HISTORIAS DE REIS E PRINCIPES



 «... le roman est l'histoire des hommes
et l'histoire le roman des rois.»

 DaudetSouvenirs d'un homme
 de lettres.


I

Um rei e um conspirador


Fernão da Silveira, filho primogenito do barão de Alvito, foi escrivão da puridade de D. João II, e figura como poeta no Cancioneiro de Garcia de Rezende.

Estas circumstancias dão-lhe fóros de homem notavel no seu tempo. Mas a todas sobreleva, perante a historia, a de ter sido um dos conspiradores que mais incommodaram D. João II.

Parece que o rei não tinha sobejos motivos para confiar no seu escrivão.

Certo dia mandára chamar, por um moço da camara, Fernão da Silveira. D. João II não se queria referir ao secretario particular, mas a outro Fernão da Silveira, o coudel-mór, tambem poeta como o seu homonymo.

Comparecendo o escrivão da puridade em vez do coudel-mór, D. João II agastou-se e perguntou ao moço da camara:

—A quem te mandei chamar?

—A Fernão da Silveira.

—Não era este, replicou o rei, mas o Bom.

O escrivão da puridade julgou-se desconsiderado com estas palavras do rei e, sahindo do Paço, como encontrasse no Rocio D. Martinho de Castello Branco, desabafou com elle. D. Martinho procurou aquietal-o com bom conselho, porém Fernão da Silveira insistiu em mostrar-se agastado contra o rei, de quem jurou vingar-se.

—Mas o que podereis vós fazer? perguntou D. Martinho.

—Matal-o, respondeu o escrivão da puridade.

E correu d'alli a bandear-se com os conspiradores: o duque de Vizeu, o bispo d'Evora D. Garcia, o irmão do bispo, D. Fernando de Menezes, D. Guterres Coutinho, D. Alvaro Coutinho e seu filho, o conde de Penamacôr e seu irmão D. Pedro d'Albuquerque.

D. João II soube das conferencias mysteriosas dos conspiradores, celebradas em Santarem, fóra de portas.

Por mais de uma delação o soubera.

Tinha o bispo d'Evora certa manceba, de nome Margarida Tinoco, a cujo irmão, Diogo Tinoco, ella revelára o segredo da conspiração. Foi este homem que, disfarçado em frade, procurou o rei no convento de S. Francisco em Setubal, e lhe denunciou os conspiradores, recebendo em troca uma larga mercê, que a morte, devida talvez a peçonha mandada propinar pelos denunciados, lhe não deixou gozar.

D. João II recebeu outra denúncia por D. Vasco Coutinho, a quem seu irmão D. Guterres pozera ao facto da conspiração. D. Vasco arrecadou em premio o condado de Borba, importando-se pouco com perder o irmão, que veio a acabar preso na torre de Aviz.

Quando Fernão da Silveira teve conhecimento d'esta delação, e da explosão da colera do rei para com o duque de Vizeu, exclamou:

—Soube D. Vasco aguçar os pescoços!

Foi, como se sabe, em Setubal que D. João II quiz por suas proprias mãos fazer justiça no duque de Vizeu. E comquanto emprehendesse esmagar a conspiração na pessoa dos chefes, não se esqueceu o rei de outros conspiradores menos qualificados. Enviou officiaes a casa de Fernão da Silveira para que o prendessem. D. João II sentia-se profundamente indignado contra o seu escrivão da puridade, que desde pequeno creára no Paço, pelo que lhe ficára o appellido de Moço, honrando-o e agasalhando-o na côrte, onde o casára com D. Brites de Sousa, filha de João de Mello, alcaide-mór de Serpa.

Os officiaes foram, e não acharam Fernão da Silveira. Encontraram apenas uma barjoleta com muitos cruzados, que lhe havia confiado o duque de Vizeu para occorrer ás despezas da conspiração.

O escrivão da puridade, não tendo já tempo para fugir de Setubal, fôra esconder-se em casa de um velho escudeiro de seu pai, de nome João Pegas, que não duvidou recebel-o, a despeito do perigo que por esse facto podia correr.

Pegas metteu o filho de seu amo dentro de uma grande arca sem fundo. Fingindo que guardava pão na arca, alimentava todos os dias o conspirador.

Uma escrava preta, que havia em casa, cuidou ouvir gemidos, que sahiam da arca. Disse-o a João Pegas que, receiando se descobrisse o segredo, ordenou á preta que se calasse até que elle no dia seguinte verificasse se era verdadeiro ou não o caso dos gemidos.

Ao outro dia, a escrava tornou a ouvir gemer. Foi dizel-o a João Pegas, que se levantou do leito immediatamente, e a mandou buscar um balde de agua ao poço.

Quando a escrava estava tirando a agua, Pegas precipitou-a no poço, esperando cautelosamente que ella acabasse de escabujar na afflicção extrema dos afogados.

Logo que reconheceu que estava morta, gritou publicando que a escrava se afogára.

Mas o segredo do escondrijo de Fernão da Silveira ficou no fundo do poço, que era o que João Pegas queria conseguir.

Decorreu tempo, e o escudeiro tratou de fazer sahir de Portugal o seu hospede. Valeu-se para isso de um mercador, que se chamava Bartolo, e que levou comsigo para Sevilha Fernão da Silveira, disfarçado em mendigo.

Salvo em Castella, o foragido foi bem acceito na côrte de Izabel a Catholica, e lá lhe acudia com auxilios pecuniarios o conde de Benavente, fidalgo castelhano, que fôra grande amigo do pai de Fernão. Mandava-lhe todos os mezes um saco com duzentos escudos, mas Fernão da Silveira só tirava cinco, e devolvia o resto. O castelhano todos os mezes insistia em igual remessa, e o portuguez não deixava de insistir na recusa da quantia excedente a cinco escudos.

Comprehendeu o castelhano que era aquelle um homem retemperado de invencivel altivez lusitana, e, para acabar de experimental-o, certo dia em que se juntaram com outros fidalgos na ante-camara dos reis catholicos, deixou o conde cahir uma luva. Fernão da Silveira, em vez de se dar pressa em levantal-a, sentou-se n'um bufete. O conde de Benavente não desgostou d'esta arrogancia tão conforme ao espirito hespanhol, e celebrou-a. A noticia do facto espalhou-se com applauso na côrte de Castella, e chegou á de Portugal, onde D. João II, comquanto sempre resentido dos aggravos recebidos de Fernão da Silveira, e sempre implacavel nos seus projectos de vingança, commentou a noticia com esta phrase sentenciosa:

—Fernão da Silveira aonde chegar ha de sempre ter lugar.

D. João II mandára citar por carta de éditos Fernão da Silveira, emquanto estivera escondido em casa de João Pegas, para que se apresentasse perante o rei e o seu conselho, no termo de quarenta dias, a fim de se livrar «da dita traição e maldade que contra nós e nosso real estado, e contra o bem, paz, e assesseguo de nossos reinos cometera, e para sobre todo ser ouvido com o dito procurador fiscal da nossa justiça.»

Passou-se o praso de quarenta dias, e Fernão da Silveira não appareceu. N'essa não cahia elle, que bem sabia a sorte que o esperava se apparecesse.

Chegou o dia da audiencia, e o porteiro do tribunal, João Trancoso, apregoou o réo. Como se não apresentasse, nem outrem por elle, o procurador da justiça offereceu o libello articulado sobre os seguintes factos criminosos:

«Que nós criáramos o dito reo de moço pequeno, e que sempre lhe fizeramos muita honra, gasalhado, e mercê, casando-o, e dando-lhe muita renda com vontade, e tenção de o muito honrar, e acrecentar, e fiando nós d'elle nossos segredos, e conselhos, encarregando-o muitas vezes de nosso escrivão da Puridade, fiando nós nossa vida d'elle reo, e sempre o dito reo obrigado a nos guardar lealdade não sómente como nosso criado, mas ainda como vassalo, e nosso subdito, elle o fizera muito pelo contrario, antes como desleal desobediente Portuguez, fizera, tractára, ordenára e aconselhára contra nós, e nosso Real Estado, bem, paz e assesseguo, e prol comunal d'estes nossos reinos e senhorios, as coisas que se adiante seguem. A saber, que elle dito reo com o Bispo d'Evora, e com D. Diogo, que foi Duque de Vizeu, tractou, conjurou, e ordenou muitas desleadades contra nós, e contra o Principe meu sobre todos muito Amado, e Prezado Filho, tractando, e ordenando muitas vezes, assim na Cidade de Evora como nas Villas de Santarem e Setubal, e outros lugares de nos matarem, e ao dito Principe meu Filho, e de se alevantarem com as Villas, e Fortalezas que o dito Duque tinha, e outras quaesquer, que podessem haver, tractando de metter gente de fóra d'estes reinos para poderem pôr em obra o seu mau e desleal proposito, e para contra quem quer que lh'o embargar quizesse, sendo o dito reo o que principalmente tractava contra nós, induzindo para isso o dito Duque, como do feito induziu, e outros seus amigos, de que se elle reo fiava, e o principal conspirador e ajuntador, dos que no dito tracto e conspiração eram contra nós, e sendo o recebedor, e o que dispendia os dinheiros que para as ditas traições, e maldades eram juntos, e o pagador d'elles, a quem era ordenado, como dos ditos dinheiros pagára quinhentos cruzados a Pero de Albuquerque, para abastimento da Fortaleza do Sabugal, e assim a D. Alvaro d'Athayde, certa somma de dinheiro que vier em verdade. E que logo como o dito Duque D. Diogo foi morto, e o Bispo, e alguns dos outros conjurados presos, pelas ditas maldades e traições serem reveladas a nós, elle dito reo, temendo-se do que feito tinha, logo sem mais detença se partiu, e foi d'estes reinos, e amarou sem mais nunca n'elles apparecer, nem ser visto de seus parentes e amigos, e dos que com elle tinham conversação.»[1]

Ouvido o libello pelo rei e seu conselho, foram julgados procedentes os artigos de accusação, ordenando D. João II que se o réo tivesse artigos contrarios, viesse com elles. Como não veio, correu o processo á revelia, sendo admittida a prova do procurador da justiça, o qual offereceu a inquirição devassa que por este motivo havia sido tirada.

Fernão da Silveira teve conhecimento dos éditos de citação; mas só quando se viu salvo em Castella ousou denunciar o seu paradouro, não escrevendo uma justificação judicial, mas dirigindo particularmente ao rei uma carta audaciosa, de que vamos extrahir alguns periodos:

«... eu dias ha que estou n'esta Côrte de El-Rei e da Rainha de Castella, meus Senhores, e bem se sabe em Portugal: poderia tambem responder a elles (éditos) por direito, outras razões poderia dar n'este caso, mas não quero alongar a escriptura e ainda d'estes me quero lançar fóra; sómente digo que os éditos contra mim postos são mandados pôr por vós ante quem o direito nem justiça não vale nada, nem ousa ninguem de os julgar que claramente sobre os éditos que contra Ruy Lopes Coutinho mandaveis pôr, dizem de vós os letrados que não era de direito de se pôrem na forma que querieis, dissestes que quem aquillo dissesse o mandarieis esfolar e cobrir a cadeira de sua pelle e isto ao Doutor Nuno Gonçalves, que quizestes lançar a perder por uma sentença que deu segundo lhe parecia direito no feito de Cezimbra; d'estas taes pudera dizer muitas, mas, sobre cousa tão clara como a vossa injustiça, não cumpre muitas provas, bem se sabe que nenhum homem em vosso reino não ha de julgar, senão o que vós quizerdes, e bem se sabe que é o que vós quereis; e deixando todas estas cousas, sómente digo que apéllo de vós para Rei direito e justiçoso, e que o mereça e deve ser, e ainda que para isto ahi não houvesse prova senão as obras que fazeis abastariam afóra outras cousas que tenho caladas para quando cumprir, assim que vossos éditos para mim não são de nenhum valor, nem força, e protesto que cousa que n'elles digaes, nem sentença que por elles contra mim se der, não me possa damnar nem empécer em nenhum tempo que seja.

Ora, Senhor, vos quero dar conta de mim e da causa que em minha sahida d'esse Reino e o porque sei que tanto desejastes, e trabalhastes de me ver á mão, o que principalmente foi, porque eu não contasse a verdade d'este feito, e de como mal e como não devieis matastes o Duque de Vizeu que Deus haja, e eu ouvindo a crueldade de sua morte e lembrando-me o mal que muito tempo me querieis e mui sem causa, e quanto agora me quereis pelo bem que o Duque me queria, pareceu-me que não devia estar á misericordia de quem não tem nenhuma nem esperar vossas injustiças e crueldade, as quaes em mim sei que muito desejaveis executar que pela grande que com o Duque que Deus haja tinha cuidaveis que saberia a causa da sua morte, a qual não foi outra senão o grande mal que sempre lhe quizestes e os grandes aggravos e deshonras que lhe fazieis, as quaes seriam cousa larga de contar, se houvesse de contar das escripturas e doações que lhe furtastes do cofre que a Senhora Infanta sua mãe deixou em guarda da Rainha vossa mulher, e de como nunca lhe confirmastes cousa que tivesse, antes lhe quebrastes cada dia suas cartas e privilegios e mandaveis a letrados a revolver livros para lhe tirar a vintena da Guiné, afóra na paga d'ella terdes tal forma que a mór parte lhe levaveis, e quebrastes-lhe o trato da canella e fizestes que em Côrtes que vos requeressem que lhe tivesseis as saboarias e o montado, e tirastes-lhe o desembargador que trazia na casa e tirastes-lhe a jurisdicção dos rendimentos das suas rendas, e dissestes que se vos não tornasse a Ilha da Madeira por terras do Duque que lh'a deitarieis a perder, e deixando estas cousas e outras muitas que contra elle tendes feito e commettidas tocantes á sua fazenda, nas quaes ia a maior parte do seu estado e em muitas todo lhe fazieis e ordenaveis outras em que lhe ia honra e vida, são tratal-o mui descortez e soberbamente e fallares n'elle mui feiamente chamando-lhe rapaz e necio, e que não era para nada, e trazerdel-o em vossa Côrte a seu pesar, que por preso o haviam todos, não querieis consentir que casasse com uma filha d'El-Rei meu Senhor, e mui honradamente casára, nem quizestes que casasse Irman com elle desejando-o ella, e tendo vós promettido á Infante sua Mãe que farieis n'isso o que pudesseis, fizestes o contrario, por onde visto está, que querieis que elle não casasse com ninguem por não haver filhos que herdassem o seu, e d'isto ha outra mui mais certa prova que estas, que é certo que lhe mandaveis dar cousa para não haver geração, e foi-lhe descoberto, depois lhe foi dito como mandaveis alguns que o matassem de noite indo elle fóra só, fingindo que o não conheciam, e foi avisado, e guardou-se, e depois foi avisado agora em Santarem, que com um cosinheiro trataveis para lhe dar peçonha, assim que claro está que dias ha que tinheis determinado de fazer o que fizestes e mais o matastes porque vos elle devia matar que por querer matar, que se elle tal quizera, não andára tão mal apparelhado para tal negocio nem viera só ver-vos e deixára-vos os mais dos seus em Palmella, nem os que com elle culpaes não estiveramos tão mal apercebidos, que eu n'esse mesmo mez não mandára com meus Irmãos os meus escudeiros e encavalgados, nem lhe déra os meus cavallos e armas de minha pessoa e áquella hora estava em casa de meu Pai que Deus haja, sem saber que o Duque era ido nem D. Alvaro de Athayde vos houvera de matar em Santarem nem D. Pedro de Athayde inda no ventre, eu muitas cousas pudera dizer em prova d'isto, mas abasta o que todo o mundo sabe, que matastes o Duque mal, e como não devieis e por mau respeito, e isto pudera bem provar por direito e leis e ordenações, mas porque seria longura será melhor que vamos pôr a batalha: eu estou aqui e affirmo uma duas ou tres vezes, que matastes o Duque mal e como não devieis, e aleivosamente, e o defenderei a quem por vossa parte me desafiar, e isto darei empreza para vós mandares tomar a D. Vasco não já que elle tomou, e d'esta guiza me devieis vós mandar matar que não á traição, como me dizem que mandais e se por vossa pessoa isto houvera de ser feito, bem sei que vos não porieis n'este risco, assim porque sabieis a verdade como por ali, e se isto se ordenar para que venha a fim, por aqui se saberá a verdade, porque eu espero que será n'isto tão inteiro juizo como em tudo, e se vos disto escuzardes n'elle espero que mostrará tal juizo de vós o qual merecem essas obras, e que vingará no sangue dos mortos, por mãos dos vivos, etc...»[2]

No final da carta, que é um documento importantissimo para a historia da época, allude Fernão da Silveira á phrase dita por D. João II ao moço da camara, phrase que determinou o seu procedimento contra o rei:

«... mas como natural e amigo d'esses reinos e por bem d'elles vos desservirei em tudo o que puder, porque todo o desserviço e nojo que fizer a vós vem a essa terra e gente d'ella assim grandes como pequenos, os quaes praza a Nosso Senhor livrar da sujeição e captiveiro em que vivem, e de mim digo que serei sempre tal inimigo como devem de ser todos os bons...»

O processo subiu concluso perante o rei em Relação com os do seu Conselho e Desembargo, sendo proferida sentença condemnatoria a dez de junho de 1485, dada na villa de Portel:

«... condemnamos, e mandamos onde quer que fôr achado, e tomado, e comprehendido dentro em estes Reinos, e seus Senhorios, e em qualquer Cidade, Villa, ou Lugar d'elles, logo morra cruel morte natural, e seja esquartejado, e seus quartos de seu corpo sejam postos nas portas da Cidade, Villa, ou Lugar onde fôr preso, e a sua cabeça seja posta no Pelourinho: e isto sem elle mais ser ouvido, nem requerido, visto como este maleficio é claro, e notorio, e que elle principalmente e primeiro o commetteu, tratou, conspirou a dita maldade, e traição: e havemos todos seus bens moveis, e de raiz, e assim os da Corôa do Reino, se os trazia, e os patrimoniaes, e declaramos por confiscados e applicados á Corôa Real d'estes nossos reinos, a que direitamente pertencem.»

Dois annos depois, ainda Fernão da Silveira estava em Castella, protegido pelos reis catholicos, que se recusavam a entregal-o a D. João II.

Em 1487, n'um conselho realisado em Santarem, ventilou-se a questão de assentar no destino a dar ás mulheres dos conspiradores, sobre as quaes recahiam suspeitas de estarem em intelligencia com os maridos.

Os drs. Fernão Rodrigues e Nuno Gonçalves foram de parecer que deviam ser enviadas com os filhos aos maridos, não só para não peccarem com outros, mas tambem porque não deviam pagar pelas culpas d'elles. E ainda porque os filhos dos conspiradores constituiriam um foco permanente de conspiração pelo desejo que teriam de vingar os pais.

Ao dr. João Teixeira, chanceller-mór, pareceu melhor não renovar a lembrança de factos que o tempo ia esquecendo. Que, mais aquietadas as paixões politicas, bem podiam os filhos dos conspiradores ser leaes servidores d'el-rei.

Por isso entendia que se deixassem sahir com seus filhos e haveres as que quizessem ir reunir-se aos maridos; mas que não fossem obrigadas a fazel-o todas, indistinctamente.

Os restantes membros do conselho concordaram com este alvitre. O rei tambem concordou.

Então Ruy de Sousa disse saber que a mulher de Fernão da Silveira folgaria de ir para o marido.

Ora um documento da época, que suppomos inedito, diz qual foi a resposta de D. Brites de Sousa:

«Esta parte tomou el-rei de as não mandar constrangidamente, e mandou a esta de Fernão da Silveira saber se se queria ir, e ella escolheu a parte de estar no reino por então.»[3]

Uma tal resposta surprehendeu decerto o leitor, por não ser conforme com a declaração que no conselho d'el-rei fizera Ruy de Sousa.

Tem comtudo uma explicação, e o leitor vai sabel-a.

D. Brites de Sousa tinha realmente manifestado desejo de ir viver com seu marido em Castella.

Pesava-lhe a vida que levava longe d'elle, com um filho pequeno nos braços. Chamava-se João o filho legitimo de Fernão da Silveira. O conspirador tinha outro filho, illegitimo, que houvera de uma manceba de nome Izabel Rodrigues, e que havia nascido em 1480.

D. Brites chegára a fallar aos do conselho d'el-rei para que lhe obtivessem a concessão de passar a Castella. Mas obtida a concessão, soubera que Fernão da Silveira tinha mandado ir a manceba e o filho.

O seu coração amantissimo não foi superior a este golpe. Resolveu não ir para castigar a infidelidade do marido, que no homisio preferira as consolações da familia illegal ás da familia legitima.

Eis-aqui a rasão que determinou a recusa de D. Brites.

O certo era que Fernão da Silveira vivia em Castella sem disfarces de mancebia. A sua existencia, cortada de continuos sobresaltos e receios, que o faziam esperar a toda a hora o punhal assalariado por D. João II, achava lenitivo nas expressões affectuosas da manceba, que na desgraça se tornára mais dedicada.

Sabia o foragido que o rei de Portugal procurava constantemente actuar no animo de Fernando e Izabel para leval-os a entregarem-lhe o conspirador. Receiava que os reis catholicos viessem a ceder, e n'esse caso contava com uma infallivel morte ignominiosa, com uma vingança terrivel que nem os seus restos mortaes respeitaria. A pelle do seu corpo serviria para cobrir a cadeira de D. João II.

Em Castella, nas horas em que não frequentava a côrte, onde assiduamente concorria para sondar a seu respeito o animo de Fernando e Izabel, fraquejára por vezes aquelle homem forte, cuja altivez assombrára o conde de Benavente, e merecêra elogio ao proprio D. João II.

Perante a rigidez indomavel do rei de Portugal, antolhava-se-lhe desolador o futuro. Se lograsse escapar aos sicarios armados pela colera de D. João II, o que era muito pouco provavel, teria que viver e morrer longe da patria com o labéo de conspirador, sempre vexado pela necessidade de receber agasalho e protecção.

As sombras da noite punham-lhe no espirito o constante receio de emboscadas; atravessava as ruas com o sobresalto com que póde atravessar-se um sertão povoado de féras. Não se permittia a fraqueza do medo, não evitava as horas sinistras da noite, por mais que Izabel Rodrigues lh'o pedisse; mas tinha sempre presente o espectro da morte por traição.

Quando recolhia a casa, esquecia nos braços carinhosos da manceba, que lhe apresentava o filho, os sobresaltos d'aquelle dia, e repousava como o naufrago n'um porto de abrigo.

Ás vezes tinha furias de raiva contra D. João II, o assassino do duque de Vizeu, o flagello da nobreza portugueza, como elle lhe chamava. Retratava-o moralmente como um tyranno sedento de sangue e poder. Justificava a reacção da nobreza, e a sua, declamava como um verdadeiro jacobino do seculo xv, como um sans-culotte que se tinha antecipado trezentos annos aos da demagogia franceza.

A manceba ouvia-o tremendo com o filho sentado nos joelhos, e procurava aquietal-o com palavras brandas.

Mas Fernão da Silveira perguntava-lhe se poderia ter animo tranquillo e sereno um homem a quem D. João II, se o apanhasse, faria esquartejar, pregando-lhe os quartos nas portas de qualquer cidade ou villa, e a cabeça no pelourinho da praça publica.

Lembrava-lhe que o odio de D. João II costumava ser tão profundo e sanguinario, que não respeitava nem as regalias de nascimento nem os laços de parentesco.

Perguntava-lhe se não sabia que o duque de Bragança fôra decepado no cadafalso da praça de Evora; que em Abrantes cevára D. João II a sua vingança na estatua do marquez de Montemór já que, por se ter refugiado em Castella, não podéra ceval-a no seu corpo; que o duque de Vizeu, cunhado do rei, fôra por elle proprio assassinado em Setubal. Agradecia á Providencia o ter-se encarnado na pessoa de João de Pegas para o salvar; senão, haver-lhe-ia acontecido o que acontecêra a D. Pedro de Athayde, que fugindo de Setubal para Santarem fôra preso no caminho, publicamente degolado e feito em quartos.

Os fidalgos castelhanos continuamente estavam avisando Fernão da Silveira das repetidas instancias que D. João II fazia junto dos reis catholicos para que lh'o entregassem. O conspirador teimava em não querer parecer fraco, deixava-se ficar, sempre intimamente sobresaltado e desconfiado.

Mas em 1488, como D. João II enviasse a Castella uma embaixada a pedir para o herdeiro da corôa a mão da filha primogenita dos reis catholicos, Fernão da Silveira, receiando que pelo facto do casamento se estreitassem, como era natural, as relações de amizade entre as duas côrtes, resolveu-se a fugir para França acompanhado pela manceba e pelo filho.

Não devia, porém, considerar-se muito seguro em França um conspirador representante da nobreza insurgida contra o poder absoluto dos reis.

Luiz XI, que tinha morrido poucos annos antes, em 1483, havia sido um inimigo implacavel dos poderosos senhores do seu reino, que formaram contra elle a celebre liga do Bem publico. Sabe o leitor que Luiz XI se fizera rodear de gente de baixa estofa, que continuamente atiçava a colera do rei contra a nobreza. Vivêra mano a mano com o seu barbeiro Olivier Le Daim, e tratava por compadre o preboste Tristan, executor dos seus planos sanguinarios.

Estava ainda muito viva a lembrança das crudelissimas represalias de Luiz XI,—da vingança que tirára do seu ministro Jean Balue, que de simples presbytero chegára a ser cardeal de Santa Suzana e que, suspeito de ter atraiçoado o rei com o duque de Borgonha, fôra, no castello de Plessis, encerrado n'uma gaiola de ferro, onde não podia conservar-se deitado nem de pé; do supplicio horrivel de Jacques d'Armagnac, duque de Nemours, e de seus filhos, na fortaleza de Loches; finalmente do drama tragico-burlesco dos ultimos tempos da sua vida n'aquelle mesmo castello de Plessis, onde Jean Balue padecêra, e onde Luiz XI, assaltado pelos terrores da morte, fazia vigiar as avenidas pelo barbeiro Olivier e pelo compadre Tristan, que se encarregavam de enforcar nas arvores do parque todo o individuo que podesse inspirar-lhes desconfiança.

Luiz XI havia pois morrido em Plessis, onde passára os ultimos dias passeiando ao longo d'uma vasta galeria, torturado pelo medo da justiça eterna, sem que podessem tranquilizal-o o espectaculo dos combates de gatos e ratos, as danças dos camponezes, as orações e as penitencias a que se entregava, e sem que podesse avigoral-o o uso de beber o sangue das creanças no intuito de fortalecer-se e remoçar.

Nem este tonico vivificante, nem o soccorro do eremita da Calabria, que mandára buscar para consultal-o, e ao qual pedia a vida chorando, haviam podido salvar da morte Luiz XI.

O herdeiro do throno, Carlos VIII, tinha treze annos quando foi proclamado rei, e sua irmã, Anna de Beaujeu, investida na regencia, procurava conservar intacto o poder real, dominando a nobreza.

Depois da batalha de Saint-Aubin, ferida em 1488, em que o duque de Orléans cahira prisioneiro nas mãos da regente, que o conservou dois annos encarcerado, diz-se que, principalmente, para vingar-se dos seus desdens amorosos, Fernão da Silveira entendeu como mais prudente abandonar uma côrte, onde a nobreza continuava a ser esmagada pelo poder real, e foi estabelecer o seu faux ménage em Avinhão, a cidade sagrada, que um legado do papa governava.

Em Avinhão, Fernão da Silveira tinha horas de cerrada melancolia, quando ermava contemplativo junto ao tumulo da Laura de Petrarcha, e aproximava o seu destino do destino do poeta italiano, ambos infelizes, posto que por differente motivo.

Petrarcha apaixonára-se aos vinte annos pela bella Laura, que nunca foi sua, pois que desposára Hugues de Sade, a quem, victima da peste de 1348, deixára viuvo com a descendencia bem pouco lyrica de onze filhos.

Fernão da Silveira, menos infeliz pelo que respeitava ao feminino, tinha comsigo, em mancebia adulterina, a sua Laura, a qual procurava suavisar-lhe as horas amargas da vida, que eram todas ou quasi todas.

Mas como poeta e exilado, comprehendia a solidão dolorosa de Petrarcha em Valchiusa, á beira de cuja fonte o portuguez ia muitas vezes sentar-se juntando idealmente as suas angustias ás do poeta que, tendo alli cantado um seculo antes, vivêra solitario como elle e como elle perseguido pela fatalidade do destino.

Entrado o anno de 1489, o espirito de Fernão da Silveira principiou a ser assaltado por sombrios presentimentos, que elle baldadamente procurava reprimir.

Tinha frequentes accessos de colera, que o sorriso de seu filho, creança de pouco mais de oito annos, não lograva serenar.

Imprecava violentamente D. João II, que continuava a denominar o tyranno de Portugal.

Dizia muitas vezes a Izabel Rodrigues que a justiça do céo havia de cahir tarde ou cedo sobre o tyranno, e feril-o na mais sensivel fibra do coração, se aquelle coração tinha alguma coisa de humano. Parecia que Fernão da Silveira adivinhava n'esse momento a catastrophe que, tempo depois, havia de victimar em Santarem o joven principe D. Affonso, herdeiro da corôa.

Recommendava-lhe que, no caso d'elle morrer assassinado por ordem de D. João II, como presentia, educasse seu filho no odio ao tyranno e no amor da liberdade.

Mostrava alimentar a esperança de que a sua morte e a dos outros conspiradores seria vingada pelo veneno ou pelo punhal na pessoa do rei.

Ainda n'isto se não enganou Fernão da Silveira, porque os intestinos de D. João II parece terem cedido lentamente á acção toxica das drogas preparadas por mestre João de Masagão de accôrdo com o duque de Beja.

O inverno de 1489 havia sido cruel em toda a Europa. Estava-se em dezembro, os dias eram plumbeos, as noites tempestuosas.

Fernão da Silveira dizia muitas vezes a Izabel Rodrigues:

—A cada silvo do vendaval sinto-me estremecer interiormente, como um predio que vai desabar... É o presagio da morte, Izabel. Morro longe da patria, longe da familia que eu constitui em tempos de felicidade. Morro ao pé de um filho, e tenho saudades de outro. O coração é assim feito. Foi o tyranno que me casou, porque na côrte dos reis poderosos nem o coração é livre. Nunca tive nem podia ter por minha mulher a febre de amor com que tu me incendiaste os sentidos. É a ti que eu amo, boa alma, que tanto te tens doído das minhas dôres. Vivo comtigo com o mesmo direito com que o tyranno abandonava a rainha para se ir emboscar em Cernache do Bom Jardim com D. Anna de Mendonça, a mãe do bastardo. Se alguem n'este ponto podesse tomar-me contas, não era por certo o tyranno, tão fragil com mulheres. Mas da esposa que não amei nunca, tenho um filho que sempre tenho amado, e peza-me que elle haja de arrastar na sociedade a infamia com que o tyranno enlameou protervamente o meu nome. Outro filho tenho... é o teu, é o nosso, Izabel, e d'esse me peza duplamente, porque só póde ser meu filho para compartir da deshonra do pai com o irmão.

Izabel Rodrigues acudia com palavras carinhosas a desviar-lhe o espirito para menos lastimosos pensamentos, mas o conspirador quedava-se triste, calado, dando a perceber que continuava mentalmente os raciocinios que a manceba meigamente pretendêra interromper.

No dia 8 de dezembro, Fernão da Silveira lembrára-se saudosamente de Portugal, recordando com grande nitidez de memoria muitos episodios da sua vida da côrte. Izabel Rodrigues tentou distrahil-o; e como no céo, anteriormente caliginoso, se fossem rasgando clareiras azues, lembrou-lhe que sahisse a passeio.

Dos labios do conspirador escaparam em resposta estas palavras presagas:

—Sahir! Procurar a morte!

Mas como se de subito se envergonhasse da sua fraqueza, disse a Izabel Rodrigues que sahiria.

Lembrou ella que levasse comsigo o filho, que bem podia attrahir-lhe a attenção para as suas graças infantis.

Fernão da Silveira sahiu, e levou o filho.

Foram, caminho fóra, conversando os dois.

Obedecendo á teimosia dos seus pensamentos, Fernão da Silveira ia fallando de Portugal ao filho, gravando na sua memoria, a traços de fogo, o retrato odiento do tyranno.

Á volta de uma rua, encontraram-se a pequena distancia com um fidalgo catalão, cujo nome e situação Fernão da Silveira muito bem conhecia. Era, como elle, um conspirador, que andava foragido de Castella: o conde de Palhaes.

O catalão, em vez de se dispôr a saudar Fernão da Silveira, levou a mão direita ao peito, insinuando-a no gibão. E, ao passar junto de Fernão da Silveira, cravou-lhe rapidamente um punhal no coração.

Não teve o portuguez tempo para resistir; cahiu desamparado na rua.

Mas o pequeno Alvaro, vendo o pai morto, desatou em gritos dilacerantes, que despertaram as attenções, e chamaram gente.

O conde de Palhaes foi logo preso, conduzido ao carcere em nome do rei de França, que não era já Luiz XI, como sabemos, porque Luiz XI havia morrido seis annos antes.

A opinião publica alvorotára-se com este acontecimento, pela significação que realmente tinha. O braço do conde de Palhaes fôra manifestamente armado por D. João II, que ao catalão fizera mercê de muita somma de ouro, em que se primeiro concertou, como escreve Garcia de Rezende. Não podéra o rei de Portugal ser feliz nas negociações que para haver á mão Fernão da Silveira entabolára com os reis catholicos e com o rei de França. Ter-lhe-ia sido por certo bem mais agradavel que essas negociações houvessem surtido effeito, porque lhe permittiriam vingar-se do escrivão da puridade pelo seu proprio braço, como fizera ao duque de Vizeu, ou pelo braço do algoz, como fizera ao duque de Bragança. Mas, posto falhassem os meios a que primeiro recorrêra, não desistíra da vingança. Empregou outros, o da corrupção pelo ouro, sob promessa talvez de que, além do ouro, a sua protecção salvaria o sicario.

N'este ponto enganou-se D. João II.

Morto Fernão da Silveira pelo conde de Palhaes, o rei de Portugal quiz effectivamente valer-lhe, como decerto havia promettido. Mas o mais que pôde conseguir foi que a regente, em nome do rei de França, lhe commutasse a pena de morte em prisão perpetua.

É natural que o catalão désse ao diabo a empreza, vistos os resultados. O ouro que recebêra não podéra ganhar-lhe a liberdade; e D. João II apenas lográra salvar-lhe a vida.

Alvaro Rodrigues, o bastardo de Fernão da Silveira, fôra conduzido a casa por pessoas compassivas que o acompanharam. Levava o fato salpicado de sangue do pai, e impressos para todo o sempre na memoria os pormenores do seu tragico assassinato.

A mãe abraçou-se chorando ao filho, e rompeu em apostrophes violentas contra o tyranno que assalariára o sicario para que elle, á luz do dia, perpetrasse um homicidio dentro da cidade dos papas.

Na memoria infantil do pequeno Alvaro condensaram-se , em torno da recordação do cadaver do pai, todos estes lugubres accessorios, que as lagrimas e os clamores da mãe a cada momento renovavam.

Quando a noticia chegou a Portugal, outra mãe, D. Brites de Sousa, esquecendo na sua dôr as infidelidades do marido, recordou a João da Silveira, seu filho, a historia lacrimosa do pai. Era então menino de poucos annos João da Silveira, mas a recordação do pai, sempre avivada pela narrativa da viuva, fez-lhe grave e triste o caracter. Demais a mais, João da Silveira herdára o talento poetico do pai. Foi, mais tarde, um dos glosadores dos serões da côrte, e um dos poetas do Cancioneiro de Garcia de Rezende.

Educou-o a expensas suas D. Diogo Lobo, seu tio, e tambem poeta.

D. Manoel, subindo ao throno, tratou de rehabilitar os conspiradores. A Fernão da Silveira rehabilitou-o na pessoa do filho legitimo, que começou a sua carreira publica por ir servir em Çafim. João da Silveira chegou a ser commendador de Montalvão, governador de Ceylão, trinchante de D. João III, e seu embaixador em França. Morreu em Evora, e foi sepultado na capella do Espinheiro.

Os dois filhos de Fernão da Silveira nunca se deram. A bastardia de um explica naturalmente o facto. Izabel Rodrigues, recolhendo a Portugal, não recorreu á protecção de D. Brites de Sousa, nem D. Brites de Sousa lh'a offereceu.

  1. Documento que encontrámos na Torre do Tombo, gaveta 25, maço 1.º, n.º 47, de fol. 184 a 187.
  2. Existente na Torre do Tombo, cella M, maço 1:104, fol. 381.
  3. Torre do Tombo, cella M, maço 1:163, fol. 495.