LIVRO II

LIVRO II



Situação dos judeus em Portugal no seculo xv. — Malevolencia do povo contra elles. Manifestações e causas dessa malevolencia. — Entrada dos hebreus hespanhoes. Augmento da irritação popular. — Morte de D. João II e accessão de D. Manuel. — Circumstancias que determinam a politica do novo monarcha ácerca da raça hebréa. Influencia da corte de Castella. — Debates sobre a expulsão dos judeus. Ordena-se a saída dos sectarios do mosaismo e do islamismo. Tyrannias e deslealdades practicadas nessa conjunctura. Conversão forçada dos judeus. Leis favoraveis aos pseudo-conversos. — Symptomas de perseguição popular. — Tentativas de emigração dos christãos-novos. — Obstaculos. — Novas manifestações do odio do vulgo, incitado pelo fanatismo. Horrivel matança nos christãos-novos de Lisboa. Procedimento severo contra os culpados. — Mudança de politica. Providencias protectoras e de tolerancia a favor dos perseguidos. — Confiança imprudente dos christãos-novos. — Meneios occultos do fanatismo. Tentativas sem resultado para o estabelecimento da Inquisição. — Situação da raça hebréa durante os ultimos annos do reinado de D. Manuel. Morte deste principe.
 

Acabámos de ver no livro antecedente como uma grande parte dos judeus d'Hespanha, constrangidos a abandonarem a patria, buscaram guarida em Portugal. Cumpre agora dizer, não só quaes foram as circumstancias que se deram na realisação desse facto, mas tambem qual era neste paiz o estado dos seus co-religionarios, a que os foragidos vinham ajunctar-se, fixando assim, previamente, as idéas sobre a situação daquella raça, na epocha immediatamente anterior ao estabelecimento da Inquisição.

As considerações que fizemos precedentemente sobre as relações moraes e materiaes dos hebreus hespanhoes com a população christan são na sua generalidade applicaveis a Portugal. Superiores em industria e actividade e dominados pela sede do lucro, apezar do desprezo ou da malevolencia de que eram alvo, elles tinham desde os primeiros seculos da monarchia adquirido a preponderancia que é o resultado inevitavel da intelligencia, do trabalho e da economia. Como todas as superioridades, a dos judeus tendia ao abuso, e os aggravos, sobretudo os de ordem moral, que recebiam, gerando em seus corações o despeito, fortificavam-nos nessas tendencias, que cada vez azedavam mais a mutua má vontade entre elles e os christãos. Talvez, em parte nenhuma da Europa, durante a idade média, o poder publico, manifestado quer nas leis, quer nos actos administrativos, favoreceu tanto a raça hebréa como em Portugal, embora nessas leis e nesses actos se mantivessem sempre, com maior ou menor rigor, as distincções que assignalavam a inferioridade delles como sectarios de uma religiao, posto que verdadeira, abolida pelo christianismo. Aquelle mesmo favor, porém, que, por tantos modos, comprimia as repugnancias dos christãos ía ajudando a converter em odio, e odio profundo, essas repugnancias, aliás avivadas pelo fanatismo, pela inveja e pelo procedimento dos proprios judeus que obtinham exercer, directa ou indirectamente, como agentes fiscaes ou como rendeiros d'impostos, uma parte da auctoridade publica.

Considerados como uma nação, de certo modo, á parte, os hebreus portugueses eram regidos por um direito publico e, em muitos casos, por um direito civil especiaes, ao começar o ultimo quartel do seculo xv. A jurisprudencia então em vigor que particularmente lhes era applicavel achava-se compilada no nosso primeiro codigo regular de leis patrias, a Ordenação Affonsina. Viviam os judeus dentro das povoações em bairros apartados, conhecidos pelo nome de judarias ou judearias, constituindo ahi uma especie de concelhos, chamados, em tempos mais remotos, communidades e, depois, communas [1]. Por analogia com o systema de governo respectivo ás populações christans, as communas regiam-se por vereadores e por arrabis, juizes municipaes privativos, e por outros officiaes judeus. Acima destas magistraturas locaes havia o arrabi-mór, alto funccionario da coroa e magistrado immediato ao rei, por cuja intervenção subiam até este os negocios da gente hebréa e que nomeiava tantos ouvidores quantas eram as comarcas do reino, os quaes julgavam em segunda instancia as causas começadas perante os magistrados communaes. O arrabi-mór, tendo por assessor um letrado judeu, que era seu ouvidor especial, exercia superintendencia, não só sobre a administração da justiça, mas tambem sobre a administração e fazenda das communas [2].

Desde o principio da monarchia, os judeus, pelos motivos que já temos apontado, exerceram uma grande influencia no reino. Entre as accusações que o clero e os nobres, conjurados com este, dirigiam contra o infeliz Sancho ii era uma a da preponderancia que tinham debaixo da sua administração os sectarios do judaismo. A suprema inspecção das rendas publicas foi depositada nas mãos de judeus nos reinados de D. Dinis e D. Fernando, sendo revestidos do cargo de thesoureiros-móres, correspondente ao dos modernos ministros da fazenda, no tempo do primeiro, o arrabi-mór D. Judas e, no do segundo, outro D. Judas. Um dos morgados mais notaveis que se instituiram em Portugal ainda no seculo xiv foi o de D. Moysés Navarro, em Santarem, por concessão de D. Pedro i Attendendo, porém, ás continuas representações populares contra os vexames practicados pelos ministros publicos desta raça, elrei D. Duarte prohibiu por lei que fossem empregados como officiaes da coroa ou dos seus donatarios, o que, affastando-os dos cargos mais elevados, não obstou a que continuassem a arrematar a cobrança dos impostos e a practicar os actos que o povo, com mais ou menos razão, reputava vexatorios e espoliadores. As leis que os protegiam eram a expressão de ampla tolerancia. Tinham, não só a liberdade de seguirem a sua religião e de usarem publicamente os ritos della nas synagogas (esnógas), mas tambem a de se regularem nas relações de direito privado pelos proprios costumes. Quaesquer violencias contra essas garantias de que gosavam acham-se precavidas nas leis com severissimas comminações, e, quando por serviços publicos bem mereciam da patria, eram compensados com mercês, como os subditos christãos. Emfim, as bullas de ampla protecção que successivamente obtiveram de Clemente vi, em 1247, e de Bonifacio ix, em 1389, apresentadas a D. João i pelo seu physico-mór, mestre Moysés, foram confirmadas e mandadas guardar escrupulosamente por aquelle grande principe nas suas minimas provisões [3].

Se, todavia, a tolerancia para com os judeus era tal que honraria seculos mais illustrados, tomavam-se tambem providencias para que, á sombra das suas immunidades, elles não abusassem dos recursos e influencia que possuiam para perverter as idéas religiosas do povo, do que havia grande risco pelo tracto quotidiano e pelo commercio de ambos os sexos entre individuos de diversa crença. Mais do que isso : excogitaram-se varios meios indirectos para os attrahir ao christianismo. Destes intuitos que influiam nas instituições e nas leis resultavam algumas dessas manifestações de intolerancia moral a que noutro logar alludimos e que tendiam a tornar sensivel a inferioridade dos sectarios da lei velha. Mais de uma instituição apresenta esse caracter. Posto que, por exemplo, nos litigios civeis entre christãos e judeus a causa seguisse o foro do réu, embora este pertencesse á gente hebréa, nas provas testemunhaes havia uma differença : o réu christão podia sustentar a excepção com testemunhas exclusivamente da sua crença, e o judeu não. Nos contractos, fossem quaes fossem, ou celebrados entre elles ou entre elles e christãos, só se permittia usar a lingua ladina-christenga, isto é, portuguesa. Eram sempre obrigados os judeus a provar a existencia de quaesquer dividas de christãos, ainda quando os devedores as confessavam, e havia na legislação multiplicadas prevenções para obstar ás usuras, a que os judeus eram tão propensos. Nos casos crimes estavam sujeitos á jurisdicção dos magistrados christãos, bem como nas causas de fazenda publica. Não lhes era permittido entrar sós em casa de christans solteiras ou viuvas, nem de mulheres casadas, estando seus maridos ausentes, do que eram exceptuados os medicos, cirurgiões e officiaes mechanicos, indo exercer a sua profissão. Não podiam ter creadas ou creados christãos ; eram obrigados a trazer no pedaço das roupas que cobria a extremidade inferior do sterno uma estrella vermelha de seis pontas cozida sobre o vestido, de modo que sempre se lhe visse, sendo-lhes, ao mesmo tempo, vedados os trajos sumptuosos e o uso de armas. Depois de recolhidos ao anoitecer, punham-se-lhes duas sentinellas á entrada da judearia para que não podessem saír. Ás mulheres christans era prohibido entrar nas lojas delles sitas nos mercados, sem que fossem acompanhadas de algum individuo christão, e a lei comminava pena de morte contra as que ousassem entrar nas judearias : comminação excessiva e, provavelmente, nunca applicada nos casos de contravenção. Nas questões de propriedade não gosavam de todas as vantagens communs. Por exemplo, a lei da avoenga ou de prelação na compra de bens que haviam pertencido aos antepassados dos licitantes não era applicavel aos judeus. Ás synagogas não podiam andar annexos bens de raiz, como ás igrejas. Os mercadores hebreus não gosavam da exempção dos varejos, como os christãos, e, finalmente, todos os judeus estavam sujeitos a uma capitação especial, além dos tributos geraes [4].

Ao passo que estas desvantagens e gravames tornavam directamente a situação dos sectarios da lei mosaica inferior á dos sectarios do evangelho, as prerogativas e conveniencias que a legislação proporcionava aos neophytos que tinham abandonado o judaismo, sendo para isso um poderoso incentivo, contribuiam para caracterisar melhor a distancia que havia de adeptos de uma religião tolerada aos de outra dominadora. Entre as provisões mais notaveis dessa legislação devem contar-se as que impunham severas mulctas aos que injuriavam os conversos, chamando-lhes tornadiços, isto é, renegados. Ficavam os neophytos exemptos, pelo acto da conversão, de terem armas e cavallo para a guerra, ainda que possuissem o cumulo de bens pelo qual os christãos velhos eram aquantiados ou, por outra, tinham de ser soldados gratuitos de cavallaria. Sendo antigamente obrigados a dar carta de guete ou desquite a suas mulheres apenas se baptisavam, pela Ordenação Affonsina ficaram auctorisados a viverem com ellas mais um anno, sendo só constrangidos a dar-lhes o guete, se durante esse tempo a mulher não adoptava tambem a religião do marido. As exempções dos christãos-novos eram communs aos christãos-velhos que casavam com judias convertidas. Longe de ser licito ao judeu desherdar seu filho por mudar de crença, tinha este desde logo o direito de receber o seu quinhão da herança paterna e materna, suppondo-se fallecidos o pae e a mãe para esse effeito, de modo que, se era filho unico, havia desde logo dois terços dos bens da casa, provisão efficaz para promover as conversões, mas altamente immoral . A estas vantagens associava-se a de ficarem exemptos de todos os gravames especiaes que pesavam sobre os da sua raça[5].

Além das familias hebréas, havia no paiz uma grande multidão de mouros que seguiam o islamismo. A proteção concedida a estes e os encargos que particularmente os gravavam eram, em substancia, analogos aos que diziam respeito aos judeus. O expô-los pertence á historia geral, mas tem mui pouca importancia para a da Inquisição ; porque, segundo adiante veremos, deu-se livre saída do reino aos que não quizeram converter-se, annos antes do estabelecimento daquelle feroz tribunal. Assim, o numero das victimas pertencentes á raça mourisca foi mui diminuto, e nenhum interesse offerece, neste sentido, o conhecer qual era a situação anterior dessa parte da população.

Todavia, apesar da protecção concedida á raça judaica ou antes, em parte, por causa dessa mesma protecção, a má vontade do povo contra ella crescia de anno para anno pelos motivos já ponderados. Aquella malevolencia rompia, ás vezes, em excessos que certas providencias legislativas do seculo xv estão revelando e de que, até, as antigas chronicas nos conservaram vestigios. Sirva d'exemplo o tumulto alevantado em Lisboa nos fins de 1449. Alguns mancebos da cidade tomaram por seu recreio insultarem e maltratarem os judeus da communa, e tão longe levaram a travessura que os offendidos recorreram aos magistrados, pedindo desaggravo. O corregedor da corte, achando os accusados dignos de castigo, mandou-os publicamente açoutar. Bastou isso para suscitar uma revolta popular. Dando largas aos seus instinctos, ao mesmo tempo ferozes e vis, a gentalha e muitos que não o eram pegaram em armas e accommetteram a judearia. Bradavam as turbas «matemo-los e roubemo-los!» Este ultimo grito revelava a causa principal de tanto odio. Tentando defender-se, alguns judeus foram mortos, e a carnificina houvera continuado, se o conde de Monsancto, com as forças que tinha a seu mando, se não dirigira immediatamente ao logar do conflicto. Sopitou-se a revolta, e deu-se conta de tudo a elrei, que se achava em Evora nessa conjunctura. Partiu Affonso v para Lisboa, porque ao mesmo tempo fora avisado de que appareciam terriveis symptomas de novas perturbações, e, syndicando dos individuos presos por occasião do motim, mandou que fossem justiçados. Assim se começou a fazer ; mas os tumultos rebentaram de novo contra o proprio rei, e com violencia tal que se entendeu ser necessario sobreestar nas execuções e ir gradualmente lançando no esquecimento estes deploraveis successos [6].

A malevolencia que assim resfolegava tremenda accendia mais pelo accrescimo repentino da população hebraica. Procedia este accrescimo da emigração gradual de muitos judeus mais opulentos, que insensivelmente íam chegando de Castella, onde a perseguição já naquella epoca havia começado, e que vinham ajudar os seus co-religionarios a acabarem de apoderar-se da percepção das rendas publicas e do meneio da industria e do commercio. Essa malevolencia crescente não ardia só no animo da plebe: existia, tambem, entre o clero e entre individuos acima do vulgo. Resta-nos uma carta de um frade de S. Marcos, que ignoramos quem fosse, mas que della se vê privava com Affonso v, onde transluz o odio contra os judeus e, ao mesmo tempo, se manifestam as causas economicas que o inspiravam. Dissuadindo aquelle principe das emprezas guerreiras, a que era tão inclinado, o monge politico pondera a pobreza, então actual, do erario comparada com a opulencia dos tempos passados e d'ahi deduz a necessidade de abandonar a idéa de conquistas e expedições ultramarinas. A' escaceza de recursos attribue o zeloso conselheiro o expediente que se adoptara de reduzir toda a cobrança dos impostos ao systema de arrematações. Nesta questão incidente apparece o motivo, inteiramente terreno, da aversão contra a gente hebréa, e vê-se como a accessão dos refugiados hespanhoes viera augmentar-lhe a riqueza e preponderancia. «Agora, senhor, — diz o gratuito conselheiro — com a cobiça de obter maior rendimento acha-se a christandade submettida á jurisdicção judaica, e os extranhos ao paiz levam a substancia das mercadorias do vosso reino, ao passo que os mercadores nacionaes perecem de miseria. A isso quisera eu que vossa senhoria désse remedio, como tantas vezes lhe tem sido requerido ; que mais honra e proveito vos resultará de serem os vossos naturaes ricos do que de o serem os extranhos, que dão perda e não lucro ao paiz[7]

Onde, porém, mais evidentemente se descobre que a aversão contra os judeus cada vez adquiria maior intensidade é nas actas dos diversos parlamentos convocados durante a segunda metade do seculo xv ; porque a linguagem dos procuradores das cidades e villas era a expressão do commum sentir, não só do vulgo, mas tambem da burguesia christan. Nas cortes de 1475 elles tentavam obter que nas causas civeis entre os sectarios do judaismo ou do islamismo e os da religião dominante preferisse, contra o principio geral de direito, o foro dos christãos, quer estes fossem auctores, quer réus [8]. Destas mesmas cortes se conhece que, até, se arrendava a individuos daquella raça a percepção de muletas por contravenções de certas leis administrativas, vexame a que os povos buscavam esquivar-se, ao mesmo tempo que requeriam se imposessem aos judeus algumas mulctas judiciaes, de que por seus privilegios estavam exemptos[9]. E', porem, nas actas das cortes de 1481 a 1482 onde a irritação popular se manifesta com caractéres mais ameaçadores ; porque ahi as questões economicas complicam-se já com as religiosas. Nas idéas daquella epocha, o luxo era um grande inconveniente social, e as leis sumptuarias combatiam-no energicamente. Todavia, a opulencia dos judeus, ao passo que os habilitava para viverem com esplendor, alcançava conciliar-lhes a tolerancia dos magistrados, que os deixavam manifestar na magnificencia dos trajos e dos adornos a sua riqueza. Nessa opulencia achavam elles, tambem, recursos para abusarem da pobreza comparativa dos christãos, envilecendo-os por mais de um modo e, até, offendendo-os nos objectos do seu culto. E' mais que provavel que as accusações dirigidas contra elles pelos procuradores dos povos a semelhante respeito fossem em geral verdadeiras. O poder que o ouro dá é como todos os poderes : tende sempre a abusar e abusa, quando as resistencias são tenues ou nullas. Essa classe opulenta não precisava para isso de pertencer á raça judaica e de seguir a lei de Moysés  ; bastava-lhe ser composta de homens, e homens poderosos. Na linguagem dos mandatarios populares sentem-se palpitar a indignação e o odio contra os judeus, embora nas invectivas que fazem sobre o desenfreiamento do luxo envolvam apparentemente os mouros e os christãos «Falamos assim, senhor, — diziam elles — porque vemos a horrrivel dissolução que lavra entre judeus, mouros e christãos, no viver, no trajar e no tracto e conversação, em que se observam cousas repugnantes e abominaveis. Vemos os judeus feitos cavalleiros, montados em cavallos e muares ricamente ajaezados, e elles vestidos com lobas e capuzes finos, jubões de seda, espadas douradas e toucas de rebuço, de modo que é impossivel conhecer a que raça pertencem. Entram por isso nas igrejas e escarnecem do sancto sacramento, ajunctando-se criminosamente com os christãos, e perpetram grandes peccados contra a fé catholica. Nascem desta dissolução profunda erros e culpas horrendas, que damnam os corpos e as almas. O peior dos males é andarem sem divisas, e fazem-no por serem rendeiros da fazenda publica, por atormentarem os christãos e por se terem feito senhores onde, naturalmente, são servos,» — Depois, pedindo providencias geraes contra os negociantes estrangeiros residentes em Portugal, alludem particularmente aos judeus hespanhoes, que, «corridos e lançados da patria pelas suas perversas heresias, acham acolheita e amparo no reino.» E' carregado o quadro que desenham das consequencias fataes do intimo tracto entre os officiaes mechanicos hebreus e as familias dos habitantes dos campos : «Grandes males resultam, senhor, — accrescentavam elles — da desenvoltura dos judeus alfaiates, sapateiros e officiaes de outros officios, que, ficando sós nas casas dos lavradores com suas mulheres e filhas, emquanto elles vão tractar do lavor dos campos, commettem estupros e adulterios.» Nesta parte, os procuradores pediam a prohibição absoluta daquella liberdade e que quem precisasse de qualquer obra incumbisse os officiaes judeus de a executarem nas respectivas judearias[10].

Os escrupulos excessivos não eram o defeito de D. João ii. A estas queixas respondeu em termos geraes, embora não negasse os factos que os procuradores apontavam, e recusou formalmente coagir os obreiros judeus a exercerem seus mistéres exclusivamente nas communas. Não deixou, todavia, por isso a linguagem dos representantes das cidades e villas de ser ainda mais violenta na subsequente assembléa de 1490. O primeiro negocio que, unanimes, apresentaram a elrei foi o requerimento em que pediam a exclusão dos judeus da arrematação dos impostos. Diziam que livrasse os povos da sujeição dessa gente, que, como rendeiros e exactores, exercia por toda a parte uma especie de senhorio, circumstancia que levava os christãos a terem com elles continuo tracto, d'onde se originavam mil males civis e religiosos, occorrendo diariamente as enormidades, odiosas a Deus e aos homens, que eram geralmente sabidas. Ponderavam que não havia paiz de christãos onde fossem tão favorecidos os judeus como em Portugal, tendo elles tal astucia que, não só eram contractadores d'impostos, mas, até, administradores das casas nobres ; que era necessario privá-los destas occupações e reduzi-los a serem cultivadores, obreiros ou mercadores ; que, além disso, cumpria tomar diversas providencias para acudir aos enganos e subtilezas com que elles illaqueavam muitos christãos, tirando-lhes o que possuiam e reduzindo-os, pela miseria, a uma especie de escravidão[11]. Se, porém estas queixas, ainda que, talvez, exaggeradas, nos dão uma idéa assás clara do estado das relações economicas e moraes entre as duas raças nos fins do seculo xv, a resposta por parte da coroa dá mais luz e relevo a esse escuro quadro. D. João ii recusou formalmente excluir os judeus das arrematações de impostos. O exemplo do que succedia por algumas partes provava, na opinião do rei, que os rendeiros christãos, longe de serem menos oppressores, o eram ainda mais do que a gente hebréa. Fora por isso que os antigos monarchas haviam resolvido entregar-lhes o meneio da fazenda publica, ainda com menos restricções do que elle, que já em vida de seu pae fizera com que fossem excluidos de arrematarem rendas ecclesiasticas e de serem officiaes da coroa, cousa, d'antes, mais que trivial. Além destas considerações, dava-se outra irresistivel, e era que não havia christãos habilitados para contractarem a arrecadação dos impostos, e, quando os havia, pretendiam obter lucros tão exorbitantes que se tornava impossivel vir com elles a accordo. A concessão que unicamente o rei fazia era a de prohibir que os judeus fossem administradores das casas particulares, do mesmo modo que estavam excluidos dos cargos publicos[12].

Nas actas das cortes de 1490 apparecem diversos outros vestigios da malevolencia popular contra a gente hebréa, malevolencia, até certo momento, legitima, como o é sempre o do opprimido contra o oppressor. O que fica citado basta, porém, para conhecer-mos a situação material e moral dos judeus. A resposta de D. João ii explica-nos tudo. O capital monetario estava, quasi só, nas mãos dos judeus, e esse facto trazia o que, na linguagem de hoje, chamamos monopolio ; monopolio que, principalmente, se exercia na gerencia usuraria das rendas publicas e das particulares e no qual os poucos christãos que a elle podiam associar-se igualavam ou antes excediam os judeus em usuras. Ao abuso dos lucros immoderados accrescia a soltura dos costumes, a satisfação de paixões desregradas, que a riqueza de uns e a dependencia de outros tanto facilitavam, Ao sentimento da oppressão ajunctava-se, necessariamente, nos animos vulgares a inveja, a que dava dobrado vigor e, ao mesmo tempo, servia de manto a opposição de crenças religiosas. Esta opposição levava naturalmente os sectarios da lei de Moysés a ludibriarem o culto christão. Offendidos por mais de um modo, na fazenda, no pundonor e nos affectos intimos, por essa raça opulenta e poderosa, a cuja mercê estavam, que muito era que viesse o odio dos povos, accumulado por seculos, a manifestar-se em explosões terriveis ou numa perseguição incessante e implacavel, quando o fanatismo désse ainda maior impulso a essas propensões populares ?

Sem que admittamos a conveniencia ou a necessidade de converter em questão religiosa uma questão puramente social; condemnando com todas as veras da alma uma instituição anti-evangelica, deshonra do christianismo, e que manchou as vestes puras do sacerdocio com largas e indeleveis nodoas de sangue ; rejeitando, emfim, o pensamento atroz que presidiu ao estabelecimento da Inquisição, justamente porque nos parece que assim se teria evitado esta grande infamia do seculo xvi, tão contraria á tolerancia da idade média portuguesa, entendemos, todavia, que, chegadas as cousas aos termos em que se acha-vam no reinado de D. João ii, cumpria reprimir severamente os judeus, impedir o abuso do dinheiro e, sobretudo, adoptar outro systema de percepção d'impostos ; defender, em summa, os fracos contra os fortes, o trabalho contra o capital. Nas materias de religião, era indispensavel manter restrictamente a cada qual o seu direito ; proteger a synagoga, mas punir inexoravelmente o que offendesse o templo catholico, não só porque era o da religião verdadeira, mas tambem porque symbolisava a crença da maioria dos cidadãos. Não succedeu assim, e a irritação geral, não satisfeita com providencias inefficazes e incompletas, cresceu com os successos trazidos pelo estabelecimento da Inquisição em Hespanha, os quaes influiram, do modo que vamos ver, na questão do judaismo em Portugal.

Dissemos no livro antecedente como, resolvida por Fernando e Isabel a expulsão dos judeus hespanhoes, e promulgada a lei de 31 de março de 1492, na qual se lhes dava, apenas, o espaço de quatro mezes para a saída, muitos delles sollicitaram e obtiveram a permissão de entrarem em Portugal, cujo territorio, pela extensão da fronteira e facilidade do transito, lhes proporcionava mais prompto

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e accessivel regugio. Accrescia a esta consideração, que os attrahia para Portugal, outra não menos attendivel. Os hebreus hespanhoes e os portugueses, pela vizinhança, parentescos, frequencia de tracto e identidade de origem e crença, podiam reputar-se dois grupos da mesma nação e troncos da mesma familia. Os muitos cujas fortunas tinham de ficar minguadas ou perdidas naquella subita expulsão achariam soccorro numa classe poderosa da população portuguesa, a quem o poder publico concedia ainda, apesar dos odio geraes, protecção religiosa e civil. Isto basta a explicar as diligencias dos judeus hespanhoes para se acolherem temporariamente a este paiz. Preferiam isto a passarem á Africa, onde, depois dos perigos do mar, que, durante o transito, arrojou de novo muitos, com tormentas, para as garras de Torquemada, tinham a experimentar a crueldade e as paixões brutaes dos mouros, incapazes de conceberem idéas de generosa hospitalidade. Contam os historiadores que os commissarios enviados por elles a Portugal para sollicita-rem a permissão da entrada lhes escreveram que deviam de vir, porque a agua era já delles (o commercio maritimo ?), a terra boa e os habitantes parvos ; que o resto em breve delles seria tambem [13]. Nesta anecdota ha todos os visos de uma dessas fabulas que a malevolencia com tanta facilidade inventa. O terror e a afflicção de que os judeus hespanhoes estavam tomados naquella conjunctura não consentiam taes gracejos, além de que, se podiam vir disputar a alguem a riqueza e o poderio que esta dá, não era tanto aos christãos como aos seus proprios co-religionarios. A verdade é que elles não pediam então licença para viverem em Portugal, mas sómente para d'aqui passarem com facilidade a outros paizes. Apertados pelo breve termo que se lhes concedia para saírem dos estados de Fernando e Isabel, propunham que pela fronteira se lhes désse franco accesso, facilitando-se-lhes depois a saída pelos portos do mar. Em agradecimento desta hospitalidade temporaria, offerreciam avultadas quantias. Num conselho celebrado em Cintra, elrei expôs largamente o negocio, mostrando a resolução em que estava de o acceitar, com o fundamento principal de applicar aquellas sommas para a guerra d'Africa. Alguns membros do conselho, ou por seguirem o parecer de elrei ou porque julgassem que as vantagens materiaes da proposta eram taes que deviam fazer calar todos os escrupulos ou, finalmente, por um impulso de humanidade, foram do mesmo voto. Outros, porém, que o fanatismo inspirava oppunham-se áquella resolução. Ponderavam que era vergonha para Portugal ser mais tibio do que Castella nas cousas da fé ; que, negando-se-lhes a entrada, os judeus, collocados entre a conversão e o cadafalso, prefeririam a primeira ou que, pelo menos, na supposição contraria, seus filhos se tornariam christãos, do mesmo modo que, quando se corta uma velha arvore, se enxertam nos rebentões dellas boas prumagens ; que, finalmente, não bastava o pretexto da guerra d'Africa para córar uma acção torpe. Não era D. João ii homem que se demovesse do seu proposito com taes razões, e a admissão dos judeus resolveu-se a final[14]. As condições foram : que o praso para a entrada e residencia no reino não ultrapassaria a oito mezes ; que pagariam uma capitação, ácerca da qual variam os escriptores, acaso porque as exigencias de facto excederam as convenções[15], ficando captivos aquelles que deixassem de solvê-la ao passarem a fronteira ; que, emfim, o governo português lhes administraria navios para se transportarem aonde quizessem, pagando as respectivas passagens[16]. Seiscentas familias mais ricas contractaram particularmente ficarem no reino a troco de sessenta mil cruzados[17]. O mesmo se concedeu aos officiaes mechanicos de certos officios. Designaram-se então os pontos por onde a entrada devia verificar-se, que foram Olivença, Arronches, Castello-Rodrigo, Bragança e Melgaço, e para ahi se enviaram agentes fiscaes que cobrassem a capitação e passassem quitações que serviriam de resalva aos emigrados . As sommas recebidas nesta conjunctura foram avultadissimas ; porque, sendo o terri-torio português o que offerecia mais facil accesso á emigração, e elevando-se esta a perto de oitocentos mil individuos, não sería calculo exaggerado suppor que um terço desse numero transpôs a fronteira. Entretanto, muitos delles, ou mais pobres ou mais avaros, seguindo caminhos escusos, internavam-se no reino, evitando pagar o preço da admissão, mas com a perspectiva do captiveiro, que a vigilancia dos ministros e officiaes d'elrei em breve tornava uma realidade. Estes desgraçados, reduzidos á servidão, eram distribuidos a quem quer que os pedia. Ainda tempos depois, appareciam contra muitos delles accusações de haverem defraudado o fisco, e a consequencia era serem feitos escravos. Quinze mil cruzados offerecidos a elrei e mil aos ministros encarregados de averiguar as contravenções desta ordem poseram termo áquelle genero de perseguição. Todavia, o povo, que, pela má vontade aos judeus, se mostrava adverso á resolução d'elrei, matava os que colhia ás mãos errantes e sós pelos caminhos e despovoados, recusando absolutamente soccorro aos indigentes. Para cumulo de mal, os foragidos trouxeram comsigo a peste que em Castella, e a doença arrebatou, não só grande numero delles, mas tambem uma parte da população indigena, o que duplicava o odio popular contra os ádvenas. Entretanto elrei, que se obrigara a subministrar-lhes navios em que passassem aos portos que lhes conviessem, mandou-lh'os dar só para Africa, d'onde já soava a fama das atrocidades perpetradas pelos mouros contra os que tinham ido buscar asylo naquellas terras inhospitas. Este cumprimento incompleto das promessas feitas foi limitado ainda, por outra restricção. Tanger e Arzilla, praças portuguesas, foram exclusivamente designadas para o desembarque. Ahi os infelizes que íam successivamente passando á Berberia experimentaram toda a casta de flagellos da parte da soldadesca mettida naquelles presidios, além dos vexames e insultos que recebiam dos capitães dos navios durante a passagem. Peior sorte ainda os esperava ao transporem as barreiras dessas praças. As villanias e extorsões dos mussulmanos excediam tudo quanto tinham podido prever os foragidos. A fama absurda, espalhada na Hespanha, de que elles para salvarem o seu ouro o reduziam a pó e o devoravam, chegara a Africa, e os mouros matavam muitos para lhes buscarem nas entranhas as riquezas que de outro modo não lhes encontravam. Taes foram as cruezas e atrocidades dos mussulmanos que grande numero de judeus hespanhoes preferiram voltar ao reino, offerecendo os pulsos ás algemas d'escravos. A sua cubiça insaciavel, o seu orgulho e o abuso do ouro e poder que, provavelmente, elles haviam feito em Hespanha, do mesmo modo que o practicavam em Portugal os seus co-religionarios, recebiam tremendo castigo da mão da Providencia, que de outras cubiças e de um fanatismo cego fizera instrumentos da sua eterna justiça, justiça que, egualmente, não devia tardar em cahir sobre os judeus portugueses[18].

As amarguras destes infelizes, que, depois de espoliados e espancados, viam suas mulheres e filhas deshonradas ante os proprios olhos e os filhos victimas de crimes ainda mais nefandos, das paixões brutaes e sem nome da devassidão mourisca, estavam longe do seu termo. Regressando a Portugal, deviam experimentar, com os que ahi tinham ficado assignalados pelo ferrete da servidão, agonias, se é possivel, ainda mais atrozes. Haviam até então respeitado nelles os affectos domesticos, e deixavam ao amor paterno consolar-se com as caricias da prole infantil. D. João ii despedaçou-lhes essa ultima fibra do coração que ficara intacta. Os filhos menores dos judeus captivos foram tirados aos paes e transferidos para a ilha de S. Thomé, começada a povoar pouco antes. Sem protecção nem abrigo, expostos ás influencias da atmosphera mal-san e aos accidentes de vida semi-barbara, a maior parte delles pereceram, diz-se que, principalmente, devorados pelos crocodilos de que a ilha então abundava. Os que, porém, escaparam vieram, pelos dotes ingenitos da sua raça, a ser colonos opulentos daquella fertil possessão, com o progresso da sua povoação e cultura[19].

Mas, ao menos, o espectaculo de tantas desventuras era util aos hebreus, minorando pela commiseração o odio geral, mais de uma vez manifestado contra elles de um modo solemne? Certo que não. As providencias tomadas ácerca dos foragidos serviam pelo contrario a azedar os animos. Era justamente aos ricos e aos officiaes mechanicos, ao menos a certos, que fora concedida a faculdade de se estabelecerem no reino ; isto é, ás duas classes de judeus mais odiosas pelos motivos que anteriormente vimos, as quaes engrossavam em numero com a accessão de novos membros, ampliando-se, assim, as probabilidades do augmento de vexames, da parte de uma, e de corrupção, da parte de outra. Depois, o exemplo de Castella mostrava que era possivel dispensar os capitaes, a actividade e a industria dessa gente no meneio da fazenda publica e nos serviços communs da vida, em contrario do que o rei affirmara nas cortes de 1490. Além disso, vendo-se e ouvindo-se por toda a parte e da boca dos proprios foragidos a historia das perseguições de que eram victimas, o povo habituava-se á idéa de se repetirem em Portugal scenas analogas, em nome da religião offendida.

Tal era a situação dos judeus e o estado moral do paiz em relação a elles nos annos que precederam immediatamente a morte de D. João ii. Este successo, occorrido nos fins de 1495, elevou ao throno o duque de Béja, D. Manuel, primo do rei fallecido. Membro de uma familia perseguida, o novo monarcha aprendera nos dias da adversidade a ser humano, se não é que a propria indole o inclinava á indulgencia, ensino ou propensão que a fortuna e o habito de reinar haviam de ir oblitterando com o decurso do tempo. Um dos primeiros actos de D. Manuel foi dar a liberdade ao grande numero de judeus que tinham sido reduzidos á condição de servos. Era este um acto ao mesmo tempo de humanidade e de justiça, mas que devia indirectamente augmentar a irritação dos animos, ferindo o interesse daquelles a quem esses escravos haviam sido ou dados ou vendidos. O favor, porém, que os judeus achavam em o novo monarcha ía em breve desaparecer diante de mais graves interesses. A morte do principe D. Affonso, filho de D. João ii, dera um throno ao duque de Béja. Entendeu este que devia recolher inteira a herança, tomando por mulher a viuva do principe fallecido. Esse consorcio, para o qual o attrahia a affeição, aconselhavam-no tambem, porventura, calculos de ambição. A princesa D. Isabel era filha mais velha dos reis catholicos e sua herdeira presumptiva, no caso de faltar o principe D. João, unico fiador da successão masculina ao throno de Castella. Casando com ella, o rei de Portugal via em perspectiva, ao menos como possivel, a reunião das duas coroas da Peninsula numa só cabeça. Proposto o negocio na corte de Castella, os reis catholicos, que já tinham offerecido em casamento ao rei de Portugal a infanta D. Maria, sua filha terceira, accederam á pretensão, mas impondo duas condições. Era uma a liga contra França : versava a outra sobre os refugiados da nação judaica. Na questão da liga D. Manuel cedeu só por metade, obrigando-se, apenas, a enviar soccorros a Castella no caso d'invasão : quanto á segunda condição, as restricções não eram possiveis. A's exigencias dos paes accresciam as da filha. D. Isabel, que ou detestava cordealmente os judeus ou queria servir a politica paterna, pedia, digamos assim, como arrhas, o predominio da intolerancia. No contracto de casamento, assignado em agosto de 1497, estipulou-se expressamente a expulsão dentro de um mez de todos os individuos de raça hebréa que, condemnados pela Inquisição, tinham vindo buscar refugio em Portugal. Só depois de verificado este facto, D. Isabel se obrigava a realisar o desejado enlace, condição que, aliás, fora acceita pelo embaixador de Portugal[20].

Estes ajustes não eram, todavia, os primeiros symptomas da politica d'exterminio que ía pesar sobre os judeus. Fora nos fins d'outubro do anno antecedente que D. Manuel enviara a Castella seu primo D. Alvaro a pedir a mão da princesa D. Isabel, depois de ter recusado a de D. Maria, e já então a corte castelhana quizera aproveitar o ensejo para introduzir em Portugal o systema de intolerancia adoptado no resto da Peninsula. Era a pretensão de Fernando e Isabel que se expulsassem os proprios judeus naturaes dos estados do futuro genro. Proposta a materia em conselho, dividiram-se as opiniões, como era natural em objecto de tanto momento. Os que sustentavam que não se devia tolerar no reino a religião mosaica tinham a seu favor considerações d'interesse religioso e moral, nas quaes se misturavam com muitos sophismas, difficeis de avalliar naquella epocha, algumas verdades attendiveis. Tinham, além disso, para dar importancia ao seu voto a opinião popular, cujas manifestações nada equivocas já descrevemos, e a que haviam dado origem aggravos mais ou menos exaggerados, mas reaes. Por outra parte, os que impugnavam as pretensões de Castella fundavam-se, não só nos principios verdadeiros da tolerancia religiosa, como tambem em altas considerações de economia publica e de politica, a que, até, accrescentavam algumas de interesse religioso. Ponderavam que muitas nações catholicas consentiam entre si os judeus ; que o proprio papa os deixava viver nos estados da igreja, e que, portanto, as razões religiosas que se davam para a sua expulsão não deviam ter demasiado valor; que, vivendo entre christãos, muitos poderiam abrir os olhos á verdadeira luz, o que não succederia se passassem a terras de mouros, facto que se verificaria na maior parte dos casos, se os fizessem saír do reino; que, nesta hypothese, elles iriam levar aos eternos inimigos do christianismo, aos mussulmanos d'Africa, com quem os portugueses andavam em contínuas hostilidades, não só as artes industriaes, nomeiadamente as que tocavam á guerra, mas tambem os recursos das proprias riquezas, o que tudo redundaria em detrimento da religião ; que, finalmente, além do prejuizo que a perda de tantos braços uteis e de tão grossos cabedaes faria á prosperidade do reino, a quebra das rendas publicas, consequencia inevitavel do facto, sería aspera de soffrer e custosa de remedeiar[21]. Eram graves estas razões ; mas elrei, em cujo animo militavam a favor das contrarias as proprias paixões, resolveu cumprir com os desejos dos reis de Castella. Em dezembro de 1496, estando em Muge, aonde fora passar alguns dias no exercicio da caça, expediu uma provisão, na qual se ordenava a saída do reino de todos os judeus não convertidos. Como consequencia forçosa das causas ostensivas de semelhante providencia, a lei abrangia os, mussulmanos não escravos que ainda existiam em Portugal ao abrigo das antigas instituições de tolerancia. Dava-se aos expulsos, para verificarem a partida, o praso de dez mezes, com a comminação de pena ultima e de confisco de todos os bens contra o que desobedecesse, a beneficio do delator. Elrei compromettia-se a deixar-lhes levar livremente quanto possuissem, a fazer-lhes pagar o que lhes devessem, e a facilitar-lhes os meios de transporte e tudo o mais que fosse necessario para se obterem os fins do governo. De resto, a provisão expunha no seu preambulo os fundamentos de uma resolução tão extraordinaria, fundamentos que, na realidade, não eram bastantes para convencer os animos prudentes e desprevenidos[22].

As condições impostas e acceitas no contracto de casamento de D. Manuel completavam os effeitos da provisão promulgada em Muge. Esta versava exclusivamente sobre os judeus e mussulmanos que publicamente professavam a religião de Moysés e a de Mohammed : aquellas referiam-se, tambem, aos hebreus hespanhoes que, convertidos por vontade ou por força ao christianismo, tinham voltado aos antigos erros e, perseguidos pela Inquisição, se haviam refugiado em Portugal. Por esse contracto, Torquemada e os seus satellites estendiam as garras áquem das fronteiras, e a bulla de 3 de abril de 1487, na qual Innocencio viii ordenava a todos os principes procedessem contra os judeus fugitivos d'Hespanha e que todos os principes tinham desprezado [23], recebia, até certo ponto, a sancção de D. Manuel. Não se obrigava este a queimá-los ou a sepultá-los em carceres perpetuos, como os inquisidores desejavam, mas compromettia-se, ainda no caso de se mostrarem exteriormente christãos, a expulsá-los do paiz.

Até aqui, o procedimento da corte portuguesa podia ser tachado de despiedoso, de anti-economico, de subserviente, de fanatico, de tudo, emfim, menos de atroz e infame. A expulsão dos judeus podia ser erro gravissimo, sem ser crime. Quando, porém, os governos, desprezando os conselhos da razão e desattendento á conveniencia publica, se deixam levar dos impetos das paixões, as resistencias moraes ou materiaes, maiores ou menores, que nesse caso sempre encontram, impellem-nos de precipicio em precipicio, até que os fazem, por via de regra, chegar aos desvarios mais absurdos. Foi o que succedeu naquella conjunctura. Abandonadas as antigas tradições de tolerancia, e encetado o caminho da perseguição, pouco tardou o moço principe a dar nelle passos agigantados. Muitos hebreus, assim castelhanos como portugueses, menos firmes nas suas crenças, receiando as consequencias da emigração forçada, abjuraram; o maior numero, porém, delles e os christãos-novos, quer verdadeiros, quer fingidos, refugiados em Portugal preparavam-se para acceitar o barbaro desterro a que os condemnavam quando um dos actos mais desleaes e crueis que podem caber em peito de homens veio inesperadamente converter em inaudito martyrio as maguas de uma parte desses desgraçados. Como meio de catechese, a expulsão não produzira os fructos que della, porventura, se esperavam, e os inconvenientes economicos, a que se não tinha dado toda a consideração que mereciam, avultavam cada vez mais, ao passo que se aproximava o momento de se realisarem. O fanatismo conhecia que errara, em parte, o golpe, vendo que a maioria dos infiéis preferiam a emigração a pedirem o baptismo e a fingirem-se convertidos. O desejo de impedir os effeitos do primeiro erro deu assumpto a serios debates no conselho de D. Manuel, onde, como succedera, já em tempo de D. João II, havia dois partidos oppostos, ao menos numeroso dos quaes o animo d'elrei visivelmente se inclinava. A questão reduzia-se, agora, só aos judeus. Quanto aos sectarios de Mafoma, irmãos em crença e em raça dos mouros d'Africa, podendo considerar-se como um fragmento das nações do Moghreb, tinham quem podesse vingar amplamente as injurias e males feitos aos co-religionarios e quasi compatricios de uma parte dos povos mussulmanos. Neste ponto, o fanatismo recuava covardemente diante do temor das represalias. Nos judeus, sim; nesses podia cevar os seus furores; porque não tinham patria, nem protecção, nem amigos[24]. Havia, porém, muitos membros do concelho que a favor delles invocavam os preceitos bem interpretados da religião e os principios da moral e da equidade. Entre os que mais energicamente sustentavam as boas doutrinas distinguia-se um antigo conselheiro de D. João II, que continuara a servir naquelle cargo o seu successor. Era D. Fernando Coutinho, regedor das justiças e, depois disso, bispo de Silves. Elle e os membros mais illustrados do conselho tinham sido sempre accordes em rejeitar os alvitres calculados para compellir indirectamente os judeus a pedirem o baptismo. Parecia aos velhos jurisconsultos que todas essas perseguições, quando na apparencia fossem efficazes, não serviriam, realmente, para converter ao christianismo um unico sectario da lei de Moysés. «No baptismo recebido violentamente — diziam elles — póde haver o caracter, mas falta o essencial do sacramento, e a violencia que invalida qualquer conversão não consiste sómente em dar punhadas nos peitos.»[25] Estas razões, porém, de alta philosophia christan e os argumentos deduzidos do direito commum, tudo cahiu diante da inflexibilidade d'elrei, que positivamente declarou estar resolvido a empregar quaesquer meios para compellir os judeus a entrarem no gremio catholico. «Não me importa o direito ; — replicava elle. — Tenho devoção de assim o fazer, e ha-de cumprir-se a minha vontade.» [26] Diante disto, era impossivel ouvirem-se os brados da razão e da justiça. Os alvitres mais atrozes foram os que se adoptaram de preferencia, e, dissolvendo o conselho, que se ajunctara em Estremoz, elrei partiu para Evora, onde devia mandar pôr em execução as resoluções tomadas[27].

Estas cousas passavam-se em fevereiro de 1497. No principio de abril expediram-se ordens para que em todo o reino se tirassem aos judeus que tinham preferido o desterro ao baptismo os filhos menores de quatorze annos , para que se distribuissem pelas cidades, villas e aldeias, entregando-os a pessoas que os educassem na crença christan. Emquanto esta providencia tyrannica se dava á execução empregavam se outros meios, não mais fortes, mas directos, para obstar a que as victimas do fanatismo podessem escapar. Tendo-se designado como pontos d'embarque o Porto, Lisboa e o Algarve, declarou-se que Lisboa sería o unico porto d'onde se permittiria aos judeus seguir viagem e tractou-se occultamente de fazer com que ahi faltassem não só os navios sufficientes, mas tambem os objectos necessarios para elles se apparelharem e proverem. Este procedimento de D. Manoel era o cúmulo da villania ; porque, segundo vimos, na lei pela qual se ordenara a expulsão dos judeus dentro de um praso limitado e sob pena de morte e confisco, o governo se obrigara solemnemente a facilitar todos os recursos para tornar possivel o cumprimento dessa cruel resolução. Com argumentos de tal ordem, era impossivel que os sectarios de uma religião que, por seculos, fora a unica verdadeira e da qual o christianismo nascera, não abrissem os olhos e se convencessem da superioridade dessa crença, cujos cultores tão facilmente desobedeciam ás suas maximas de tolerancia, liberdade e justiça [28].

Antes de se expedirem as ordens para os filhos das familias hebréas serem arrancados á força do seio de suas familias, alguns rumores tinham transpirado ácerca deste inaudito attentado. A nova espalhou-se por todos os angulos do paiz, e os ameaçados judeus começaram, no meio do seu terror, a tomar as poucas precauções que o aperto do tempo e das circumstancias lhes permittia. A tormenta não tardou, porém, a desfechar. Facil é de suppor como os atrozes mandados de D. Manoel seriam executados, supposta a malevolencia popular contra aquella infeliz raça. Os gritos das mães de cujos braços arrancavam os filhinhos, os gemidos, os impetos da desesperação dos paes e irmãos, as luctas dos mais audazes, as supplicas e lagrymas inuteis dos mais timidos convertiam o reino numa especie de theatro, onde se representava um drama incrivel, phantastico, diabolico. As indoles mais duras, os espiritos mais ardentes entre a população hebraica, levando a resistencia até o delirio, preferiam despedaçar os filhos, estrangulá-los, ou precipitá-los no fundo de póços a entregá-los aos officiaes regios. Do contacto de dous fanatismos contrarios a mão omnipotente do rei fizera brotar o filicidio. Entretanto, o espectaculo de tantas cruezas inspirava por varias partes a compaixão nos corações que o odio não tinha inteiramente empedernido. Houve entre os christãos quem, lembrando-se da caridade evangelica, escondesse grande numero de creanças a ponto de serem arrebatadas dos braços paternos e que, por um movimento sublime de piedade, se exposesse á colera d'elrei. Mas eram impulsos de generosidade que não podiam ser frequentes, e á tyrannia restavam ainda sobejas victimas para cevar-se. «Eu proprio vi — dizia, mais de trinta annos depois, um prelado veneravel — os paes, com as cabeças mettidas nos capuzes, em signal de suprema dor e de lucto, que conduziam seus filhos á ceremonia do baptismo, protestando e chamando a Deus por testemunha de que elles, paes e filhos, queriam morrer na lei de Moysés.»[29] As primeiras ordens, que limitavam aquella especie de rapto ás creanças de menos de quatorze annos, ou por insinuações secretas ou por excesso dos officiaes publicos, foram ampliadas, applicando-se aos mancebos e raparigas até a idade de vinte annos[30]. No decurso desta perseguição os judeus conheceram a dura sorte que os esperava. Queriam compelli-los, fosse como fosse, a aceitarem o baptismo. Os que tinham recursos ou se lhes facilitava qualquer ensejo de embarcar occultamente faziam-no á custa de todos os sacrificios. Foi assim que grande numero delles alcançaram evitar as ultimas violencias que lhes preparavam[31].

No meio destes successos o praso fatal aproximava-se, e os chefes das principaes familias hebréas que não tinham podido saír a occultas do paiz importunavam elrei para que cumprisse as solemnes promessas que expontaneamente fizera na lei d'expulsão, ordenando que se lhes subministrassem navios, ou, pelo menos, se lhes permitisse mandarem-nos afretar á sua custa. O governo respondeu-lhes a final que se dirigissem todos a Lisboa, onde essas promessas que invocavam seríam realisadas. Fizeram-no assim. Mais de vinte mil, conforme as memorias coevas, chegaram a entrar successivamente nos Estáos[32].

Aquelles a quem os esbirros regios não tinham ainda tirado os filhos viram aqui arrancarem-lh'os dos braços, sem distincção de sexo nem de idade[33]. O fanatismo conduzira áquelle recinto as familias que não tinham podido fugir, para ahi celebrar uma festa digna de cannibaes. Numa especie de delirio, depois de baptisarem violentamente a mocidade hebréa, passaram aos homens feitos e aos velhos : os que resistiam eram arrastados pelos cabellos á pia baptismal[34]. A maior parte, porém, desses malaventurados, postos entre a comminação da morte, a que a lei os condemnava, se não saíssem do reino, e os obstaculos levantados pelo legislador para que a obediencia se tornasse impossivel, curvaram a cabeça e deixaram-se precipitar na voragem. De mais de vinte mil pessoas apenas sete ou oito caractéres heroicos, cujos nomes o tempo escondeu, resistiram imperterritos até a extremidade. A tyrannia recuou diante de uma constancia digna de melhor causa, e a estes sete ou oito individuos mandou o governo dar navio que os transportasse á Africa [35].

O sacrificio estava consummado. O grito do remorso não tardou a levantar-se no seio do Rei de Portugal. Os actos que se acabavam de practicar eram, não só uma affronta ao christianismo, mas tambem um protesto absurdo contra a politica de tolerancia que durante quatro seculos predominara no paiz. Não sómente os hebreus hespanhoes, mas tambem aquella parte da população portuguesa que era a mais rica e industriosa, ou fugira a occultas ou padecera perdas irreparaveis nas phases da perseguição por que tinha passado. Humilhados e opprimidos, os judeus ahi ficavam expostos á malevolencia popular, que não tardaria a accusá-los de um facto não-condemnavel diante da razão suprema, mas criminoso diante dos homens, o voltarem em segredo aos ritos da religião que em publico haviam sido forçados a abandonar. D. Manoel, sem remedeiar o mal que tinha feito, procurou suavisá-lo. A 30 de maio de 1497 appareceu uma provisão em que se estatuiam importantes providencias a favor dos convertidos. Prohibia-se aos magistrados que durante vinte annos syndicassem do seu procedimento religioso, para que tivessem tempo de se esquecerem das antigas crenças e de se confirmarem na fé christan. Era isto confessar autenticamente que esses infelizes haviam sido violentados a mudar de culto, e reconhecer que, tendo-se-lhes dado apenas alguns dias para acceitarem o baptismo, eram necessarios vinte annos para que acreditassem na efficacia delle. Provia-se, tambem, a que, passado aquelle longo praso, ao christão-novo accusado de judaisar fosse applicavel a ordem de processo adoptada ácerca dos outros crimes que se julgavam nos tribunaes civis, isto é, que se lhe declarassem os nomes das testemunhas e quaes os seus depoimentos, de modo que elle podesse contrariá-las, devendo, além disso, a denuncia dar-se dentro de vinte dias depois do delicto commettido, sem o que não seria recebida. Ordenava-se que, dado o caso de ser o delinquente condemnado a perdimento de bens, os recebessem os seus herdeiros christãos, e não o fisco; bem entendido, sendo o crime puramente religioso. O rei promettia que nunca mais se tornaria a legislar ácerca dos judeus como raça distincta. O uso dos livros hebraicos ficava permittido aos medicos e cirurgiões novamente convertidos ou que de futuro houvessem de converter-se, porém não aos que só depois da conversão se applicas-sem a taes sciencias. Uma amnistia geral para todos os conversos terminava aquella serie de providencias, com a restricção de não ser applicavel aos que viessem de fóra, o que evidentemente dizia respeito aos refugiados hespanhoes perseguidos pela Inquisição, os quaes D. Manuel offerecia em holocausto á predilecta do seu coração, á nóra de D. João ii, o destruidor da sua familia[36].

Apesar destas demonstrações de indulgencia, com que se pretendia disfarçar o horror das commettidas violencias, a situação das victimas não deixava de ser altamente oppressiva. Sectarios da lei mosaica, eram obrigados a simular nos actos da vida externa o cumprimento dos deveres do catholicismo, e só na solidão, no mais recondito das suas moradas ou pelas trevas da noite, podiam invocar em voz submissa o Deus de Israel. A letra da lei destinada a protegê-los provava que o proprio legislador não cria na realidade da sua conversão, e, como elle, ninguem a podia acreditar. Assim, no animo do vulgo, aos antigos odios, nascidos em grande parte de causas materiaes, viriam ajunctar-se as suspeitas, aliás razoaveis, de que as preces e os ritos christãos na boca e nas exterioridades dos conversos não passavam de blasphemia e d'escarneo. Longe, por isso, de se minorarem, aquelles odios deviam crescer. Por outro lado, a Inquisição como se estabelecera em Castella tinha parciaes em Portugal, e o fanatismo devia desde logo pensar seriamente em obter para o reino instituições analogas. O seu interesse era assoalhar quaesquer factos de judaismo que se practicassem, e levar ao ultimo auge a indisposição dos christãos velhos contra os novos. A lei podia durante vinte annos pôr estes a abrigo das perseguições individuaes : mas o que não podia era impedir que a opinião publica se fosse preparando para no futuro considerar justo e conveniente punilos por judaisarem. Demais, desde que eram considerados legalmente como membros da igreja catholica estavam sujeitos, se delinquissem nas cousas da fé, ás penas canonicas e civis fulminadas contra os herejes. Assim, dado o exemplo no resto da Peninsula, facil era de prever, num futuro mais ou menos proximo, o estabelecimento da Inquisição em Portugal.

As consequencias deste estado de cousas eram obvias. Passado o primeiro terror, os mais prudentes entre os christãos-novos começaram a cuidar seriamente em preparar-se para evitar a ultima ruina. O unico meio seguro era porem em salvo as vidas e as fortunas, convertendo os seus bens em dinheiro ou em mercadorias que gradualmente fizessem saír do paiz, e transportando-se, depois, com as suas familias para a Italia, para Flandres ou para o Oriente, onde encontrariam asylo e tolerancia religiosa. Porventura, o desejo de se libertarem de uma situação insoffrivel mais depressa do que convinha precipitou-os em novas difficuldades. Os que eram opulentos, alienando as propriedades territoriaes ou realisando imprudentemente o valor de mercadorias e transferindo, por via de letras de cambio, os seus cabedaes para fóra do reino, inspiravam suspeitas ao poder, que observava com inquietação os effeitos das violencias passadas . Julgou-se indispensavel atalhar o mal com outras violencias; nem a diversos meios se podia recorrer depois de uma conversão forçada. Publicaram-se dous alvarás com data de 21 e 22 de abril de 1499, prohibindo a naturaes e a estrangeiros que fizessem cambios com os christãos-novos sobre mercadorias ou dinheiro e ordenando que os já feitos se denunciassem dentro de oito dias ; que ninguem lhes comprasse bens de raiz sem licença regia especial ; que, finalmente, a nenhum dos novos conversos se consentisse o saír do reino com mulher, filhos e casa, sem permissão expressa d'elrei. A pena de confisco sanccionava estas diversas providencias[37]. Assim, a tyrannia gerava a iniquidade. Tendo cessado pela conversão as leis civis que regulavam os direitos e deveres da raça hebréa, considerada até ahi como uma sociedade á parte, os judeus tinham entrado, não só naturalmente, mas tambem em virtude de lei expressa, no direito commum. Todavia, dentro de dous annos o poder via-se constrangido a revogar a lei e o direito, pondo essa classe de individuos numa condição quasi servil e privando-a inteiramente de uma das mais importantes liberdades do resto dos cidadãos.

Estas providencias creavam uma lucta entre a vigilância do governo e a astúcia dos judeus, lucta na qual, mais de uma vez, a primeira havia de ficar vencida. Afora os diversos expedientes a que, em geral, os christãos-novos podiam recorrer, querendo illudir as provisões dos alvarás de 20 e 21 de bril, havia, em particular, para os opulentos a corrupção dos officiaes públicos ou de outras pessoas que, a troco de largas recompensas, se arriscassem a favorecê-los na fuga, com desprezo da lei. As tentativas deste género não foram, todavia, sempre felizes, e houve indivíduos processados por transportarem familias hebréas do Algarve para Berbéria[38]. Uma caravela carregada de christãos-novos, que saíra de Portugal para Africa, batida pelos temporaes arribou aos Açores, e os infelizes passageiros, presos ahi e condemnados depois a serem escravos, foram dados de presente por elrei a Vasqueanes Corte-real[39]. Entretanto, alguns prelados criam cumprir as obrigações do officio pastoral, syndicando do procedimento desses homens, que na apparencia pertenciam aos seus respectivos rebanhos, emquanto outros as cumpriam effectivamente, procurando instrui-los e convencê-los, unicos meios de proselytismo accordes com a verdade evangélica, e que, porventura, a Providencia abençoou muitas vezes com o fructo de conversões sinceras[40].

Tantos vexames e tyrannias não satisfaziam, comtudo, nem o fanatismo, nem os rancores populares, que elle não deixava amortecer. Se, por um lado, os conversos procuravam illudir as providencias destinadas a amarrá-los ao poste do martyrio, e fixá-los nesta terra que para eles se tornara em logar de desterro, a malevolencia não respeitava, por outro, as prescripções da provisão de 30 de maio de 1497, com que se pretendera atenuar os effeitos de uma loucura cruel, e os próprios magistrados procediam ás vezes contra aquelles sobre quem recahiam suspeitas de practicarem secretamente os ritos do judaismo. E' curioso um documento que a este respeito resta. No dia de natal de 1500, em Cintra, um rapaz viu passar quatro creanças, filhos de christãos-novos, levando lume comsigo. Seguiu-os e viu-os entrar para uma casa detraz dos paços reaes. Entrando após elles pouco depois, achou que tinham pendurado uma cortina na parede, collocado ante ella a cabeça truncada de uma imagem e diante desta dous rolos de cera accesos. Veio ao pae: contou-lhe o que vira. A gravidade do caso obrigou este a denunciar esse facto á justiça no dia seguinte. Havia pregado naquela manhan em S. Pedro de Penaferrim um frade, o qual, segundo parece, invectivara piedosamente contra os judeus e, como prova da maldade dessa raça abominável, referira que em dia de S. Thomé, ao romper d'alva, se haviam visto saír do paço seis ou sete christãos-novos descalços, ignorando-se para onde íam, successo extranho, que vogara logo por toda a villa. Esta delação, vinda do alto do púlpito, não era menos ridicula do que a relativa ás quatro creanças. Todavia, achou-se nisto matéria sufficiente para abrir uma devassa. Evidentemente, debaixo dessa delação absurda havia um pensamento malévolo, e os christãos-novos de Cintra buscaram o amparo dos tribunaes superiores. Não tardou uma ordem d'elrei para que o começado processo fosse transmittido aos seus desembargadores do paço. Examinado o negocio, o tribunal reprehendeu severamente os juizes de Cintra, não só por terem inquirido testemunhas indignas, mas também por procederem em contravenção da lei, advertindo-os de que a reincidência em taes actos seria asperamente punida [41].

Este successo e muitos outros análogos que encontraremos no progresso da nossa narrativa parece confirmarem o que, annos depois, os christãos-novos allegavam em Roma, para provarem as perseguições de que os odios populares, accendidos pelas prédicas dos frades, principalmente dos dominicanos, os tinham tornado victimas desde o reinado de D. Manuel[42]. Que a maioria desses pseudo-christãos judaisassem em segredo é mais que provavel; é moralmente certo: mas que o descubrir o facto fosse facil aos seus inimigos é o que razoavelmente se não póde crer. A calumnia devia, portanto, fazer seu officio, e esse mesmo mysterio de que os judeus tinham de rodeiar-se dava, por effeito da imaginação, caractéres sinistros aos ritos mosaicos, que, emquanto permittidos e publicos, eram, a bem dizer, indifferentes para a população christan. Quanto mais absurdas fossem as lendas que a esse respeito se repetissem, mais credito mereceriam ao verdadeiro. As insinuações do fanatismo lavraram, portanto, facilmente nos animos prevenidos, e a irritação destes não tardou a manifestar-se de modo terrivel.

Lisboa, não só pela sua grandeza relativa, mas tambem pelos sucessos occorridos em 1497, devia, proporcionalmente, encerrar no seu recincto maior numero de familias hebréas que nenhuma outra povoação do reino. As diversas causas de excitamento popular contra os christãos-novos obravam, por isso, aqui com maior violencia, até porque a vigilancia dos magistrados e tribunaes superiores obstava melhor na corte aos excessos do odio e, obrigando-o a reconcentrar-se sem o destruir, dava-lhe novas forças. Como os vulcões, ora dormentes, depois murmurando com fugitivos abalos respiram apenas por uma ou por outra fenda as materias vulcanicas e, a final, rebentando em erupção violenta, lançam em turbilhões a lava e o fumo por todo o âmbito da negra cratera, assim a má vontade do vulgacho, silenciosa a principio, começou a manifestar-se na injuria e, recalcada, veio a rebentar em scenas de atrocidade. Os symptomas da futura erupção começavam. No dia de Pentecostes (25 de maio de 1504) alguns conversos achavam-se na rua nova, então a principal de Lisboa, quando subitamente se viram rodeiados de uma turba de rapazes, nenhum dos quaes passava de 15 annos. Do meio dessa turba começaram a chover sobre elles as affrontas e os motejos. Menos paciente, um dos injuriados tirou da espada e feriu cinco ou seis dos aggressores. Suscitou-se um tumulto, mas, acudindo o governador da justiça com os seus officiaes, pôde atalhar o incendio. Foram presos quarenta moços, e instaurouse-lhes processo. A devassa a que se procedeu provou a innocencia dos aggredidos. Apesar da idade dos réus, o tribunal condemnou-os a açoutes e a degredo perpetuo para S. Thomé. As supplicas da rainha fizeram, porém, com que elrei lhes perdoasse a ultima parte da pena[43].

Ao passo que os individuos de origem hebréa estavam assim expostos aos insultos da gentalha, a Inquisição d'Hespanha, devorada da sede insaciavel de sangue, forcejava por colher ás mãos aquelles que, perseguidos por ella, vinham buscar asylo em Portugal. Fosse qual fosse aqui a situação dos judeus, os refugiados evitavam, ao menos, as dilatadas agonias dos carceres e tormentos e o atroz supplicio do fogo. A Torquemada succedera D. Diogo Deza no cargo d'inquisidor geral, e a intolerancia e o fanatismo do furioso dominicano tinham achado nelle um digno representante. Deza, sem ser menos cruel que o seu predecessor, excedia-o em actividade[44]. A facilidade com que se transpunham as fronteiras dos dous paizes fazia abortar muitas vezes os designios de perseguição, e as sentenças do tribunal da fé ficavam sem execução ou tinham-na, apenas, nessas farças, ao mesmo tempo ferozes e ridiculas, a que chamavam queimar em estatua. Doía a alma aos inquisidores de ver escaparem-lhes tantas victimas, trabalharam, portanto, em obstar ao mal. Attendendo ás suas queixas, a corte de Castella resolveu entabolar negociações a este respeito com a de Portugal. Talvez em virtude de convenções anteriores, já no anno de 1503, D. Manuel expedira um alvará cujos fins evidentemente eram obstar á entrada dos judeus perseguidos pela Inquisição. Nelle se ordenava sob graves penas que nenhum castelhano fosse admittido a passar a fronteira para fixar a sua residencia em Portugal, sem preceder uma justificação de que não estava culpado no seu paiz por crimes contra a religião[45]. Estes obstaculos, porém, que assim se buscavam levantar á entrada dos perseguidos eram mais de nome que de substancia. Por muita que fosse a severidade de que o governo português usava contra os refugiados, essa severidade era inferior ao martyrio. Assim a emigração continuava[46], ao passo que o rei de Castella, instigado pelos inquisidores, exigia a entrega dos foragidos, invocando as capitulações que existiam entre os dous paizes para a extradicção dos criminosos. Ou porque os impulsos da humanidade tivessem prevalecido nos conselhos de D. Manuel, ou porque as conveniencias a isso o movessem, o governo português recusou acceder á pretensão, com o fundamento de que esses individuos não estavam incluidos na letra dos tractados. De resto, D. Manuel offerecia o arbitrio de virem os agentes da Inquisição persegui-los judicialmente em Portugal, onde tambem se podia fazer delles justiça. Recorreu-se então á bulla de 3 de abril de 1487, pela qual se ordenava a todos os principes entregassem á Inquisição os judeus hespanhoes refugiados nos seus respectivos estados, bulla cujas inhumanas provisões já D. João ii desprezara completamente. Segundo parece, D. Manuel seguiu nesta parte as doutrinas do seu antecessor; porque não consta terem tido resultado os esforços dos inquisidores castelhanos e do seu agente, o fanatico rei de Aragão[47].

Estas negociações e o seu nenhum resultado estão indicando que os ímpetos da intolerancia tinham affrouxado na corte de Portugal. Não assim entre o povo, excitado pelo fanatismo monastico e pelos antigos odios. O incendio ardia debaixo das cinzas: o menor incidente bastaria para alevantar as chammas; e este incidente não tardou a apparecer.

Era na primavera de 1506. A irregularidade das estações nos dous annos antecedentes, irregularidade que se protrahiu até o anno seguinte, deu em resultado a fome. Ainda naquella epocha a falta de subsistencias trazia, em regra, por companheiro um flagello, então trivial, não só por esta, mas tambem por outras causas. Era a peste. Já no outomno de 1505 se manifestavam em Lisboa os symptomas do terrivel mal. A corte, fugindo ao perigo á medida que elle se aproximava, passara successivamente para Almeirim, Santarem e Abrantes. D'alli elrei, atravessanda o Tejo, dirigia-se a Béja, onde então residia a infanta D. Beatriz, sua mãe, quando ao chegar a Avis vieram saiteiá-lo novas tão espantosas como inesperadas. Um motim popular contra os christãos-novos rebentara em Lisboa, e esse motim fora assignalado por scenas horriveis. Tomadas as providencias mais urgentes, e passando rapidamente por Béja, D. Manuel veio fixar a sua residencia em Setubal, resolvido a proceder severamente contra os habitantes da capital. Eis os factos que, suscitando a indignação delrei e exigindo exemplar castigo, resultaram dos inqueritos a que se procedeu, logo que foi possivel conter o tumulto e restabelecer a paz.[48]

Desde janeiro que a peste redobrava de intensidade em Lisboa, e nos principios de abril era tal o progresso da epidemia que a mortalidade subia alguns dias ao numero de 130 individuos. Faziam-se preces publicas, e a 15 do mez ordenou-se uma procissão de penitencia, que, saindo da igreja de S. Estevam, se recolheu na de S. Domingos, seguindo-se a celebração de preces solemnes. Durante ellas, o povo implorava em gritos a misericordia divina . No altar da capella chamada de Jesus havia naquelle tempo um crucifixo, e no lado da imagem do Salvador um pequeno receptaculo. que servia de custodia a uma hostia consagrada. No excesso da exaltação religiosa houve quem cresse ver ahi, e talvez visse, uma luz extranha. Espalhou-se logo voz de milagre. Ou que os dominicanos, aproveitando a illusão, realisassem artificialmente a supposta maravilha ou que a credulidade, fortalecida pelos terrores da peste, predisposesse cada vez mais a imaginação do vulgo para ver aquelle singular clarão, é certo que ainda nos dias seguintes havia quem affirmasse divisá-lo perfeitamente. Todavia, o voto mais commum era que essa maravilha não passava de uma fraude, e ainda muitos dos mais crentes suspeitavam que o facto existira apenas nas imaginações escandecidas[49]. Durante quatro dias a crença no prodigio foi ganhando vigor. No domingo seguinte ao meio dia, celebrados os officios divinos, examinava o povo a supposta maravilha, contra cuja authenticidade recresciam suspeitas no espirito de muitos dos espectadores. Achava-se entre estes um christão-novo, ao qual escaparam da boca manifestações imprudentes de incredulidade ácerca do milagre. A indignação dos crentes, excitada, provavelmente, pelos auctores da burla[50], communicou-se á multidão. O miseravel blasphemo foi arrastado para o adro, assassinado, e queimado o seu cada ver. O tumulto attrahira maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas declamações. Dous outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia! O rugido do tigre popular não tardou a reboar por toda a cidade. As marinhagens de muitos navios estrangeiros fundeiados no rio vieram em breve associar-se á plebe amotinada. Seguiu-se um longo drama de anarchia. Os christãos-novos que gyravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou mal feridos e arrastados, ás vezes semi-vivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham armado, tanto no Rocio como nas ribeiras do Tejo. O juiz do crime, que com os seus officiaes pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido queimado com a própria habitação, se um raio de piedade não houvera momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as lagrymas da sua esposa, que, desgrenhada, implorava piedade. Os dous frades[51] enfureciam as turbas com os seus brados, e guiavam-nas com actividade infernal naquelle tremendo lavor. O grito da revolta era : Queimae-os ! Quantos christãos-novos encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira e do Rocio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas e ás vezes, num e noutro logar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte individuos[52]. A ebriedade daquelle bando de cannibaes não se desvaneceu com o repouso da noite. Na segunda-feira as scenas da vespera repetiram-se com maior violencia, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas ainda mais hediondas. Acima de quinhentas pessoas tinham perecido na vespera : neste dia passaram de mil. Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo associar-se todas as ruins paixões, o odio, a vingança covarde, a calumnia, a luxuria, o roubo. As inimizades profundas achavam no motim popular ensejo favorável para atrozes vinganças, e muitos christãos-velhos foram levados ás fogueiras com os neophytos judeus. Alguns só obtinham salvar-se mostrando publicamente diante dos assassinos que não eram circumcidados [53]. As casas dos christãos-novos foram accommettidas e entradas. Mettiam a ferro homens, mulheres e velhos : as creanças arrancavam-nas dos peitos das mães e, pegando-lhes pelos pés, esmagavam-lhes o craneo nas paredes dos aposentos. Depois saqueiavam tudo. Aqui e acolá, viam-se nas ruas alagadas de sangue pilhas de quarenta ou cincoenta cadaveres que esperavam a sua vez nas fogueiras. Os templos e os altares não serviam de refugio aos que tinham ido acoutar-se á sombra delles e abraçar-se com os sacrários e imagens dos sanctos. Donzellas e mulheres casadas, expellidas do sanctuario, eram prostituidas e depois atiradas ás chammas[54]. Os officiaes publicos que por qualquer modo buscavam pôr diques a esta torrente de atrocidades e infamias escapavam a custo, pela fuga, ao ímpeto irresistível das turbas concitadas ; porque, além da gente dos navios estrangeiros, mais de mil homens da plebe andavam embebidos naquella carnificina. A noite, que descia, veio, a final cubrir com o seu manto este espectáculo medonho, que se renovou no dia seguinte. Mas já as hecatombes

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eram menos frequentes, porque escaceiavam as victimas. Os christãos-velhos

que ainda acreditavam em Deus e na humanidade tinham aproveitado o cansaço dos algozes para salvar grande numero daquelles desgraçados, escondendo-os ou facilitando-lhes a fuga, inútil até certo ponto, porque ainda varios delles foram assassinados nas aldeias circumvizinhas. Até a terça-feira á tarde o numero dos mortos orçava por dous mil individuos[55]. Á medida que faltavam alfaias que roubar, mulheres que prostituir, sangue que verter, a multidão asserenava, e os filhos de S. Domingos, recolhendo-se ao seu antro, íam repousar das fadigas daquelle dia.

Não era, porém, só o cansaço e a falta de victimas que induziam as turbas á moderação. O regedor da justiça, Ayres da Silva, e D. Álvaro de Castro, governador da casa do civel, tinham-se a este tempo aproximado de Lisboa com os officiaes de justiça e gente armada, e, fazendo alto juncto ás muralhas contiguas a S. Vicente de Fóra, haviam mandado lançar pregão para que os cidadãos pegassem em armas e fossem reunir-se á força publica, sob pena de perdimento de seus bens. Os moradores da capital extranhos á carnificina e, talvez, alguns dos próprios assassinos, corriam a apresentar-se no campo juncto de S. Vicente. Assim, o temor devia fazer esfriar os ardores do fanatismo. Alguns frades, porventura compromettidos naquelles negros successos, buscaram ser medianeiros entre a gentalha e a força publica. Accordaram com elles os magistrados que a revolta acabaria promettendo-se a impunidade, promessa que equivaleria á quebra de todas as leis do mundo moral, se não fosse o unico meio de restabelecer o socego e de facilitar a punição dos culpados[56].

Entretanto o prior do Crato e o barão de Alvito partiram para Lisboa por ordem d'elrei, com largos poderes. Convocando os juizes criminaes, os dous commissarios regios mandaram proceder a severas investigações. Não tardou que fossem presos os mais notaveis entre os facinorosos. Julgados summariamente, foram logo enforcados de quarenta a cincoenta, sendo decepadas as mãos a alguns, e esquartejados outros[57]. Presos, tambem, os dous dominicanos que haviam capitaneado a plebe, levaram-nos a Setubal, e d'alli a Evora, onde privados das ordens, os condemnaram a garrote e a serem queimados os seus cadaveres. Os outros dominicanos de Lisboa foram expulsos do convento, que se entregou á administração de clérigos seculares, sendo inhibidos ao mesmo tempo os frades de tornarem á capital, prova de que tinham influido directa ou indirectamente no crime. Uma carta de lei, expedida a 22 de maio, condemnou finalmente Lisboa a perder grande parte dos antigos privilégios, por causa da indiferença ou da covardia com que os seus habitantes haviam tolerado os attentados da plebe. Os que intervieram de algum modo no motim, dando-lhe favor e ajuda, tiveram por pena o perdimento de todos os seus bens para o fisco[58], e á casa dos vinte quatro tirou-se a prerogativa de intervir pelos seus representantes nas deliberações municipaes. Debalde a camara enviou a elrei um dos seus membros a pedir misericordia para a capital. D. Manuel declarou-lhes que era necessario dar ao mundo aquelle exemplo de rigor, por um lado contra tantas atrocidades dos maus, por outro lado contra tanta negligencia dos que não o eram. Assim, a lei de 22 de maio foi dada á execução[59]. As manifestações, porém, da indignação do monarcha affrouxaram passados cinco mezes, e foi justamente naquella providencia em que devera mostrar mais inflexibilidade de que elrei principiou a ceder. Mandou-se restituir o convento de S. Domingos em Lisboa á ordem dos pregadores, com a restricção de não voltarem a elle os frades que alli residiam na conjunctura do motim[60].

Os meios directos e indirectos que se haviam empregado para obter dos judeus uma conversão falsa e sacrilega e para obstar á sua saída do reino tinham sido, a todas as luzes, uma barbara tyrannia ; mas, quando o reresultado de tão atroz systema se completava pelas scenas de extermínio que temos descripto, era impossível que os remorsos não lacerassem o coração de D. Manuel e daquelles que applaudiam ou aconselhavam esta politica anti-christan. Evidentemente o fanatismo ou, antes, a hypocrisia não se contentava com a oppressão e o sacrilégio : queria a espoliação e o sangue. Os dominicanos tinham usado de uma terrível eloquência, hasteiando o symbolo da redempção e a imagem do Salvador para á sombra dessa imagem abrigarem o roubo, a prostituição e o assassínio. Todas as idéas religiosas e moraes estavam invertidas. Reter á força os pseudo christãos-novos em Portugal era renovar deliberadamente essa epocha em que os martyres cabiam despedaçados pelas feras nos circos romanos. Só os actores mudariam. Nada mais natural, portanto, do que modificarem-se as opiniões do rei de Portugal. Os clamores daquella raça proscripta foram, emfim, ouvidos. A ordenação pela qual se estatuira que nenhum christão-novo saísse do reino sem permissão regia, a que lhes vedava venderem os bens de raiz e a que os inhibia de converterem capitães em letras de cambio, tudo foi revogado. Deu-se-lhes ampla licença para saírem, definitiva ou temporariamente do paiz, irem, virem, mercadejarem por mar ou por terra, como lhes aprouvesse, alienarem os seus bens, transferirem os cabedaes em dinheiro ou em mercadorias, com tanto que fosse para terra de christãos e em navios portugueses. E, todavia, o monarcha promettia nunca mais promulgar leis excepcionaes ácerca dos que continuassem a residir em Portugal. Os que, contra as defesas que lhes haviam sido postas, tinham fugido do reino, poderiam voltar a elle sem receio de castigo, e deviam desde logo cessar as fianças daquelles a quem as tinha exigido com temor de que fugissem. Em summa, os subditos portugueses de raça judaica ficavam equiparados aos outros, sendo-lhes applicavel, em tudo e por tudo, o direito commum[61]. Além disso, os privilégios que por vinte annos se haviam concedido aos neophytos convertidos á força em 1497, nomeiadamente o de não devassarem acerca do seu procedimento religioso, foram suscitados de novo e solemnemente promulgados, para serem cumpridos á risca nos dez annos que faltavam, pondo-se em todo o seu vigor[62].

Estas demonstrações de benevolência e de arrependimento das passadas tyrannias, ao mesmo tempo que eram para os christãos-novos um lenitivo no meio de tantas amarguras, creavam-lhes esperanças enganosas para o futuro, fazendo-lhes crer que a intolerancia e os ódios brutaes do povo excitado pelos frades obrigariam o poder publico a protegê-los com redobrada energia. Persuadiram-se de que a opinião do vulgo, radicada pela lembrança de antigos aggravos, mantida e generalisada pela poderosa influencia do clero, poderia ser vencida pelas sans idéas da politica judiciosa que, num momento de indignação e horror, D. Manuel adoptara. Illudia-os, por certo, o desejo de não abandonarem o paiz, retidos por essa multidão de affectos que prendem o homem á terra natal. Commerciantes, industriaes, proprietarios, exercendo profissões scientificas, constituindo, emfim, a melhor parte do que hoje chamamos classe média, os seus interesses deviam padecer altamente com a expatriação, e nenhuma raça mostrou nunca tanto soffrimento, tanto esforço em arrostar com todos os riscos para salvar ou augmentar a propria fortuna como a gente hebréa. Propensões, a bem dizer irresistíveis, levavam, portanto, assim os judeus portugueses, como os hespanhoes que tinham adoptado Portugal por pátria, a adormecerem na cratera de um vulcão que, talvez, suppunham ía ser extincto, porque socegara, depois de violenta erupção. Desprezando a liberdade que, num impulso de tolerancia, se lhes concedia, e sacrificando, por esse modo, o futuro ás vantagens transitorias do presente, nenhuns ou quasi nenhuns saíram do reino[63]. Desde logo, porém, os indicios da malevolencia popular começaram a apparecer de novo em tentativas isoladas contra alguns delles, não obstante a severidade com que os magistrados tractavam de cohibir semelhantes manifestações[64].

Todavia, póde-se dizer que o periodo decorrido desde 1507 até 1521, epocha da morte de D. Manuel, foi, comparativamente, para os christãos-novos uma epocha de paz. A protecção dada pelo governo aos neophytos era efficaz, e esta protecção estendia-se aos proprios refugiados das outras regiões da Península. Não deixava a Inquisição castelhana de sollicitar, ás vezes, que lhe fossem entregues e de fazer, como já vimos, intervir nisso o poder civil, intervenção inutil, porque o governo português repellia nobremente essas pretensões que tendiam a deshonrá-lo pela quebra da hospitalidade. Um successo occorido em 1510 prova quão esclarecida politica predominava agora nos conselhos de D. Manuel. Pedia a Inquisição de Sevilha, com o favor d'elrei de Castella, que fossem presos e remettidos áquelle tribunal, para certas investigações, vários indivíduos que tinham vindo buscar abrigo á sombra da tolerancia do governo português. Queria el-rei satisfazer os desejos de Fernando v; mas achou resistencia nos do seu conselho, que entendiam não se dever conceder tal cousa, sem que viessem cartas de seguro, civil e ecclesiastico, de que os presos não padeceriam pena alguma e de que seriam restituidos a Portugal dentro de praso fixo. Teve elrei de ceder, e aquelles desgraçados, de quem os inquisidores diziam querer só algumas declarações, foram entregues com todas as prevenções exigidas, e dando juramento o familiar ou esbirro que os veio receber de que ele proprio os restituiria à pátria adotiva, sãos e salvos das garras do Santo-Officio[65]

Aproveitando estas circumstancias favoraveis, os cristãos-novos tentaram desarmar os inimigos pelos actos da vida externa. Guardavam restritamente as formulas do culto catholico, que é de crer o maior numero delles não seguisse na vida privada. Buscavam ligar seus filhos por casamentos a familias de cristãos-velhos, adquirindo assim alliados e defensores entre os proprios adversarios. Muitos íam abrigar a sua existencia futura á sombra do altar, dedicando-se ao ministerio sacerdotal. Se, em secreto, alguns destes continuavam a seguir a lei de Moysés, aquelle arbitrio era um sacrilegio; mas a responsabilidade de semelhante crime não recahia sobre elles, recahia sobre os hypocritas ou fanaticos cuja intolerancia sanguinaria constrangia uma raça timida e fraca a praticar tais actos. Longe de procurarem pôr a salvo as suas riquezas, os christãos-novos reduziam-nas a propriedade territorial e alargavam o ambito do seu commercio e industria. Não só o rei, mas tambem a nobreza, talvez illudidos por um procedimento que simulava conversões sinceras e que, em muitos casos, não seria fingido, amparavam-nos e favoreciam-nos[66]. Chegou-se a ponto de perdoar, em 1510, a todos os christãos-novos hespanhoes que haviam entrado no reino sem guardarem as formalidades estabelecidas em 1503, só com a restricção de saírem do reino dentro de certo praso, restricção que, aliás, não parece ter-se guardado com demasiado rigor[67]. A prova, porém, mais evidente de que os ministros e conselheiros de D. Manuel tinham, emfim, abraçado idéas razoaveis e justas ácerca da raça hebréa está na mercê feita aos christãos-novos e a seus filhos com a prorogação do praso das immunidades que lhes haviam sido concedidas em 1497, praso que devia terminar em fevereiro de 1518. Uma carta de lei, expedida em 21 de abril de 1512, dilatou por mais dezeseis annos o periodo de vinte, fixado na conjunctura da conversão forçada, vindo, assim, a findar agora esse praso em 1534. Os fundamentos da lei dão testemunho da vantagem que levava o systema de moderação ao da violencia. Concedia-se-lhes aquella graça por «viverem bem e honestamente e por guardarem, como fiéis christãos, os preceitos da religião catholica[68].» Se este systema sensato se houvera seguido com perseverança, as apparencias e dissimulações dos judeus ter-se-hiam convertido em realidades. Desde que se associavam pelos matrimonios ás famílias christans, nem a separação de raça, nem a de religião poderiam ter resistido aos effeitos inevitaveis do tempo. Incomparavelmente menos numerosos do que a grande massa da população, esta havia necessariamente de absorvê-los no decurso de algumas gerações, e a crença occulta, sem ritos, sem manifestações materiaes, ir-se-hia obliterando no seio do culto catholico, tão poderoso sobre as imaginações, e da moral christan, mais razoavel e progressiva do que as doutrinas judaicas.

Mas o espirito de intolerância e perseguição, opprimido pela pela politica adoptada depois das atrocidades de 1506, trabalhava em silencio com tenacidade diabolica. O odio é perspicaz e, quando a sua perspicacia é illudida, não lhe escaceia a faculdade da invenção. Onde falta materia para accusações verdadeiras, a calumnia acode-lhe com recursos, tirando essas accusações do nada. Pelas mesmas ligações intimas que os judeus travavam com as familias christans tornava-se impossivel que, uma ou outra vez, não fossem trahidos os que, mostrando-se catholicos nas exterioridades, se conservavam aferrados á religião da sua infancia, e nas acções indifferentes de outros, sinceramente convertidos, saberia, não raro, achar a malevolencia indicios de occulto judaismo. A punição dos assassinos no motim de 1506, sobretudo a dos dous frades seus chefes, e a expulsão dos dominicanos, junctamente com os favores concedidos aos christãos-novos, eram factos que deviam exasperar até o ultimo auge os partidarios de uma intolerancia barbara. Pertencendo a esta parcialidade indivíduos de todas as condições e jerarchias e, em regra geral, o clero, o fanatismo, a vingança alcançavam, não só alimentar as idéas de perseguição entre o povo, mas tambem ír dispondo o animo de D. Manuel para voltar, com inesperada deslealdade, ao systema com que deshonrara os primeiros annos do seu reinado. Os effeitos destes esforços incessantes provam-nos a sua existencia. Os indicios de mudança no animo d'elrei começam a apparecer num alvará expedido no mez de junho de 1512, pelo qual se prohibe a acceitação de novas querellas contra os implicados nos assassinios de 1506 e se mandam suspender os processos já começados[69]. Este acto de misericordia podia, comtudo, ser calculado para se contrapor ás concessões que nessa conjunctura se faziam aos christãos-novos. Não assim a trama occulta que poucos tempos depois se urdiu. Apesar das garantias de tolerancia dadas pelas solemnes promessas de 1497, revalidadas em 1509 e prorogadas em 1512, á vista das quaes parecia não deverem os christãos-novos temer procedimento algum contra quaesquer actos occultos de judaismo, com os symptomas de novos impetos populares contra os christãos-novos coincidia a resolução , tomada por elrei, de estabelecer em Portugal a Inquisição d'Hespanha. Em 1515 appareceram affixados nos logares mais frequentados de Lisboa escriptos cujo alvo era concitar o vulgacho contra os judeus. Os ameaçados requereram então que se lançassem pregões, offerecendo o premio de 300 cruzados a quem descubrisse o auctor ou auctores desses papeis sediciosos. Obrigavam-se a pagar elles o premio do delator. Entretanto, dizia-se publicamente que, se em Portugal existissem cem mancebos de verdadeiro esforço, todos os christãos-novos seríam postos a espada. Procediam os magistrados vagarosamente contra estas tentativas para se renovarem as scenas de 1506; mas parece que os proprios judeus, passado o primeiro impeto, começaram a receiar que esse procedimento severo tivesse peiores resultados. Sabíam, naturalmente, quem eram os motores daquellas manifestações malevolas e temiam que, perseguidos, tirassem do perigo ousadia para cometterem abertamente aquillo que, por emquanto, só se atreviam a emprehender nas trevas. É assim que se póde explicar a hesitação que mostraram em apromptar a pequena somma que haviam offerecido para se descubrirem os auctores das proclamações dirigidas contra elles[70]. Tinham, por certo, razão de procederem deste modo para evitatarem accender mais a irritação dos animos. Nas regiões do poder nuvens pesadas e negras annunciavam novos perigos. A bonança de que haviam gosado por alguns annos corria risco de desapparecer, apesar da segurança real. O fanatismo tinha, emfim, alcançado vencer uma vez o animo d'elrei e contava com vingar-se do desbarato que padecera em virtude da sua propria violencia. Sem se esquecer de alimentar os odios populares, ía preparando um desforço menos estrondoso, porém mais seguro. O exemplo do resto da Peninsula, onde a Inquisição, protegida pelo sceptro, multiplicava os carceres e as fogueiras, era argumento fatal a favor da intolerancia. A opinião publica do paiz, que se manifestava apesar dos meios que se punham para a cohibir, subministrava, por certo, outro argumento não menos ponderoso. Accrescentem-se a isto as anecdotas que deviam vogar sobre os actos secretos de judaismo practicados pelos conversos, anecdotas que, facil é de crer, nem sempre seriam calumniosas, e que, repetidas e exaggeradas diariamente aos ouvidos de um principe afeiçoado ás cousas de religião, como era D. Manuel, haviam de vir, forçosamente, a fazer-lhe viva impressão no espirito. Estas e outras causas, menos faceis de attingir, tinham induzido, emfim, elrei a pensar seriamente em estabelecer nos seus estados um tribunal analogo aos que se achavam em vigor nos reinos de Castella e Aragão. Tomada uma resolução definitiva, elrei escreveu ao papa e a D. Miguel da Silva, então embaixador de Portugal em Roma, sobre este negocio. Na carta ao papa limitava-se a rogar-lhe instantemente quizesse annuir ás supplicas que em seu nome havia de fazer D. Miguel sobre cousas que tocavam á pureza da fé: na que era dirigida ao embaixador ordenava-se-lhe que, sollicitando uma bulla para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, fizesse examinar nos archivos da sé apostolica todos os diplomas expedidos para a creação da de Hespanha, de modo que os expedidos agora fossem em tudo semelhantes. As causas que, conforme as instrucções mandadas ao ministro português, se deviam offerecer para fundamentar a supplica eram que, apesar das providencias outrora tomadas para que os christãos-novos hespanhoes perseguidos pela Inquisição não entrassem em Portugal, mal se podera obstar á entrada de grandissimo numero delles; que estes hospedes forçados, abusando da concedida hospitalidade, continuavam a seguir os ritos judaicos, mais ou menos occultamente e em maior ou menor extensão; que entre os proprios conversos portugueses não se podia assegurar fossem sempre respeitadas as doutrinas catholicas; que, não só a consciencia delle impetrante, mas tambem a do pontifice eram interessadas em que a fé se conservasse em toda a sua integridade e pureza. Reforçando estas considerações, o rei promettia escolher para aquelle delicado encargo pessoas de taes letras e virtudes que o papa ficaria tranquillo ácerca da justiça dos seus actos. Exigia-se, emfim, do embaixador que tractasse deste negocio com a maior actividade.[71]

A negrura de semelhante empenho é evidente. Os christãos-novos, de cujo honesto e religioso proceder o proprio rei dera authentico testemunho tres annos antes, tinham agora mudado! Quando assim fosse, o modo dubidativo com que são accusados nas instrucções a D. Miguel da Silva está mostrando que elles respeitavam as exterioridades, e da sua vida privada não se podia inquirir, antes de 1534, sem quebra das mais solemnes promessas. Mas, que importava aos fautores da politica intolerante que o rei practicasse um acto deshonroso para lhes saciar a sede de vingança? Na verdade, depois das concessões feitas aos christãos-novos em 1507 e, sobretudo, da faculdade que se lhes dera de saírem do reino com familias e bens, quaesquer providencias para os obrigar a seguirem a religião dominante estavam longe de serem tão odiosas como o systema de compulsão adoptado a principio. A intolerancia para com elles podia ser, ao mesmo tempo, atraiçoada e impolitica, mas não era tão brutalmente atroz: agora, porém, pedindo-se a Inquisição, por maior que fosse a moderação com que D. Manuel esperava houvessem de proceder os inquisidores, as suas promessas, successivamente confirmadas e ampliadas, não deixavam por isso de ser desmentidas, com escandalosa quebra da fé publica, e tanto mais escandalosa quanto é certo que, não só das instrucções dadas a D. Miguel da Silva, mas tambem das providencias que vamos ver tomarem-se, poucos mezes depois, parece poder-se concluir que os crimes religiosos, se os havia, procediam principalmente dos refugiados de Castella, ácerca dos quaes se haviam executado mal ou nunca se realisaram as precauções ordenadas em 1503 para a sua admissão no paiz. De feito, apenas dous mezes depois de expedida para Roma a supplica sobre a Inquisição, ordenou-se aos diversos magistrados territoriaes procedessem a um inquerito ácerca dos christãos-dovos castelhanos. Deviam averiguar, por testemunhas dignas de credito, quantos e quaes existiam em cada parochia e, depois, exigir delles proprios a declaração da epocha em que tinham entrado; se antes, se depois das restricções estabelecidas em 1503 e, nesta ultima hypothese, se com licença regia ou sem ella. No primeiro caso, cumpria que provassem por testemunhas a epocha da sua vinda; no segundo, que exhibissem o titulo da permissão que lhes fora concedida. Deviam, tambem, os magistrados verificar qual era o estado, profissão e modo de viver de cada um desses foragidos. Finalmente, o resultado dos inqueritos, redigidos summariamente, mas com precisão e clareza, seríam remettidos a elrei, guardando-se ácerca desse resultado o mais completo segredo[72].

Apesar destas diligencias e preparativos secretos, os designios dos adversarios dos christãos-novos para organisarem um systema permanente de perseguição falharam ainda desta vez. Fosse que a gente hebréa soubesse o que se tramava e, pela sua riqueza e influencia, tivesse meios de obstar em Roma ou em Lisboa á realisação daquelles designios; fosse que, ponderados os inconvenientes politicos e economicos que deviam resultar da fatal instituição que se pretendia crear, triumphassem, emfim, no conselho de D. Manuel doutrinas mais moderadas; fosse, finalmente, a hypothese, altamente provavel, de que se tivesse obtido subrepticiamente d'elrei a expedição daquellas ordens para Roma, sem annuencia do conselho, e que, depois, este embaraçasse o proseguimento do negocio, é certo que nenhuns vestigios se encontram de que as instrucções dadas a D. Miguel da Silva tivessem resultado. Os proprios actos do poder civil até a morte do monarcha não revelam que, durante os seis annos decorridos de 1515 a 1521, fosse perturbada a tranquillidade dos conversos. Os proprios odios da plebe pareciam dormitar. Era a calmaria que precede a procella. Os planos da intolerancia íam-se aperfeiçoando nas trevas. Não tardava o dia em que, toldados de novo os horisontes, descesse do céu sobre a raça proscripta o raio que devia fulminá-la.

  1. Orden. Affons., L. 2 passim. Veja-se, em especial, a Memoria sobre os Judeus em Portugal, por Ferreira Gordo, c. 4. (Memorias da Acad., T. 8, P. 2) e as Reflexões Historicas por J. P. Ribeiro, P. 1, n.° 18. -- Lei de Affonso iii de 1274, intitulada Da Communidade dos Judeus, no Livro de Leis e Posturas, no Arch. Nac.
  2. Ferreira Gordo, op. cit. — Ribeiro, l. cit. — Orden. Affons., l. cit.
  3. Ibid.
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. R. de Pina, Chron. de Affonso v, c. 130 nos Ineditos d'Hist. Port., T. i, p. 439.
  7. Miscelaneas. Mss., vol. 31, n.° 74, na Biblioth. da Ajuda.
  8. Cortes de 1475, cap. ii.
  9. Ibid. cap. 22, 23 e 30.
  10. Cortes de 1481 e 1482, capitulos Da dessulução dos judeus — Dos estantes estrangeiros — Dos judeus aljabebes.
  11. Cortes de 1490, c. i
  12. Ibid.
  13. D. Agost. Manuel, Vida de D. João ii, p. 270. — Monteiro, Historia da Inquisição, vol. 2, p. 425.
  14. Pina, Chron. de D. João ii, c. 65. — Num volume de Memorias Historicas (Ms. da Biblioth. da Ajuda) que parecem de João de Barros e de Fernão de Pina, f. 192, attribue-se á maioria do conselho a opinião contraria á d'elrei.
  15. «Com emposição de certos cruzados por cabeça»: Pina, l. cit.; — «que pagassem por cabeça huũ tanto; o tanto era huũ cruzado»: Memor. Mss. da Ajuda, fl. 193, — Mariana eleva a capitação a oito escudos de ouro: Hist. Gener. L. 26, c. i. — Goes (Chron. de D. Manuel, P. i, c. 10) diz que foi de oito cruzados.
  16. Pina, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, l. cit.
  17. Memor. Mss. da Ajuda, l. cit.
  18. Pina, l. cit. — Goes, Chron de D. Manuel, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, l. cit. Estas Memorias subministram muitas das particularidades que vamos narrando e que, naturalmente, não era licito ao chronista Pina inserir numa chronica official, posto que Goes, escrevendo meio seculo mais tarde, revela já uma parte dos escandalos então practicados.
  19. Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  20. Goes, Chron. de D. Man., P. i, c. 10, 19, 23. — Provas da Hist. Genealog., T. 2, p. 392 e seg. — Mariana, Hist. Gener., L. 26, c. 13. -- Memor. Mss. da Ajuda, f. 194 v.
  21. Goes, op. cit., c. 18. — Osorius, de Rebus Emmanuelis, L. i, p. 18. (ediç. de 1571).
  22. Goes, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, f. 196 v. Orden. Manuelina, L. 2, tit. 41.
  23. A bulla de 3 de abril de 1487, mencionada por Llorente (Hist. de l'Inquisit., T. 4, p. 294 et alibi) acha-se, em instrumento, na Gav. 2. M. 1, n.° 32, no Archivo Nac. da Torre do Tombo.
  24. Goes, P. 1, c. 20 Muitas particularidades que vamos narrar constam de uma curiosa sentença de O. Fernando Coutinho, bispo de Silves, já septuagenario, dada em 1531 ácerca de um christão-novo accusado de judaisar e que o bispo mandou soltar como não sendo, na realidade, christão. Nos fundamentos da sentença, o velho prelado refere-se ás violencias que elle proprio vira practicar em tempo de D. Manuel e ás opiniões que, sendo conselheiro do mesmo rei, tinha sustentado com outros collegas seus. Acha-se copiada do instrumento authentico na Symmicta Lusitana, vol. 31, f. 70 e segg. na Bibliotheca da Ajuda.
  25. «Possunt habere characterem sed non rem sacramenti... Omnes litterati, et ego insapientior omnibus monstravi plurimas auctoritates et jura, quod non poterant cogi ad suscipiendam christianitatem quae vult et petit libertatem et non violentiam, et licet ista non fuerit precisa, scilicet cum pugionibus in pectora, satis dum violentia fuit»: Episcop. Silv. Setentia, l. cit.
  26. «Dicendo, quod pro sua devotione noc faciebat, et non curabat de juribus»: Ibid.
  27. Goes, Chron. de D. Man., P. 1, c. 20. — Mem. Mss. da Ajuda, f. 197 e 219 v. e segg.
  28. Goes, l. cit. -- Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  29. «Patrem fllium adducentem, cooperto capite in signum maximaæ tristitiæ et doloris ad pillam baptismatis, protestando, et Deum in testem recipiendo, quod volebant mori in lege Moysé»: Episc. Silv. Sentent., l. cit.
  30. «E porque a tenção delRei era fazer cristãos a todos, como depois se fizeram, tomaram muytos da idade de XX annos»: Memor. Mss. da Ajuda, f. 220.
  31. Ibid
  32. Goes (l. cit.) diz que foram vinte mil os individuos reunidos por esta occasião nos Estáos. Os Estáos eram um palacio que occupava, pouco mais ou menos, o terreno do theatro de D. Maria ii. A affirmativa de alli se ajuntarem e agasalharem 20:000 pessoas é materialmente impossivel. A narração de Goes é absurda, porque, apesar de horrivel, occulta metade da verdade. As Memor. Mss. da Ajuda concordam com Goes em que vieram alli 20:000 pessoas, mas, descubrindo o painel das atrocidades que então se practicaram, painel que a sentença do bispo do Algarve alumia de uma luz sinistra, fazem-nos comprehender como era possivel ir-se recolhendo ahi avultado numero de individuos.
  33. «alli lhe tornarão a tomar nouamente os outros fylhos sem oulhar a idade»: Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  34. «e finalmente dos fylhos uierão aos paes a os fazerem todos cristãos»: Ibid. — «Multos vidi per capillos adductos ad pillam: Episc. Silv. Sentent., l. cit. — «Abraham Usque, Isahak Abarvanel, Rabbi Juhudá Hayat y Rabbi Abraham Zacuto refieren estos hechos como testigos»: De los Rios, Estudios sobre los Judios d'España, pag. 211.
  35. «somente sete ou viii cafres contumasses a que elRei mandou dar embarcaçam para os lugares dalem»: Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  36. Seguimos o original da provisão (G. 15, M. 5, N.° 16 no Arch. Nac.) datada de 30 de maio de 1497. O transumpto que se acha no Corpo Chronologico (P. 1, M. 2, N.° 118) e que foi publicado por J. P. Ribeiro (Dissertações Chronologicas, T. 3, P. 2, p. 91) varia na data e, ainda, na redacção. O que foi apresentado pelos judeus em Roma vertido em latim varia por omisso (Symmicta, T. 31, f. 88). E singular que em ambos elles falte a restricção á amnistia que se lê no original. Aquella restricção está, todavia, em harmonia com a clausula do contracto de casamento de D. Manuel, pelo qual elle se obriga a expulsar todos os judeus refugiados perseguidos pela Inquisição. Esta clausula já devia estar proposta e acceite na conjunctura em que se expediu a provisão de 30 de maio.
  37. Liv. 16 da Remessa de Santarem, f. 84, no Arch. Nac. — Figueiredo, Synops. Chronol., T. 1, p. 148, 149.
  38. «huũ gonçalo de loulé foy culpado em os passar do algarve a larache». Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  39. Ibid.
  40. «quin ordinarii pastores, visitatione ordinaria mediante, infirmos in fide non monuissent et si necesse erat non castigassent»: — diziam os christãos-novos, referindo-se a esta epocha, no Memorial offerecido em Roma no tempo de Paulo iii contra a Inquisição, a qual precede os documentos contidos nos volumes 31 e 32 da Symmicta Lusitana na Bibliotheca da Ajuda. Numas instruções de que adiante nos havemos de servir, e das quaes se acha publicado um fragmento na Historia da Inquisição por Monteiro (P. I, 1. 2, c. 43) allude-se a este procedimento dos bispos nos últimos annos do século XV e primeiros do XVI.
  41. Doc. origin. no Corpo Chronol., P. 2, M. 3, Doc. 75 no Arch. Nac.
  42. «maximé frates, et praecipué ordinis Predicatorum»: Memoriale, Symm. Lusit., vol. 31, f 4.
  43. Memor. Mss. da Ajuda, 202 v.
  44. Llorente, Hist. de l'Inquis., T. 1, c. 10, art. 1.º
  45. Não encontrámos em parte alguma o alvará relativo a este objecto; mas refere-se a elle a circular de 12 de outubro de 1515, cuja minuta se acha na G. 2, M. 1, N.° 30, no Arch. Nac.
  46. Ibid.
  47. Carta de Fernando v a D. Manuel (12 de julho de 1504) acompanhando o transumpto da bulla Pessimum genus de Innocencio viii, G. 2, M. 1, Nº 32 e 33, no Arch. Nac.
  48. Goes, Chron. de D. Man., P 1, c. 102 0 Memor. Mss. da Ajuda, f. 204.
  49. «O qual (milagre) a parecer de todos era fingido»: Memor. Avulsas dos Reinados de D. Manuel e D. João iii (Mss. contemporaneo), vol. 2 de Miscell., f. 120 v. na Bibliotheca da Ajuda. — «Ou a imaginação dos devotos se afigurou que lhe pareceo verem fogo e o lado do crucifixo» Memor. Mss. da Ajuda, f. 219. — Goes (l. cit.) diz confusamente o mesmo.
  50. As Memorias Avulsas do Ms. contemporaneo dizem expressamente que neste dia o mylagre foy mostrado por alguns frades. As narrativas variam quanto ás expressões do incrédulo. Segundo as Memorias Mss. da Ajuda elle perguntou «como havia um páu secco de fazer milagres?» Segundo Goes disse «que lhe parecia uma candeia (véla) posta ao lado da imagem.» Esta versão cremo-la mais verosimil, porque, naturalmente, esse era o facto.
  51. Um destes frades, chamado Frei João Mocho, era português, e o outro, Fr. Bernardo, aragonês. Azenheiro, Chron., p. 333, e Memor. Mss. da Ajuda, f. 219.
  52. «com a qual oniam fòram queimadas no Resyo ccc pesoas»: Memor. Miss. da Ajuda, l. cit.— «E traziam xv e xx cristãos nouos em manada á fogueira.» Ibid.
  53. «E nos próprios cristãos lyndos queryam vyngar injurias se as delles tynham recebidas»: Memor. Avulsas, vol. cit., f. 121— «Alguũs cristãos velhos… conveolhes fazer mostra que não eram circumcidados»: Memor. Mss. da Ajuda, f. 219 v.
  54. «e compridas suas desordenadas vontades as levavam ás fogueiras» : Memor. Avuls., vol. cit., f. 121.
  55. Os judeus, na Allegação a Paulo iii (Symicta, vol. 31, f. 5), elevavam o numero dos mortos a mais de 4:000; mas as memorias do tempo e os historiadores são conformes em o orçarem por 2:000.
  56. Mem. Mss. da Ajuda, l. cit. — Goes, l. cit.
  57. Acenheiro, l. cit. — Goes, l. cit. — As Memor. Mss. da Ajuda dizem que os suppliciados foram 46 ou 47, 32 em Lisboa e 14 ou 15 no Termo.
  58. Goes, P. i, c. 103. — Acenheiro, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, l. cit. — Figueiredo, Synopse Chronol., T. i, p. 162 e 163.
  59. Minuta da resposta dada por elrei a camara de Lisboa: G. 2, M. 2, N.° 61, no Arch. Nac.
  60. Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.
  61. Carta de lei de 1 de março de 1507, impressa juncto á Lei de 25 de maio de 1773.
  62. Provisão de 13 de março de 1507, na Hist. da Inquis. de Monteiro, P. i, L. 2, c. 43, e vertida em latim na Symmicta, vol. 31, f. 88.
  63. «nemo ex eisdem ab miseris eisdem (regnis) cum uxore et familia recessit»: Memoriale etc. (Symmicta, vol. 31, f. 7 v.)
  64. Ibid.
  65. Vejam-se os Doc. do Corpo Cronol., P. i, M. 9, N.os 37, 41, 47.
  66. Symmicta, l. cit.
  67. Doc. da G- 2, M. 1, N.° 30, no Arch. Nac.
  68. Privileg. de 21 de abril de 1512 incluido em confirmação de 18 de julho de 1522 na Chancellaria de D. João iii, L. i, f. 44 v.
  69. Corpo Chronol., P. 1, M. 11, N.° 91, no Arch. Nac.
  70. Acerca deste § veja-se a carta original do governador da Casa do Civel a elrei, datada de 7 de dezembro de 1515, no Corpo Chronol., P. 1, M. 19, N.° 50, no Arch. Nac.
  71. Minutas das cartas ao papa e a D. Miguel da Silva que se dizem remettidas a 22 de agosto de 1515, na G. 2, M. 1, Nº 23, no Arch. Nac.
  72. Doc. da G. 2, M. 1, N.° 30, no Arch. Nac.