II

Seis rainhas para um rei


O que eu vou contar é uma historia verdadeira, tão verdadeira como ter havido em Inglaterra um rei chamado Henrique VIII, que casou com seis mulheres e que, sem ter morrido a primeira, passou a segundas nupcias, contra a vontade do Padre Santo.

Aqui principia, pois, todo o interesse do conto, porque, por causa de uma mulher, como sempre acontece, separou-se a Inglaterra da communhão catholica de Roma.

Aquelle rei dos bretões, que ao depois havia de sahir tão voluvel e tyranno, foi na sua mocidade um bom principe, muito amante da musica e das letras e, no respeitante a religião, muito orthodoxo. Seu pai, o primeiro soberano Tudor, acabára dominado pela mania da ambição, que o levára a vexar o povo, de modo que sorrira com Henrique VIII a esperança de uma nova época melhor auspiciada, tanto mais que o rei, acclamado em 1509, tinha casado aos dezeseis annos com a viuva de seu irmão o principe de Galles, D. Catharina de Aragão, princeza virtuosa, que o devia aconselhar prudentemente, sendo que este casamento era duplamente vantajoso, porque d'elle dependia a alliança com a Hespanha e porque evitava que a Inglaterra tivesse que restituir o dote da princeza.

Tão orthodoxo era o joven rei Henrique, que se condecorava com o titulo de defensor da fé porque, tendo rebentado o grande scisma de que Luthero fôra a cabeça visivel, escrevêra contra o lutheranismo, guiado pelas suas predilectas leituras de S. Thomaz d'Aquino, um livro que intitulou De septem sacramentis.

O cardeal Wolsey, arcebispo de York, que procedia de baixo nascimento, era junto de Henrique VIII um ministro absoluto. Ora á rainha Catharina pesava que todo o poder residisse de facto nas mãos d'esse homem ambicioso, e como o cardeal o soubesse, espreitou occasião propicia para tirar vingança da rainha.

Conhecendo que Henrique VIII estava namorado de Anna Boleyn, filha do gentilhomem Thomaz Boleyn, procurou despertar na alma do rei certas duvidas a respeito da legalidade do seu casamento com D. Catharina d'Aragão, casamento que aliás havia sido realisado por auctoridade de uma bulla do papa Julio II.

A rainha Catharina, mais velha seis annos do que Henrique VIII, tinha-lhe dado cinco filhos, mas só uma sobrevivêra: a princeza Maria. N'isto quiz o cardeal Wolsey vêr castigo do céo, porque o Levitico fulmina penas contra todo aquelle que desposar a viuva do irmão. S. Thomaz d'Aquino, o auctor predilecto do rei, parece que tambem diz a este respeito alguma coisa. Mas dissesse que não dissesse. O que o cardeal queria era explorar em proveito proprio a paixão do rei por Anna Boleyn.

Henrique VIII gostou de encontrar uma porta aberta ao divorcio. E sem mais demora apparentou os seus escrupulos á rainha.

D. Catharina d'Aragão disse que apenas um anno fôra casada com o principe de Galles, que, pelo seu mau estado de saude, não podéra consummar o matrimonio. Que depois, para o segundo casamento, houvera dispensação de Roma. O rei objectou que desejava vêr a bulla. E a rainha expediu logo, a buscal-a, um gentilhomem seu que se chamava Montoya, e que dentro de vinte dias viera a Hespanha e voltára a Inglaterra com a bulla.

Então Henrique VIII procurou um novo subterfugio: que queria saber de Roma se a bulla era falsa ou verdadeira.

E ordenou que, durante dez dias, ninguem, a não ser o seu emissario de confiança, podesse sahir para Roma.

A rainha, como isto soube, valeu-se ainda de Montoya para que sem demora partisse occultamente para Antuerpia, e d'alli, tomando um navio flamengo, procurasse chegar a Roma primeiro do que o postilhão do rei.

Assim aconteceu. O papa, recebendo Montoya, disse-lhe que a bulla era verdadeira, e que a enviaria a Inglaterra por mão do cardeal Campeggio. E o mesmo respondeu ao emissario de Henrique VIII, que ficou desesperado quando teve conhecimento do modo como as coisas haviam corrido.

A rainha, para segurar a vida de Montoya, mandou-lhe recado que se demorasse em Brugges, e ahi esperasse ordens suas.

Entretanto chegára a Inglaterra o cardeal Campeggio. O rei tomára por seu patrono o cardeal Wolsey, a rainha o cardeal Campeggio, e marcou-se o praso de um mez para que cada um dos conjuges litigasse o seu direito.

Catharina de Aragão mandou procurar em Brugges um advogado que, tendo medo, não acceitou a procuração, de modo que a rainha ficou sem outro defensor além do cardeal Campeggio.

E reunido um conselho de dezeseis lettrados, oito por parte do rei, oito por parte da rainha, declarára um dos lettrados do rei que o principe de Galles, segundo duas testemunhas podiam jurar, tivera conversação com D. Catharina, porque certa manhã, sahindo da alcôva, dissera alegremente que tinha passado a noite em Hespanha...

A rainha, ouvindo isto, levantou-se indignada, replicando:

—Que o testemunho era aleivoso, por quanto o rei Henrique bem sabia como a havia encontrado.

E, ouvidos tambem os debates theologicos entre os cardeaes inglez e italiano, o conselho dos lettrados reconheceu a dispensação por boa e authentica, ficando resolvido que aquelles dois dignitarios da Igreja dariam sentença no dia seguinte.

O cardeal de Wolsey, vencido n'esta lucta, foi desculpar-se junto do monarcha, que o repelliu agrestemente, accusando-o de não ter sabido levar a cabo o seu plano.

E Henrique VIII, como cada vez estivesse mais namorado de Anna Boleyn, chamou os duques de Norfolk e Suffolk, e outros grandes senhores do reino, para que no dia seguinte, quando os dois cardeaes se reunissem, lhes dissessem da sua parte que não queria que dessem sentença.

Os duques e os outros grandes senhores cumpriram a ordem do rei, e os cardeaes não ousaram dar a sentença, indo o de Wolsey lançar-se de joelhos aos pés de Henrique VIII para que lhe perdoasse e o deixasse sahir incolume da côrte.

Ora o rei, apesar do que se tinha passado, dissera em segredo a Anna Boleyn que estivesse certa de que elle a havia de desposar e fazer coroar rainha.

Despedindo o cardeal Campeggio, Henrique VIII fez-lhe saber que estava resolvido a não reconhecer por mais tempo a auctoridade do bispo de Roma, e logo, reunindo o seu conselho, communicára-lhe esta resolução, bem como a de desposar Anna Boleyn.

Foi resolvido que se convocassem côrtes.

Mas, para não perder tempo, o rei Henrique, que estava então em Greenwich com a rainha, ordenou que Catharina de Aragão partisse sem demora para Kimbolton, a vinte e seis leguas da côrte, sahindo elle proprio para Richmond.

A pobre Catharina de Aragão partiu com os seus fieis criados, e o rei casou em Richmond com Anna Boleyn, sendo celebrante o arcebispo de Cantorbery.

O rei Henrique teimára em passar através de todas as difficuldades.

Uma d'ellas suggeriu-lh'a a propria mãi de Anna Boleyn, filha do duque de Norfolk, que lhe pedira reflectisse no que ia fazer.

—Porque, disse a mãi de Anna, se vossa magestade examinar bem a sua consciencia, ha de achar que minha filha tambem é sua filha.

Mas o rei não achou nada.

Henrique VIII, voltando a Greenwich, mandou dizer á cidade de Londres que passaria n'aquella cidade para ir a Westminster coroar a nova rainha, e Londres apercebeu-se pomposamente para receber o rei Henrique e a rainha Anna.

Tres dias depois, Henrique VIII embarcou com Anna Boleyn no bergantim real, seguido de uma flotilha flammante, sendo saudado tão estrondosamente pela artilheria, que não ficou n'aquelle dia vidraça inteira desde Greenwich até Londres.

O rei e a rainha pernoitaram na Torre e, no dia seguinte, Henrique VIII foi no bergantim real para Westminster, sahindo pouco depois Anna Boleyn com igual destino, n'umas andas descobertas, precedida de toda a cavallaria e de gentishomens e damas em hacaneas e coches.

Anna Boleyn levava um vestido de brocado carmezim constellado de pedraria, no collo um collar de perolas maiores do que amendoas, na cabeça uma grinalda á maneira de corôa, e nas mãos um bouquet de flôres raras e bellas.

Na rua de Cheapside havia um arco triumphal, no sitio onde a cidade costuma dar aos reis que vão coroar-se mil libras sterlinas, que lhes são entregues por um anjo que desce do arco.

A rainha Anna recebeu a bolsa com o dinheiro, e guardou-a. Logo o povo, que se lembrava de que a rainha Catharina havia mandado distribuir igual quantia, quando lh'a deram, pelos alabardeiros e lacaios, ficou ainda mais desconfiado do que estivera até ahi, dizendo com os seus botões que aquillo era outra loiça de rainha.

Á porta de Westminster, o rei Henrique VIII esperava a rainha Anna, e, dirigindo-se todos para o templo, foi a rainha coroada, havendo durante oito dias grandes justas e torneios, coisa espantosa de se vêr.

Ora o parlamento confirmou tudo quanto o rei havia feito: ratificou o casamento com Anna Boleyn, jurou a legitimidade da successão que d'elle resultasse, reconheceu a Henrique VIII o titulo e o poder espiritual de chefe supremo de igreja anglicana, e outorgou-lhe lhe os rendimentos outr'ora destinados ao thesouro pontificio.

Como alguns catholicos permanecessem firmes na sua antiga crença, e não quizessem jurar, foram presos e executados: entre outros João Fisher, bispo de Rochester, e o chanceller e escriptor Thomaz Moore, a quem Erasmo dedicou o Elogio da loucura, e que fôra, junto de Henrique VIII, o successor do cardeal de Wolsey.

Tambem quiz o rei obrigar a rainha Catharina e os seus fieis criados a reconheceram por juramento Anna Boleyn como rainha, e elle como chefe da igreja anglicana. Catharina de Aragão recusou-se dignamente, mas não queria sacrificar os criados. Elles limitaram-se a jurar que o rei se tinha feito cabeça da igreja, negando-se porém terminantemente a reconhecer Anna Boleyn como rainha de Inglaterra.

Roma fulminára terriveis excommunhões contra Henrique VIII. Paulo III, como já havia feito Clemente VII, anathematisára o rei de Inglaterra, citando-o a comparecer perante o tribunal de Roma.

Mas o rei Henrique fez ouvidos de mercador, e ordenou que a filha de Anna Boleyn, que veio depois a reinar com o nome de Izabel e o cognome de Virgem (que virgem!) fosse jurada princeza de Galles, sendo declarada bastarda madama Maria, que tambem foi rainha, filha de Catharina de Aragão.

Desde que na rua de Cheapside a rainha Anna tinha arrecadado a bolsa com as mil libras sterlinas, que lhe dera a cidade de Londres, ficou-se sabendo que, na balança do seu coração, o amor ao rei não pesava mais do que o amor ao dinheiro.

Assim foi que ella cobiçou a corda e as joias que pertenciam á rainha Catharina.

Ora a rainha Catharina podia, como a condessa de Chateaubriand, quando Francisco I lhe pediu todas as joias para as dar a Anna de Pisseleu, tel-as mandado derreter no fogo. Mas não fez assim, devolveu-as honradamente, com excepção da corôa, porque estava guardada da mão de lord Rutland, que não a quiz entregar emquanto a rainha Catharina foi viva.

Lord Rutland é o Martim de Freitas inglez.

Mas aquelle e outros golpes acabaram por dilacerar o coração atormentado da boa rainha Catharina, cujos padecimentos se aggravaram mortalmente.

No seu leito de agonia escreveu ao rei uma carta, que o abbade Millot com razão classifica de lettre touchante, mas que nós, graças á chronica hespanhola de Julian de Pliego, tão sabiamente annotada pelo marquez de Molins, podêmos reproduzir na integra:

«Senhor meu e rei meu e marido amantissimo:

«O profundo amor que vos tenho faz-me escrever-vos n'esta hora e agonia de morte, para admoestar-vos e lembrar-vos que tenhaes conta da saude eterna da vossa alma mais que de todas as coisas fallazes d'esta vida e de todos os regalos e deleites de vosso corpo, por cuja causa me haveis dado tantas penas e fadigas e vos haveis embrenhado n'um labyrintho e pélago de cuidados e angustias. Perdôo-vos de boa mente tudo o que tendes feito contra mim, e supplico a Nosso Senhor que tambem vos perdoe. O que vos rogo é que olheis por Maria, nossa filha, a qual vos recommendo; e vos peço que para com ella tenhaes cuidados de pai. Tambem vos recommendo as minhas tres criadas, e que as cazeis honradamente, e todos os outros criados, para que não padeçam privações; e além do que se lhes deve, desejo que se lhes entregue o salario inteiro de um anno. E, para concluir, senhor, certifico-vos e affirmo-vos que não ha coisa mortal que os meus olhos mais desejem do que vós.»

Boa e santa alma de mulher, que morre amando o seu verdugo!

No céo—e, se o ha, deve ser para os martyres que se volvem anjos—foi Catharina gozar a eterna felicidade: aquellas grinaldas, de que falla Shakspeare, e que ella esperava ser digna de gozar.

Porque, a proposito vem dizel-o, uma das tragedias de Shakspeare tem por assumpto e titulo Henrique VIII. Foi Izabel, a filha de Anna Boleyn, que lhe pediu que a escrevesse. Ora a obra do tragico inglez, a respeito de Henrique VIII, é um producto convencional, destinado á filha da rainha intrusa que depoz Catharina de Aragão.

Anna Boleyn tinha estado na côrte galante de França, fazendo parte da comitiva da princeza Maria, irmã de Henrique VIII, ultima esposa de Luiz XII, e saboreára ahi nas festas ruidosas do castello de Blois a vida alegre e frivola cuja effervescencia é capitosa. Quando a viuva de Luiz XII, que por amor d'ella se extenuára, voltou a Inglaterra, Anna Boleyn, educada á franceza, acompanhou-a. Vinha coquette. De mais a mais Henrique VIII era um marido que se saciava de afogadilho, e que nos seus caprichos amorosos tinha azas como a borboleta, para voar de flôr em flôr.

Anna Boleyn, que começára amando a dança e a musica, acabou por amar os dançarinos e os musicos.

Assim era que bailava nos seus aposentos com sir Henry Norreys, com Weston e William Brereton, dois gentishomens de segunda ordem, ao som de uma orchestra de tangedores, de que fizera parte Marcos Smeaton, um aventureiro, filho de um carpinteiro pobre, mal vestido e afadistado.

Este Marcos Smeaton foi levado á presença da rainha para exercer a sua prenda de menestrel, emquanto ella bailava com o primeiro gentilhomem do rei, sir Henry Norreys; mas a rainha, impressionada pelo filho do carpinteiro, quiz bailar com elle, mandando a uma dama que tangesse.

Não vá cuidar-se que esta democracia reles era privativa da côrte dos bretões.

Conta André de Rezende, na Vida do Infante D. Duarte, que este infante tomára por companheiro um tangedor castelhano de appellido Ortiz, que lhe tocava na guitarra fados contra o papa, e trocava em sucia com o principe graçolas obscenas de calão fadista.

Marcos Smeaton entrára com o pé direito nos aposentos e nas danças da rainha Anna, porque, pouco tempo volvido, uma servilheta velha, alcoveta industriosa, levava de noite o Marcos até ao leito da rainha.

Sir Henry Norreys e William Brereton descobriram mouro na costa, e recalcitaram. Armou-se uma embrulhada de ciumes, tanto maior quanta era a pompa de vestuario e galanices que o Marcos exhibia, indicando tolamente as boas fortunas de que gozava junto da rainha Anna.

A ousadia pimpona de Marcos Smeaton desbragou-o a ponto de se mostrar altaneiro com lord Thomaz Percy, conde de Northumberland.

Ora ainda n'esta ousadia chibante do menestrel andava o ciume, porque Thomaz Percy, antigo namorado de Anna Boleyn, lográra ser, á sombra de Henrique VIII, o mais feliz dos amantes.

A rainha ordenou com descaro a Percy que não maltratasse o Marcos, mas Percy, ferido talvez mais pelo ciume do que pela desconsideração, foi denunciar os novos amores da rainha a Thomaz Cromwell, ministro do rei Henrique.

Cromwell attrahiu a Londres Marcos Smeaton e, pondo-o na tortura, arrancou-lhe a confissão das relações adulterinas da rainha com os tangedores e bailarinos da côrte, incluindo elle.

D'alli foi Marcos Smeaton mandado para a Torre de Londres, onde não tardaram a ser igualmente encerrados Henry Norreys, William Brereton e o poeta Thomaz Wyat, muito protegido do ministro Cromwell.

N'este lance da nossa historia precisamos conversar um pouco a respeito do poeta Wyat, aliás famoso, comquanto amorosamente fosse mais pateta do que poeta.

Creado desde pequeno com Anna Boleyn, estabeleceu-se entre os dois um d'aquelles idyllios infantis de que Bernardin de Saint-Pierre deixou uma photographia generica na pastoral de Paulo e Virginia.

Mas os devaneios d'essa idade são gorgeios de rouxinol que ascendem ao azul, e por lá ficam pairando n'uma alada melodia, que lembra toda a vida com maior fiasco do que saudade.

Emquanto a pureza dos idyllios platonicos se libra nos ares, as mulheres positivas que os inspiraram vão cá na terra saboreando as iguarias do peccado com grande menospreço pelos poetas bucolicos que não souberam ir além do platonismo piégas.

Conta Pliego que a alcoveta de Anna Boleyn, na noite em que introduzira na camara da rainha Marcos Smeaton, e no momento de o occultar com o espaldar do regio catre, dissera para disfarce, pondo junto ao leito uma bandeja: «Senhora, aqui está a marmelada.»

A marmelada era Marcos Smeaton.

Foi a isto que eu chamei metaphoricamente iguarias do peccado.

O pobre Wyat, quando Anna Boleyn subiu de marqueza de Pembroke a rainha de Inglaterra, o mais que fez foi chorar sobre as ruinas do seu proprio platonismo. Compoz, ahi por 1535, uma elegia com o titulo de Forget not yet, que, em versão descolorida, sôa pouco mais ou menos assim:

Não te esqueça a constancia que meu peito
 No amor provado tem.
Trabalhos que soffri alegremente
 Não esqueças tambem.

Não te esqueça do meu antigo affecto
 Seu antigo soffrer.
Quanto implorei captivo e atormentado
 Não deves esquecer.

Provas por que passei, desdens, supplicios
 Na memoria retem.
Delongas que soffri pacientemente
 Não esqueças tambem.

Não esqueças o tempo que vai longe
 No seu longo correr.
Que jámais julgou mal meu pensamento,
 Não deves esquecer.

Não te esqueças do eleito teu d'outr'ora,
 Do amor que teve e tem.
Do seu peito a constancia inquebrantavel
 Não esqueças tambem.


Mas o sentimentalismo levava Wyat por caminho errado. Anna Boleyn, na côrte de Inglaterra, gostava mais dos musicos que das elegias.

Pensam alguns auctores que Thomaz Wiat nunca mais se avistára com Anna Boleyn. O chronista castelhano desfaz, porém, este equivoco, dando conta da prisão de Wyat, pouco antes da propria rainha ser presa em Greenwich, onde acabava de se celebrar um torneio e onde a sua ultima galanteria fôra deixar cahir o lenço, como favor concedido aos seus amantes. Mas quem categoricamente tira todas as duvidas é o proprio Wyat n'uma carta que escreveu ao rei.

Quando os escandalos da rainha chegaram ao conhecimento de Wyat, aggravados até pela suspeita de incesto commettido com o visconde de Rochford, seu irmão, achou elle que o melhor que tinha a fazer era chorar menos e atirar-se mais.

Uma noite, estando Anna Boleyn a oito milhas de Greenwich, Wyat montou a cavallo e, dirigindo-se ao palacio da rainha, teve artes de se introduzir na sua camara. Glosou-lhe, á beira do leito, uma nova declaração de amor. Mas como a rainha se calasse, e como quem cala consente, ousou apolegar-lhe as carnes. Estavam as coisas em bom caminho, quando de repente ouviu bater com o pé no pavimento do andar superior. E a rainha, que esperava de certo este signal, levantou-se do leito e desappareceu por uma escada interior. Wyat esperou por ella uma hora, mas Anna Boleyn, quando voltou, despediu-o ariscamente.

Os platonicos, mesmo quando se propõem mudar de escóla, passam por uma iniciação desastrada e ridicula.

Mas oito dias depois, como era justo, pois que tanto chorára e esperára, o poeta Thomaz Wiat não foi menos feliz do que Marcos Smeaton e outros musicos.

Tudo isto contou Wyat ao rei, n'uma carta escripta da Torre de Londres, e o rei, depois de a lêr, mandou soltar o poeta e ficou estimando-o tanto, que em 1541 o enviou como embaixador á côrte de Carlos V, mas Wyat morreu dos incommodos d'esta viagem.

Os outros cumplices de Anna Boleyn não tiveram igual felicidade: o visconde de Rochford, Henry Norreys, William Brereton e Marcos Smeaton foram degolados. A alcoveta Margarida foi queimada.

Presa na Torre de Londres, Anna Boleyn negou os crimes de que a accusavam. Ao bispo de Cantorbery disse ella:

—Eu bem sei a causa de tudo isto. O rei anda namorado de Joanna Seymour, e achou este meio de se desfazer de mim.

A accusação e a defeza eram por igual verdadeiras.

De nada valeu á rainha encarcerada a carta que da Torre de Londres escrevêra ao rei, e que o rei leu sem commoção.

Sobre o cadafalso, Anna Boleyn pronunciou um discurso muito habil para não enganar Deus nem os homens.

—Não penseis, bom povo, que me peza morrer, nem que eu fizesse coisa que merecesse esta morte: tudo procede da minha grande ambição e do grande peccado que commetti fazendo com que o rei abandonasse a boa rainha Catharina por minha causa. Rogo a Deus que ella me perdôe. E para que todos o ouçaes, digo que sou injustamente accusada. A principal razão da minha morte é Joanna Seymour, como eu fui a razão da morte da boa rainha Catharina.

E assim, humilhando-se diante de Deus sem se penitenciar diante dos homens, foi decapitada no dia 19 de maio de 1536.

Dividem-se as opiniões a respeito do comportamento de Anna Boleyn.

Os escriptores protestantes divinisam-lhe as virtudes; os catholicos põem em evidencia o desbragamento das suas libertinagens.

A sentença condemnatoria, assignada por Henrique VIII, accusa Anna Boleyn de traição, adulterio e incesto.

Guilherme Cobbett, comquanto protestante, faz resaltar o contraste da devassidão dos costumes da rainha Anna com a existencia virtuosa da rainha Catharina.

David Hume, o notavel historiador inglez, lança as graves accusações levantadas contra Anna Boleyn á conta das apparencias de coquetterie, que em grande parte ella havia aprendido em França, e das machinações facciosas dos seus inimigos, incluindo a viscondessa de Rochford, cunhada da rainha, que insinuou a suspeita do incesto.

Na chronica castelhana de Julian de Pliego vem a designação de que o auctor, talvez acobertado pelo pseudonymo, fôra contemporaneo dos factos que narra.

É certo que elle commette alguns anachronismos, como nota o marquez de Molins, mas não padece duvida que na sua chronica, facilmente escripta, com uma discreta sobriedade de rhetorica, pouco vulgar nos historiadores hespanhoes, ha grande copia de preciosas noticias, de interessantes pormenores, que a fazem estimabilissima.

Em Portugal Anna Boleyn ficou sendo, na tradição popular, sob a translitteração de Anna Bolena, o typo da mulher corrupta e corruptora, enredadeira e devassa, perturbadora e intrigante.

No que, porém, todos os historiadores estão de accordo é em attribuir a summaria decapitação de Anna Boleyn ao amor que o rei alimentava por Joanna Seymour, filha de sir João Seymour, dama formosissima, que fazia parte da casa da rainha Catharina.

No dia da execução de Anna Boleyn, Henrique VIII, para mostrar a alegria do seu coração, e porventura a «pureza» das suas intenções, vestiu-se de branco; e no dia seguinte desposou Joanna Seymour.

David Hume observa, para fazer elogio á consciencia de Henrique VIII, que este rei não queria conhecer outras ligações além das do casamento. A desculpa afigura-se pueril e inexacta, porque o rei viveu tres annos amancebado com Anna Boleyn, antes de se divorciar de Catharina de Aragão.

Fizeram-se grandes festas para solemnisar o casamento de Henrique VIII com Joanna Seymour, que, tendo sido dama de honor da rainha D. Catharina, se mostrava muito affeiçoada á princeza Maria, a qual o rei seu pai não tinha visto havia mais de tres annos.

Esta princeza, que, como se sabe, depois do casamento de Henrique VIII com Anna Boleyn apenas recebia o tratamento de madama, foi educada mais ou menos sob a influencia dos conselhos de sua mãi, D. Catharina de Aragão, de quem Rivadaneyra publíca uma carta, dirigida á filha, na qual se lê o seguinte periodo: «Dá recommendaçoes minhas á condessa de Salisbury: dize-lhe da minha parte que tenha firmeza de animo, porque não podêmos ganhar o reino dos céos sem cruz e attribulações.»

A condessa de Salisbury, Margarida Plantagenet, virtuosa dama, fôra aia da princeza Maria. Morreu justiçada aos setenta annos de idade, em 1539, por odio do rei, nas luctas contra os catholicos, aos parentes do cardeal Pole, que era filho da condessa.

Graças á intervenção de Joanna Seymour, a recepção feita pelo rei á princeza Maria, que não sem repugnancia se havia submettido ao scisma, pois que a sua educação tinha sido catholica, pareceu ser muito cordeal.

E logo, invertendo facilmente os papeis, ordenou o rei que a filha de Anna Boleyn passasse a receber o tratamento de madama, e a filha de Catharina de Aragão o de princeza.

Mas Joanna Seymour déra tambem á luz um filho, o mais lindo que jámais se viu, diz Julian de Pliego.

O nascimento de um herdeiro varão causou alegria a Henrique VIII, não obstante as difficuldades que esse facto trazia para resolver a questão dynastica e ter custado a vida de Joanna Seymour, que morreu doze dias depois do parto.

Como diz Hume, a dôr do esposo foi absorvida pela satisfação do pai, que fez jurar principe de Galles o filho de Joanna Seymour, concedendo por essa occasião a dignidade de conde de Hertford a Eduardo Seymour, irmão da mallograda rainha, já anteriormente nomeado lord Beauchamp.

O baptisado fez-se com grande pompa, recebendo a creança o nome de Eduardo, que foi o sexto rei d'aquelle nome, e veiu a morrer aos dezeseis annos sem deixar successão. A princeza Maria, a cuja guarda Henrique VIII confiou o filho, tocou por madrinha; o conde de Hertford, irmão de Joanna Seymour, por padrinho.

De todos as mulheres de Henrique VIII foi Joanna seguramente a mais estimada. Encontram-se de accordo n'este ponto os historiadores. Mas a razão está decerto, attenta a volubilidade do rei, em que elle não teve tempo para se enfastiar.

Assim foi que Joanna Seymour logrou morrer rainha, como observa Cobbett, e na sua cama, felicidade que outras esposas de Henrique VIII não gosaram.

Mas o rei, apesar do grande sentimento que lhe causára a morte de Joanna Seymour, pensou logo em casar.

Deitou primeiro as suas vistas para a duqueza viuva de Longueville, filha do duque de Guise. Mandou pedil-a a Francisco I. A resposta foi que a duqueza estava já promettida ao rei da Escocia. Henrique VIII ficou desesperado, e enviou a França um emissario para o informar da impressão que a duqueza produzia. O emissario disse que era bonita e gorda. Esta ultima informação coroou a primeira, porque o rei, que estava então muito nutrido, preferia uma esposa de gordura condigna á sua.

Francisco I, posto reconhecesse que a alliança da Inglaterra lhe seria mais proveitosa do que a da Escocia, manteve a sua palavra, mas offereceu a Henrique VIII, para lhe calmar o animo, Maria de Bourbon, filha do duque de Vendome.

Henrique VIII, sabendo, porém, que o rei Jacques da Escocia, seu sobrinho, havia recusado Maria de Bourbon, rejeitou a proposta.

Então Francisco I offereceu-lhe qualquer das duas irmãs mais novas da duqueza de Longueville.

Henrique VIII respondeu pedindo a Francisco I uma entrevista em Calais, e indicando-lhe que se fizesse acompanhar das duas princezinhas de Guise e de todas as mais bellas mulheres da côrte de França, para elle escolher.

Queria um bazar de mulheres, uma feira de noivas!

Francisco I não obtemperou ao pedido. Picou-se, como dizem os francezes, fosse que lhe repugnasse o papel de alcaiote officioso ou que, sendo elle proprio galanteador do bello sexo, lhe desagradasse a idéa de expôr mulheres comme des chevaux au marché.

Então Henrique VIII lançou vistas para a Allemanha, o que politicamente não deixava de convir-lhe para encontrar allianças nos principes da liga protestante contra o imperador Carlos V.

Cromwell indicou-lhe Anna de Cleves, filha do duque d'este titulo.

Mandou-se pedir um retrato. Executou-o Holbein, celebre pintor, que se gozou das boas graças de Henrique VIII e da amisade de Thomaz Moore e Erasmo. Conta-se até que estando Holbein a trabalhar um dia no seu atelier, fôra bater-lhe á porta um dos primeiros senhores da côrte. Holbein desculpou-se de não poder abrir por estar trabalhando. O fidalgo insistiu. Holbein, impacientado, abriu a porta, e atirou-o pela escada abaixo. Receioso das consequencias d'essa imprudencia, correu a pedir a protecção de Henrique VIII, a quem o fidalgo foi sem demora queixar-se. O rei tentou congraçar o fidalgo com o pintor, mas, vendo que os seus esforços eram inuteis, disse ao fidalgo, que se vangloriava do titulo de conde:

—Eu posso facilmente fazer sete condes como vós; mas de sete condes não poderei fazer um Holbein.

Holbein, comquanto cultivasse a pintura historica, não faltando quem pense que elle seria o auctor do famoso quadro da Misericordia do Porto, foi principalmente notavel nos retratos. Pois apesar da habitual fidelidade do seu desenho e da exacta expressão do seu pincel, Holbein, no retrato de Anna de Cleves, obedeceu um pouco á adulação palaciana que mandava alindar os retratos das princezas, embora ficassem menos parecidos.

Um seculo depois dizia o joven Luiz XIV a respeito de Margarida de Saboya: Elle est agréable, et, contre l'habitude, ressemble à ses portraits. O nosso grande José Estevão, apesar de inventada já a photographia, disse uma vez no parlamento que todas as princezas eram formosas.

Depois de examinado o retrato, justou-se o casamento, sem embargo da opposição do eleitor de Saxe, chefe da liga protestante, casado com uma irmã do duque de Cleves.

Impaciente de vêr a sua quarta noiva, Henrique VIII dirigiu-se mysteriosamente a Rochester, e esperou-a ahi. Viu-a, e não gostou. Arrependeu-se então de ter confiado no retrato em vez de adoptar o expediente que anteriormente havia proposto a Francisco I.

Além de feia, a princeza só fallava o hollandez, lingua que Henrique VIII não entendia.

O rei reuniu conselho para vêr se seria possivel romper o contracto de casamento, mas acobardou-o uma consideração politica.

Carlos V e Francisco I estavam então reconciliados. Como surgissem novas perturbações na Hollanda, principalmente em Gand, Carlos V, que residia em Hespanha, quiz ir pessoalmente calmal-as. Mas como a viagem por Italia e Allemanha seria muito longa, o imperador pediu ao seu prisioneiro de Pavia licença para atravessar a França. Francisco I mostrou-se magnanimo, deu a licença pedida e recebeu com grandes festas Carlos V. Alexandre Dumas, como o leitor deve estar lembrado, descreve-as no seu romance Ascanio. Ora, dada a conciliação de Francisco I e Carlos V, bem podiam estes dois principes, movidos pelo zelo religioso, cahir sobre a Inglaterra com todo o pezo dos seus exercitos.

Portanto, mais do que nunca, importava a Henrique VIII uma alliança com os principes allemães, para o que désse e viesse.

Henrique resignou-se por algum tempo, vivendo separado da rainha de dia e de noite. Dava como desculpa a suspeita de que Anna de Cleves não estava virgem quando a desposou. E secretamente mandou á Allemanha um emissario de confiança, o gentilhomem Vaughan, para averiguar o que podesse a este respeito.

O rei, já a esse tempo enamorado de Catharina Howard, sobrinha do duque de Norfolk, queria encontrar um pretexto para repudiar Anna.

Partiu Vaughan com dinheiro á ufa e, chegando a Cleves, reuniu em banquete alguns gentishomens, com o proposito de os embriagar. In vino veritas. Depois de haverem esgotado os picheis, elles diriam o que soubessem. Assim aconteceu. Um d'elles, mais expansivo na embriaguez, posto fosse criado do duque de Cleves, disse á mesa que a princeza havia desposado um cavalleiro, que morrêra na Allemanha de desgosto quando soube que acabavam de casal-a com Henrique VIII.

Surprehendido este fio da meada, Vaughan procurou desfial-a, fazendo-se acompanhar de cartas justificativas.

Interrogada a propria Anna por Henrique VIII, respondeu que tinha sido desposada com o duque de Lorena, mas que lhe disseram que elle havia morrido, e que de mais nada sabia.

Hume assevera que o casamento com o duque de Lorena fôra effectivamente tratado com Anna de Cleves, quando ambos estavam na infancia, e desfeito depois por commum accordo.

Todavia isto bastou para que Henrique procurasse divorciar-se da rainha Anna, allegando que não déra o seu consentimento interior para o casamento, e que não o consummára.

Esta ultima desculpa não é menos absurda do que a primeira, visto que Henrique VIII declarára que Anna de Cleves já não estava virgem.

O duque de Norfolk, aproveitando o amor do rei pela sobrinha, conspirou contra o ministro Cromwell, e empolgára o poder que elle, proscripto por um bill, fôra obrigado a largar. O clero e o parlamento ratificaram o divorcio, e Anna de Cleves foi, sem se importar muito com isso, enviada para Cornwall, onde viveu entregando-se ao prazer, fazendo alegres partidas de caça.

O seu temperamento frio de allemã não soffreu pois grandemente com o divorcio, mas altivo, como todos os de sua raça, levou-a a não querer voltar para a Allemanha.

Diz-se que escrevêra uma carta ao irmão, pois que o pai tinha fallecido, affirmando-lhe que fôra sempre bem tratada na Inglaterra.

A situação politica da Europa tinha mudado; a reconciliação de Francisco I com Carlos V não havia sido duradoura. Foi o que valeu a Henrique VIII, porque as suas relações com os principes da liga protestante esfriaram depois do divorcio. E o que valeu a Anna de Cleves foi o receio que Henrique tivera dos principes allemães. Se assim não fosse, em vez de ir para Cornwall, teria ido para a Torre de Londres, e d'ahi para o cadafalso.

Henrique VIII estava então nos seus quarenta e nove annos. Mas as velleidades amorosas eram as de um moço. Indo uma vez a casa da princeza Maria, a cuja guarda estava confiado o principe de Galles, disse a Catharina Howard, então viçosa donzellinha de quinze annos, que ajoelhára:

—Não mais, Catharina, quero que tornes a ajoelhar-te; bem ao contrario, ajoelharão diante de ti todas as damas e cavalleiros do meu reino.

Tal foi a explosão amorosa do coração do rei.

O casamento fez-se logo, e Henrique VIII delirava de jubilo por possuir uma esposa bella e graciosa, julgava-se o mais feliz dos maridos, instituira na capella real uma oração em acção de graças, e exigira que o bispo de Lincoln compozesse, pelo mesmo motivo, um hymno gratulatorio.

Catharina, vendo cingidos os seus cabellos com a corôa de Inglaterra, pompeou esplendores de toilettes e joias nunca vistas. Era uma coquette de peior estofa que Anna Boleyn. Não precisára ter estado em França para se desmoralisar; o vicio era-lhe ingenito. Coquette e dominadora. Ciosa das honras dispensadas á princeza Maria e ao principe de Galles, fez com que o rei lhes pozesse casa á parte. E o rei, preso nos seus amavios, obedecera-lhe.

Comprehende-se facilmente que um marido de cincoenta annos não bastasse ás exigencias voluptuosas de uma coquette como Catharina Howard.

Aquillo já vinha de traz.

Frequentava a côrte um gentilhomem, de nome Colepeper, que havia merecido favores amorosos a Catharina Howard, quando solteira. Colepeper, depois que Catharina fôra desposada por Henrique VIII, sentira, como sempre acontece, maior paixão por ella e, na côrte, mostrava-se melancolico para significar á rainha a sua saudade pelas felicidades do passado.

Catharina Howard trocava com elle olhares furtivos, mas brilhantes de esperança, scintillantes de promessas.

Animado por este estimulo, Colepeper resolveu-se a escrever á rainha, e um dia, dançando com ella, entregou-lhe uma carta, a que Catharina respondeu, decerto confirmando as promessas dos seus olhares. A resposta foi entregue a Colepeper pela rainha, tambem n'um sarau dançante em que bailaram emparceirados.

Henrique VIII foi uma victima da dança,—sempre que as rainhas dançavam.

Certo dia Catharina procurou sondar uma criada sua, Maria se chamava ella, dizendo-lhe:

—Se soubesse que não me denunciarias, confiava-te um segredo.

A criada respondeu:

—Guardarei segredo do que me disserdes, comtanto que não toque pelo rei.

Sangrava-se em saude, a criada, lembrando-se certamente de que a confidente de Anna Boleyn havia sido queimada.

A rainha disfarçou:

—Outro dia fallaremos n'isso. Mas não é coisa que toque pelo rei.

Passado tempo, Catharina tentou sondar outra criada:

—Joanna, desejo fazer-te bem e conseguir que el-rei te case honestamente.

E, juntando os factos ás palavras, deu-lhe alguns vestidos e joias.

Corridos dias, a rainha abriu-se confidencialmente com a criada.

Disse-lhe que amava Colepeper, que pensára mesmo em casar com elle antes do rei a requestar. E pediu-lhe que a auxiliasse para ter uma entrevista com Colepeper, visto que o rei ia sahir para Rionsirche.

A criada teve medo, recusou-se e foi denunciar a rainha ao arcebispo do Cantorbery. Mas parece que outra criada, menos timida, favorecêra os intentos de Catharina, porque depois se averiguou, como vamos vêr, que a rainha tivera effectivamente um tête-à-tête com Colepeper.

O arcebispo soube mais por um individuo chamado Lascelles, cuja irmã havia estado ao serviço da velha duqueza de Norfolk, e lhe revelára segredos da vida de Catharina quando solteira, que dois officiaes da casa da duqueza, Derban e Mannoc, haviam sido admittidos no seu leito, sem que d'isso fizessem mysterio.

Julgou o arcebispo, depois de ter conferenciado com o conde de Hertford, e com o chanceller, que devia contar tudo ao rei, e fel-o com certo embaraço, como era natural. Henrique VIII mostrou-se incredulo, no primeiro momento, mas o arcebispo, desejando justificar-se, activou decerto novas investigações. Lascelles foi a Sussex fallar com sua irmã, a qual não só confirmou mas até ampliou as revelações anteriores. Mannoc e Derban, presos e interrogados pelo chanceller, disseram tudo o que podiam dizer. Revelaram pormenores escandalosos. Contaram que tres jovens criadas da duqueza de Norfolk conheciam o segredo da devassidão de Catharina, porque tinham algumas vezes passado a noite entre Catharina e os seus amantes.

Averiguou-se mais que a rainha realisára a entrevista com Colepeper, e, como era natural, suspeitou-se do facto de haver Catharina escolhido Derban, um dos antigos amantes, para seu criado.

Todos os depoimentos foram lidos ao rei que, apesar de estar habituado a estes lances, chorou.

Interrogada a rainha sobre as accusações que lhe eram feitas, negou-as a principio; mas quando lhe apresentaram todas as provas, confessou que effectivamente se havia conduzido mal antes do casamento, insistindo, porém, na declaração de que não tinha trahido o rei.

O parlamento, vingador das infelicidades conjugaes de Henrique VIII, tomou conhecimento do facto.

A rainha, a viscondessa de Rochford, cunhada de Anna Boleyn, sua inimiga, e confidente dos amores de Catharina, Colepeper, Derban, a duqueza de Norfolk, avó da rainha, lord William Howard, seu tio, a mulher de lord Howard, a condessa de Bridgewater, e mais nove pessoas, foram proscriptos.

Como Anna Boleyn, Catharina Howard subiu ao cadafalso, em Tower-hill.

A dois passos do garrote e do algoz, fallou ao povo.

Confessou o seu amor por Colepeper, e que a ambição de ser rainha a perdêra. Lamentou não ter casado com Colepeper, pesando-lhe que elle por sua causa morresse. Accrescentou que morria rainha, mas que preferiria morrer mulher do homem que tinha amado e que a amava.

Um idyllio sobre o cadafalso!

No outro dia foi decapitado Colepeper, que se limitou a pedir ao povo que rogasse a Deus por elle.

Tambem morreu decapitada a viscondessa de Rochford, com applauso do publico, que se lembrava de que fôra ella quem mais contribuira para a perda de Anna Boleyn.

Henrique VIII, afim de se precaver contra novos desastres conjugaes, levou o parlamento a votar uma lei em que a todos os cidadãos se impunha a obrigação de denunciarem secretamente ao rei quaesquer infidelidades da real consorte, e á real consorte o dever, sob pena de alta traição, de revelar ao rei as faltas que porventura houvesse commettido antes do casamento.

O povo inglez, vendo através d'esta lei o projecto de um novo casamento, desatou ás gargalhadas.

Ora Henrique VIII algumas vezes dizia rindo que ainda havia de cahir n'uma viuva. Chalaça do rei, porque a bem dizer a maior parte das suas mulheres não eram outra coisa. E não deixa de ser curiosa a coincidencia de que dois reis femeeiros, Henrique VIII e Luiz XIV, acabassem ambos por desposar uma viuva authentica, Henrique VIII Catharina Parr, viuva duplicada, de lord Nelvill e de lord Latimer; Luiz XIV a viuva Scarron.

Catharina Parr ia muitas vezes á côrte visitar a princeza Maria. O rei escolheu-a para sexta esposa, confiado em que, por ter já conhecido dois maridos, e contar trinta e seis annos, não prevaricaria extra-canonicamente no sexto mandamento como as outras.

O casamento fez-se um pouco á capucha. Sem embargo, Anna de Cleves assistiu e, longe de se mostrar pezarosa, gracejou sobre o caso.

—Que grande peso, disse ella, vai tomar Catharina Parr!

Anna de Cleves fizera um calembour, porque o rei estava descommunalmente obeso.

Posto de parte o calembour, a situação de Catharina Parr não era para invejar. Deviam passar-lhe pela imaginação os espectros das duas esposas decapitadas de Henrique VIII, tanto mais que, sendo Catharina partidaria de Luthero, os seus inimigos catholicos não deixariam de trabalhar para perdel-a.

E quasi o tiveram conseguido.

Henrique VIII, comquanto adversario do papa, zelava a orthodoxia dos dogmas. Succedêra que Catharina Parr fallára um dia com certa franqueza e favor a respeito da reforma, acabando por emittir o seu parecer ácerca da eucharistia.

Soube-o o rei e queixou-se a Gardiner de que a rainha tivesse a ousadia de pensar de maneira differente d'elle. Chegaram a formular-se officialmente artigos de accusação contra a rainha; e passou-se a respectiva ordem de prisão. Este documento cahiu, porém, da algibeira do chanceller, e foi encontrado por um partidario da rainha, o qual correu a mostrar-lh'o.

Catharina dirigiu-se immediatamente aos aposentos do rei, que, por ser esse o seu gosto, e para experimental-a, fallou de assumptos theologicos.

Catharina esquivou-se tenaz e artificiosamente a entrar na questão, dizendo:

—As mulheres estão sujeitas ao homem desde a origem do mundo. O homem foi creado á imagem de Deus, e a mulher á imagem do homem; é pois ao esposo que cumpre regular as opiniões da esposa. Mas, como quer que seja, o dever da mulher é adoptar cegamente os principios do marido. Quanto a mim, obriga-me um duplo dever, pois que tenho a felicidade de possuir um esposo que, por sua intelligencia e saber, póde illustrar não sómente a sua familia, mas até os mais eruditos espiritos de todas as nações.

O rei, muito lisongeado, respondeu:

—Por Santa Maria! sois mais sabia do que o doutor Kate, e estais mais no caso de dar que de receber lições!

Catharina Parr declinou o elogio por immerecido, dizendo ao marido que o seu unico empenho era distrahil-o por alguns instantes dos seus grandes trabalhos e soffrimentos.

Henrique VIII replicou com alegria:

—É pois assim?! Bem está. D'aqui por diante seremos dois bons amigos.

No dia seguinte, o rei e a rainha, completamente reconciliados, conversavam no jardim quando o chanceller chegou acompanhado de quatro homens, para prender Catharina.

O rei obeso rebolou-se para elle, e desfechou-lhe epithetos injuriosos.

Quando o chanceller sahiu corrido, a rainha esforçou-se por tranquillisar o rei.

Henrique VIII disse-lhe:

—Pobre tontinha! Nem tu sabes o que deves a este homem!...

Não sabia a rainha outra coisa! Mas a sua astucia feminil e a experiencia de um terceiro casamento seguram-lhe a cabeça sobre os hombros.

Desde esse dia o chanceller ficou desprestigiado aos olhos do rei.

E Catharina redobrou de amabilidades para com seu marido, servindo-o á mesa, curando-lhe carinhosamente as feridas que elle tinha na perna esquerda e cantando-lhe trovas, para o adormecer, quando o rei, insomnioso, difficilmente rebolia na cama a sua incommoda rotundidade.

Conta Pliego que Henrique VIII, sentindo avisinhar-se a morte, no anno de 1547, se despedira ternamente da rainha, recommendando-a aos grandes do reino, e ordenando que lhe dessem sete mil libras, todas as suas joias e vestidos, se quizesse tornar a casar.

Accrescenta ingenuamente o chronista castelhano: E a boa rainha não pôde responder pelo muito que chorava.

A sinceridade d'essas lagrimas avalia-se pela fogosa paixão que Catharina Parr desentranhou pelo almirante Thomaz Seymour, que era amante de Isabel, filha do rei e de Anna Boleyn. O almirante desposou a rainha viuva, mas os ciumes de Isabel e a inveja que sua cunhada, a duqueza de Somerset, tinha da rainha atormentavam-n'o grandemente. Catharina Parr morreu envenenada, segundo se diz. Havia dado á luz uma creança que não vingou, sem que se soubesse ao certo se era filha do rei ou do almirante, tão pouco tempo depois da morte do rei casára ella com o almirante.

Catharina Parr, a respeito de casamentos, lia pela cartilha de Henrique VIII. A terra lhe seja leve, já que os maridos o não foram.

O almirante teve motivos para sentir a morte da esposa, porque lhe arrebatou o rendimento annual de sete mil libras. Como compensação, mancommunou-se com os piratas e ia feito nas extorsões que elles praticavam. Enriqueceu. Vendo-se rehabilitado, quiz casar com a princeza Izabel, sua amante, talvez para conseguir que fosse entregue aos seus cuidados o joven rei Eduardo VI, sendo que estava usufruindo esta honra seu irmão o duque de Somerset, condecorado com o titulo de protector. O irmão e a cunhada, para cortar-lhe o vôo das ambições, perderam o almirante, accusado de cumplice nas extorsões dos piratas. O proprio duque assignou a sentença de morte do irmão, que foi decapitado.

Henrique VIII deve ter-se encontrado no outro mundo com as suas seis mulheres, que, se lá se julga melhor, como eu creio, do que cá em baixo, hão de tel-o visto condemnado pela justiça eterna.

As atrocidades sanguinarias que commettêra contra os catholicos e a bagagem dos seus vicios far-lhe-iam decerto grande carga.

Elle mesmo, ao expirar, se accusou de não ter poupado algum homem na sua colera, nem alguma mulher nos seus desejos.

Mas, como quer que fosse, a igreja catholica, inspirando-se na misericordia christã, deve perdoar-lhe, tanto mais que Henrique VIII, que depois de velho não cria no Purgatorio, deixou muitas missas com medo d'elle.

Eu até me sentia disposto a rezar um Padre-Nosso por alma de Henrique VIII, se me não lembrasse de que alfim deve já lá em cima ter recebido alguma compensação de haver sido casado seis vezes, quasi sempre com maior peso do que o que canonicamente era justo.