro de Fernando e Isabel.
Notas
editar- ↑ Este ponto foi debatido na viva contenda levantada entre os dous membros da antiga academia d’Historia, frei Pedro Monteiro, dominicano, auctor da Historia da Inquisição, e frei Manuel de S. Damaso, franciscano, auctor da Verdade Elucidada, a proposito de saber quem fora o primeiro inquisidor geral português no seculo xvi; questão futil, mas em que a intelligencia do franciscano apparece bem superior á do seu adversario.