IV
Rei e Pastor
«O rei James V, que morreu de trinta e tres annos em 13 de dezembro de 1542, era um joven rei, tunante e maganão, que se disfarçava em trajos de mendigo, de adello, ou que taes, para andar correndo baixas aventuras pelas aldeias ou pelos bairros escusos das cidades.»
Garrett.
Ao pé do freixo umbroso e da sonora fonte,
Que dão sombra e frescura ás boninas do monte,
Glycera, a moça loira, Amyntas, o pastor,
Juravam-se um ao outro o seu eterno amor.
Sobre a relva assentada, a formosa Glycera
Tecia de jasmins e verdes folhas de hera
Grinaldas e festões, cantando uma canção
Em que menos cantava a voz que o coração.
Assim tambem se eleva o cantico suave
De uma ave que estremece á espera de outra ave
Nas alcôvas em flôr que tece o mez de abril.
Não tardou que chegasse, á volta do redil,
Amyntas, o pastor, já recolhido o gado.
—«Grinaldas! Para que?»
—«Para o nosso noivado»
Córando de pudor, Glycera respondeu,
E emquanto elle a fitava, ella os olhos desceu.
—«Disseste muito bem, minha amada Glycera,
Vamos ambos colhêr jasmins e folhas de hera.
Sim!... Tu não serás de outro? É minha a tua mão?
De mais ninguem será?»
—«Eu te juro que não.»
—«Agora sou feliz! Vou dar-te, porque és minha,
Aquella ovelha branca, ess'outra malhadinha
Que valem um milhão! Iguaes inda não vi!
Mas, porque tu és minha, eu dou-t'as para ti.
Olha, que lindas são! Valem um bom rebanho
Na côr, na timidez, no pello e no tamanho!
Só teu, de mais ninguem, é o fresco laranjal,
Que dá tão dôce sombra ao meu... ao teu casal.
Dou-te do meu redil os dois novilhos bravos,
E as colmêas que tenho, e todo o mel dos favos,
As arcas, o bragal, peculio do pastor,
E, acima d'isto tudo, o meu eterno amor.»
E, sorrindo enlevada, a formosa Glycera
Alternava jasmins com verdes folhas de hera.
Era o rei James V um joven rei feliz,
Que de lendas de amor encheu todo o paiz
Da sua bella Escocia, alcantilada e fria,
Onde o seu coração a neve derretia.
Soam trompas de caça, e em célere tropel
Passa o rei cavalgando o seu veloz corcel
Entre nuvens de pó; e seguem-no monteiros
E pagens de libré e mastins e rafeiros.
Do freixo á verde sombra, assentada no chão,
Glycera, de medrosa, ouvia o coração.
—«Bons dias, pegureira.»
—«Os mesmos vos desejo.»
Disse-lhe ella córando ou com medo ou com pejo.
—«Que fazes por aqui? Esperas teu pastor
N'este ermo pinheiral?!»
—«Não espero, senhor.»
—«Como te chamas tu?»
—«O meu nome é Glycera.»
—«Que linda e que gentil! Tu és da primavera
A mais formosa irmã!...»
—«Mercê que me fazeis.»
—«Se alguem te rouba aqui?»
—«Sou pobre, bem sabeis.
Ninguem rouba á pobreza. Ella de si é escassa.»
—«Excepto quando é o rei que n'estes sitios passa...»
—«Piedade!»
E o louco rei, sem resposta volver,
Aos monteiros bradou:—«Prendei-me essa mulher,
Conduza-m'a um de vós sentada na garupa
Do cavallo. A galope! Ávante, corceis! Upa!»
E tudo se perdeu n'um turbilhão de pó
Ao longo do caminho. O pinhal ficou só.
Em noites de luar, noites de primavera,
Ouvia-se dizer:—«Onde estás tu, Glycera?»
N'esse ermo pinheiral, e um longo choro após.
Finda a verde estação, calou-se a triste voz,
E nunca se ouviu mais sahir d'entre os pinheiros.
Um dia, por acaso, um rancho de vaqueiros
Passou alli, e viu estendido no chão
Amyntas, o pastor. Chamaram-no em vão,
Que elle não respondeu. Era gelado, frio.
Dizem que succumbiu ao vêr chegar o estio
Sem Glycera voltar. E tinha a luz do sol
Por cirio funeral, e folhas por lençol.
Mas o rei James V, em seu palacio bello,
Ao pé do lago azul, que espelhava o castello,
Estranhava a Glycera esse tão louco amor,
Que nos braços de um rei pranteava um pastor.