V

Mãi e Filhos


I

A Mãi


Domingo, 23 de dezembro de 1888, á hora em que um bello sol de inverno doirava pallidamente o céo de Lisboa, convidando a despreoccupada população a fazer o trottoir da Avenida, achava-me eu na igreja do extincto convento de Agostinhas Descalças, no sitio do Grillo, em frente do caixão onde têm repousado esquecidos os restos mortaes de D. Luiza de Gusmão, rainha de Portugal.

Não vão suppôr que me estou dando ares de poeta funebre da realeza ou de philosopho merencorio dado a scismar no problema da morte: to be or not to be. Nada d'isso. Sou apenas um dilettante de estudos historicos; tenho por vezes o mau gosto de preferir os dramas do passado aos do presente, e as epopêas da historia ás partituras de S. Carlos.

Sabendo que se tratava de remover para S. Vicente de Fóra os restos mortaes da rainha D. Luiza de Gusmão, e que o feretro ia ser aberto para se verificar se havia sido violado como constava ás justiças da Boa Hora, não quiz perder a occasião de examinar por meus proprios olhos os ultimos despojos d'essa notavel dama do seculo XVII, tão energica junto de seu marido, tão resoluta na fragilidade do seu sexo, mas tão sincera na firmeza da sua justa ambição.

Fui.

Antes que o acto judicial principiasse, aproveitei o tempo visitando o convento, a que D. Luiza de Gusmão se recolheu a 17 de março de 1663, e onde tres annos depois fallecêra.

É vasto o convento, sem que todavia nada tenha de monumental. As Agostinhas Descalças não ostentavam pompas monasticas. Ha no interior do convento todo o aspecto de uma clausura severa: longos corredores sombrios, cellas estreitas e mal allumiadas, tendo sobre a porta e o fundo da parede alguma legenda biblica, alguma inscripção religiosa, por exemplo—Da cella ao céo—Não póde o servo servir a dois senhores.

A abundancia de altares—pois vimos n'um a designação de 193—denuncía que o culto era alli fervoroso, e que não se podia dar um passo no interior do convento sem ter diante dos olhos a imagem de um santo, de uma santa ou do Redemptor.

Mas os nichos dos altares estão vazios, as imagens e as reliquias desappareceram; convento e igreja foram brutalmente despojados; diz-se que até o sino, apesar do campanario ser alto, desapparecêra!

A rainha D. Luiza de Gusmão, afastada duramente da côrte pelos conselheiros de seu filho D. Affonso VI, acabou por decidir-se a entrar n'aquelle convento, mas nada ha alli que denuncie grandeza de aposentos reaes. Pareceu-nos que esses aposentos seriam uns que ficam voltados ao Tejo—por serem um pouco melhores do que os outros—constando de uma sala com chaminé e uma pequena cella, contigua á sala, da qual recebe luz por uma janella interior.

D. Luiza de Gusmão vivêra pois modestamente entre as Agostinhas Descalças.

Poucos conventos, porém, teriam uma claustra mais vasta do que o do Grillo; todo o pavimento terreo, que é enorme, serve hoje de deposito de artilheria, está cheio de peças de campanha.

Algumas freiras, como as inscripçoes tumulares indicam, jazem sob as carretas.

Havia no Grillo só um côro, pequeno e modesto.

Mas, em compensação, a igreja, comquanto não seja grande, é boa, coberta de azulejos de valor e de quadros, hoje completamente estragados pela humidade. A teia do cruzeiro é magnifica, de ébano e mosaico florentino, com as armas de Portugal e da casa de Medina-Sidonia.

Era dentro da teia que estava o caixão da rainha, coberto com um rico panno, deteriorado pelo tempo, e encimado pela corôa real, sobre almofada de estofo igual ao do panno.

Levantada esta cobertura com as formalidades judiciaes que o acto exigia, reconheceu-se que o caixão, de pau Brazil, excellentemente conservado, tinha sido violado nas fechaduras lateraes, pelo menos em duas que estavam encravadas com pregos de arame.

Aberta a tampa do caixão, forrada interiormente de sêda branca lavrada, apenas emergia de uma espessa camada de cal a caveira, a cuja fronte havia adherido a renda preta do véo, dando a impressão, á primeira vista, de que uns restos de cabello a povoavam ainda. A illusão era completa.

A cal estava remexida junto do hombro direito da rainha, e na altura da mão esquerda.

Verificou-se que o craneo se achava desarticulado da columna vertebral.

A cal afogava completamente as vestes do cadaver, e só por uma estreita orla, que ficára a descoberto na extremidade inferior do caixão, se pôde conhecer que o vestido era de seda côr de castanha.

Da energica e virtuosa rainha de outro tempo restava apenas aquillo!

A renda do véo dava a illusão, como já disse, de que a testa da rainha era de uma estreiteza simiana, quando em verdade D. Luiza de Gusmão, como se sabe pelo retrato existente na Bibliotheca Nacional de Lisboa, reproduzido por Benevides nas Rainhas de Portugal, fôra uma bonita mulher, de feições muito regulares: testa espaçosa, olhos grandes e pretos, bocca pequena, rosto redondo.

O que nós hoje podêmos apenas estranhar n'esse retrato são as exaggeradas dimensões dos bandeaux, que eram moda n'esse tempo, sendo costume adornal-os com marabuths e estrellas de pedras preciosas.

D. Luiza de Gusmão não morrêra de idade que a velhice a tivesse podido deformar: tinha apenas 53 annos. E a proposito citarei um documento, por ser pouco conhecido entre nós: é a certidão de idade, que encontrei, segundo os meus apontamentos, na Huelva Illustrada, por D. Juan Agustin de Mora (Sevilha, 1762):

«Que en un libro de baptismos, que comenzó año 1602, y acabó en 1626, que no está foliado, como á la mitad de sus hojas está una partida, que á la letra, es como se segue:

«En la villa de Huelva, jueves veinte y quatro dias del mes de octubre, año de Nuestro Salvador Jesu Christo de mil y seiscientos y trece años, yo el Lic. Diego Muniz de Leon, Visitador General del Arzobispado de Sevilla, baptizé á la señora Doña Luiza Francisca, hija del señor D. Manoel Alonso Perez de Guzman el Bueno, y de la señora Doña Juana de Sandoval, condes de Niebla: fué su padrinho el señor D. Gaspar Alonso Peres de Guzman el Bueno, Marqués de Casaza, y le adverti la cognacion espiritual, y lo firmé: fecho ut supra.—Lic. Diego Muniz de Leon.»

Por este documento fica rectificado o nome do pai de D. Luiza de Gusmão, que o snr. Benevides diz chamar-se João Manuel Peres de Gusmão.

Os restos mortaes d'aquella mulher illustre, abstrahindo mesmo da sua qualidade de rainha, inspiravam respeito.

A sua vida não fôra uma inutilidade grandiosa. Não. Junto de seu marido, D. Luiza de Gusmão fôra uma conselheira cheia de coragem e de energia, indispensavel para completar o caracter irresoluto e medroso do duque de Bragança. Na regencia do reino, todas as côrtes estrangeiras faziam justiça ao seu animo forte, ao seu espirito esclarecido. Só como mãi fôra infeliz. Viu morrer o primogenito prematuramente, e os outros dois filhos não rodearam de carinhos filiaes os ultimos momentos da rainha, que morreu ao abandono da sua propria familia!

Nas Monstruosidades do tempo e da fortuna e na Catastrophe de Portugal vem transcriptas as cartas em que D. Luiza de Gusmão chamava do seu leito de agonia o rei Affonso VI e o principe D. Pedro para os abençoar.

Sabe-se que a Catastrophe é um livro parcial contra o rei, mas, descontada a paixão politica do author, o principe D. Pedro não se mostra muito superior ao rei em extremos de amor filial.

A historia fornece-nos sobejas provas de que D. Pedro II não sabia respeitar melhor do que seu irmão os vinculos de familia.

O bispo do Porto D. Fernando Corrêa de Lacerda diz na Catastrophe que o rei e o infante acompanharam o cadaver da mãi até ao coche funebre:

«Na segunda feira se dispozeram os funeraes com religiosa, e decente pompa, e á terça á noite depois d'el-rei e S. A. lançarem agua benta ao cadaver, e o acompanharem á liteira, foi levado á igreja do mosteiro do Sacramento de religiosos Carmelitas Descalços, que havia edificado, d'onde se sepultou por deposito, até se acabar a igreja das religiosas Descalças da recolecção de Santo Agostinho, de que era fundadora, na qual tinha mandado escolher a ultima sepultura.»

Ora o desconhecido author da Anti-catastrophe (livro de que Camillo Castello Branco diz com razão: tem relanços que inspiram crença; mas lá vem outros que a desluzem) não menciona o nome do principe, como assistente á agonia da mãi, e a respeito do rei descreve-o gastando tres dias de Salvaterra a Lisboa, sem pressa nenhuma de chegar, porque mandava fazer paragens para ouvir os musicos; e conclue por dizer: «Foi para palacio, porque, nem ainda morta a quiz vêr.»

O auctor das Monstruosidades do tempo e da fortuna, qualquer que seja, diz que nenhum dos filhos lhe assistiu, supposto chegassem uma hora antes da rainha expirar, por estorvados de quem sabia que os conselhos d'aquella hora, como mais desenganados, são fielmente cridos e ficam na memoria mais estampados.

A verdade deve estar no meio termo: os dois filhos importaram-se pouco com a morte da rainha, quer lhe deitassem agua benta quer não.

Nós é que lh'a não podemos deitar a elles para absolvel-os de tão grave falta.

Pois esta illustre princeza que tanto luctára toda a sua vida, com o marido, com o cunhado D. Duarte[1], com Castella, com o irmão e com os filhos, alli estava reduzida aos seus ultimos despojos, tocados pela mão de vandalos que remexeram na cal para encontrar decerto alguma joia com que a rainha tivesse sido amortalhada. O marido, bem menos sympathico do que ella, está no pantheon real de S. Vicente, mas a benemerita Medina-Sidonia, que, ainda descontado o natural interesse egoista de antes querer ser rainha uma hora do que duqueza toda a vida, foi uma collaboradora importante na restauração da monarchia nacional, tem jazido no esquecimento e no abandono, tão sem repouso, que o seu cadaver vai agora fazer a terceira jornada, porventura definitiva[2].


II
A faca do marquez de Cascaes

O marquez de Cascaes é que fallou claro a el-rei D. Affonso VI.

Entrou, com uma faca na mão, na camara real, em occasião que o monarcha dormia profundamente.

Sacudiu-o, accordou-o, e pediu licença para dizer uma grande verdade.

D. Affonso VI, se fosse um rei a valer, teria mandado cortar immediatamente a cabeça ao ousado fidalgo que o ia accordar no melhor do seu somno, não para lhe levar um copinho de leite quente, mas para lhe dizer uma grande verdade muito fria!

Era coisa que um rei podesse soffrer! Nem um vassallo a soffreria de boa mente, quanto mais um rei! Imaginemo-nos accordados por um crédor, violentamente, para nos dizer que lhe devemos ainda o capital e os juros. É lá coisa que possa tolerar-se!

Mas D. Affonso VI, recebendo a faca que o fidalgo trazia na mão, limitou-se a dizer:

—Lá vem o marquez com alguma das suas!

Ora se tudo isto não basta para caracterisar um rei! Accordam-no de repente, e não se zanga! mettem-lhe uma faca na mão, e fica com ella! pedem-lhe licença, ainda por cima, para dizer-lhe uma grande verdade, e o rei responde bonacheironamente: «Pois diga lá!...»

É preciso não ter... alma!

Vai o marquez, e diz:

—Senhor, vós nascestes tolo.

E o rei continúa ouvindo, pacientemente, de faca na mão!

Podia o marquez ter-se ficado por aqui, que já não era pouco nem mau, mas carregou na tecla, visto ter achado brando o teclado.

—Sois doente, e cheio de enfermidades, accrescentou.

E o rei, sempre de faca na mão, pediu mais.

Então o marquez queimou o seu ultimo cartucho:

—Nem sois para casado.

Era o mais que se podia dizer! Como havia de servir para rei um homem que não servia para marido?! Rua com elle: era a traducção.

E o rei, diz o author das Monstruosidades do tempo e da fortuna, concordou com o marquez de Cascaes!

N'esse mesmo dia, 23 de novembro de 1667, D. Affonso VI assignou um termo de desistencia em favor de seu irmão.

Eis-aqui a synthese de um reinado.

A faca do marquez de Cascaes ha de ficar eternamente na historia portugueza como symbolo de boa administração: corte-se tudo o que não presta.

Fizesse-se assim sempre, e em tudo, e as coisas iriam melhor...

Sabe a gente estes e outros factos, que testemunhas contemporaneas deixaram memorados; sem embargo , D. Affonso VI tem uma tradição galante, de aventuras amorosas... armadas no ar como os castellos de Hespanha.

Eu sei que me corre o dever de ser mais discreto do que a historia. Sei isso. Não irei revolver as monstruosidades escandalosas da nullidade do casamento de D. Affonso VI. Nada d'isso. Procurarei apenas, na vida do successor de D. João IV, o que possa haver de contavel em materia de galanteria com mulheres.

Supponham que nasceu n'um monturo uma flôr. Tem-se visto. Eu arrancarei delicadamente a flôr, sem tocar no monturo.

O snr. Andrade Corvo, n'um bello romance historico que eu anteponho, com muita proeminencia, a varios livros do mesmo genero, á Mocidade de D. João v por exemplo, conta as proezas galantes que D. Affonso VI fizera por amor da Calcanhares, uma hespanhola.

Agora, que estão publicadas as Monstruosidades do tempo e da fortuna, sabe-se que o facto é inteiramente verdadeiro, porquanto o author d'este livro, seja frei Alexandre da Paixão ou não seja, escreve com toda a sua authoridade de contemporaneo:

«Acabado o dia soube a rainha que em uma janella do Paço estivera vendo a festa uma mulher conhecida tanto pelo nome, como pela vida, celebrada pela alcunha de Calcanhares, sustentada para feitiço de sua magestade.»

A este simples periodo de um manuscripto do seculo XVII foi o snr. Corvo buscar habilmente todos os magnificos episodios a que, no seu romance, a Calcanhares serve de pretexto.

Muita gente, sempre de pé atraz com D. Affonso VI, perguntava, depois de ter lido Um anno na côrte: Mas esta Calcanhares existiu ou não existiu?

Ahi fica dada a resposta.

O sr. Corvo foi até excessivamente meticuloso como romancista historico. Andou procurando nos codices do seculo XVII, escrupulosamente, certas minucias, que então não estavam ainda divulgadas, como hoje, pela publicação das Monstruosidades do tempo e da fortuna.

Assim, por exemplo, o rei, referindo-se no romance do snr. Corvo á rainha D. Maria de Saboya-Nemours, trata-a por Brichota, com sem-ceremonia contraria á etiqueta.

Brichota era synonymo de estrangeira.

Pois bem. Lá diz o author do famoso codice: «Respondeu-lhe el-rei que lhe não desse nada da Brichota, que fosse, e estivesse, e se ella fallasse...» O resto não digo eu ainda que me queimem, mas disse-o el-rei D. Affonso VI.

Este monarcha não tinha papas na lingua, e por isso não estranhou a descompostura, núa e crúa, que lhe pregou o marquez de Cascaes.

Eu possuo um livro precioso como subsidio para a historia do reinado de Affonso VI. Intitula-se Vita di Maria Francesca di Savoia-Nemours, regina di Portogallo, per il barone Gaudenzio Claretta. O meu exemplar, comprado no espolio do visconde de Borges de Castro, é ricamente encadernado, e tem uma dedicatoria do proprio author.

Pois ahi, a pag. 100, lê-se esta passagem, referente ao rei:

«... nan era privo di un tal qual spirito, quantumque non sapesse nè leggere, nè scrivere ed usasse basse espressioni, come, per esempio: vá bugiar... etc.»

Fiquemos por aqui.

Os grandes amores romanticos de D. Affonso VI tiveram por palco o convento de Odivellas.

Calumnia-se D. João V quando se diz que elle desacreditou Odivellas. Aquillo já vinha de traz.

D. Fernando Corrêa de Lacerda, bispo do Porto, conta que D. Affonso VI «se deu ao galanteio das religiosas, frequentando diversos mosteiros», e que «sem reparar no decôro que se devia aos lugares sagrados, fazia abrir as portas das igrejas, sendo alta noite», «succedendo muitas vezes que quando em outros conventos se levantavam os religiosos para louvar a Deus, o estava el-rei offendendo nas grades das suas igrejas.»

Umas d'estas freiras era D. Anna Angelica de Moura, conhecida em Odivellas pela alcunha galante de Flôr do Sol.

«Tomou el-rei amizade illicita com D. Anna de Moura, freira de Odivellas; fazia-lhe continuas assistencias com grande indecencia, e geral reprovação de toda a côrte. O dia em que D. Anna de Moura fazia annos, foi el-rei tourear no pateo de Odivellas: deu uma grande queda, de que esteve sangrado, fazendo-lhe D. Anna de Moura a fineza de se sangrar tambem, lhe mandou um grande presente, e quando a tornou a vêr, lhe disse que desejava fazel-a rainha de Portugal.» (Vida d'elrei D. Affonso vi, publicada por Camillo Castello Branco, e attribuida ao duque de Cadaval).

Pensa o leitor que esta dupla sangria foi uma galanteria original? Pois está enganado.

No auto do Mouro encantado, do quinhentista Antonio Prestes, vem citado o exemplo que a freira de Odivellas imitou:

... Foi como o meu,
que sou quem o arremendou
na guerra que a Pirro deu;
sendo o vencimento seu
uma mulher captivou
da qual vindo-se a vencer
por formosa, elle a amava,
cousa brava;
chegou ella a adoecer,
e se ella se sangrava
sangrava-se elle, que fava
de amor póde mais ser?

Decididamente: não ha nada novo n'este mundo.

O caso está em saber a gente onde os outros foram fazer mão baixa.

Ora havia em Odivellas outra freira, que D. Affonso VI deixou para fazer a côrte a D. Anna de Moura.

Mulher de talento mas com cabellinho na venta, est'outra freira, que se chamava D. Feliciana de Milão!

Dos seus desbragamentos de linguagem dão ampla noticia Perim no Theatro heroino e Suppico na Collecção de apothegmas.

As duas freiras rivaes descompozeram-se em verso... como se valesse a pena!

D. Feliciana desembestou com o rei:

Meu monarcha, o vosso amor
e vosso trato amoroso
tanto tem de primoroso
quanto de pai e senhor;
mas, ainda assim, causa dôr
e não com pouca rasão
vêr que esta vossa affeição
muito tem que a desdoura,
pois adorais uma Moura,
sendo vós um rei christão!

A Flôr do Sol respondeu:

Com rara desigualdade
vós murchaes, ella florece:
Anna deidade parece,
Feliciana de idade.

Deixai pois essa vaidade
porque a todos nos enfada,
pois que sendo só chamada
ser escolhida queiraes,
maiormente quando estaes
affeita a ser engeitada.

Que tolas! tudo isto por que?! Façam favor de lembrar-se da historia da faca!

O calembour de D. Anna de Moura era, como hoje dizemos, uma piada á outra, que foi uma grande calemburista do seculo XVII.

Exemplo: D. Anna de Moura tinha um irmão, que se chamava Gil Vaz Lobo.

Um dia as duas freiras travaram outra das suas muitas pegadilhas. D. Feliciana disse á rival:

—Se vos não aquietaes, dou-vos com vosso irmão pela cara (Gilvaz).

O rei pediu a alguem que lhe fizesse versos desconsoladores para D. Feliciana, e mandou-lh'os. Vai ella, agastada, respondeu:

Mais que louco atrevimento
é disparate cantado
avaliar por cuidado
o que é só divertimento.

Tome lá, real senhor! Não foi só o marquez de Cascaes que lhe disse a mesma coisa.

Sempre a faca!


III


A filha de D. Luiza de Gusmão

Em novembro de 1887, publicava um jornal de Lisboa a seguinte noticia, que transcrevo textualmente:

«El-rei o snr. D. Luiz acaba de receber um presente, que lhe devia ter sido em extremo agradavel.

«Existia em Londres um magnifico retrato da princeza D. Catharina de Bragança, rainha de Inglaterra, e mulher de Carlos II, pintado por um dos melhores pintores inglezes d'esse tempo. Esse retrato, depois da queda dos Stuarts, soffrêra fortunas varias, até que foi cahir ha pouco tempo, por venda em leilão, nas mãos do coronel americano Mac-Murdo, concessionario primitivo do caminho de ferro de Lourenço Marques.

«O snr. Mac-Murdo entendeu que devia presentear com essa tela historica el-rei de Portugal, e pediu-lhe licença para lh'o offerecer. Hontem o snr. Levis, ministro dos Estados-Unidos em Lisboa, devia ter entregado na Ajuda a el-rei D. Luiz a preciosa dadiva do seu compatriota.

«Dizem que este retrato, magnifico e muito bem conservado, desmente a lenda da fealdade da mulher de Carlos II, lenda que se fazia correr talvez para desculpar as numerosas infidelidades conjugaes do amante da duqueza de Portsmouth. A rainha D. Catharina, tal como o retrato a apresenta, sem ser uma formosura, é todavia uma gentil senhora, sobretudo com uma grande expressão de bondade.»

Sem ser uma formosura, diz o texto da noticia, não era comtudo D. Catharina de Bragança, rainha de Inglaterra, uma dama despicienda, segundo o retrato feito por um pintor inglez contemporaneo.

É certo que em torno d'esta illustre dama da casa real portugueza, para quem o throno britannico fôra pouco menos de um calvario, se formára uma lenda de fealdade, que os historiadores inglezes confirmam.

Assim, David Hume, o author da historia dos Stuarts, pinta-nos D. Catharina de Bragança como princeza de uma virtude sem macula, a qual, todavia, não pôde nunca fazer-se amar do rei pelas graças da sua pessoa nem do seu espirito.

Dizia-se, até á apparição do retrato offerecido pelo snr. Mac-Murdo, que Portugal fôra obrigado a dotar a princeza de Bragança com Tanger e Bombaim como compensação dos dois defeitos que Carlos II notava na sua noiva: ser feia e ser catholica.

O que é certo é que o casamento custou a realisar-se, e que Portugal, para vêr no throno inglez a filha de D. João IV, teve que desapossar-se, effectivamente, de Tanger, que não aproveitou muito aos inglezes, e de Bombaim, de que elles vieram a fazer uma das primeiras cidades do mundo.

A infeliz princeza não tirou, porém, d'esse casamento as vantagens que se esperavam. Viveu humilhada pelas leviandades amorosas de Carlos II, preterida pelas amantes do rei, especialmente pela condessa de Castlemaine, e, guerreada pelos protestantes, chegou a ser accusada de querer envenenar o marido.

Tudo isso se sabe, e seria fastidioso recordar n'um artigo fugitivo os lances dramaticos da vida atribulada de D. Catharina de Bragança em Inglaterra.

O meu fito é outro.

Eu quero principalmente fazer notar, como curiosidade bibliographica, alguns opusculos, em prosa e verso, a que deu lugar o casamento da infanta portugueza com o rei inglez.

Principiarei por fallar de um escriptor que se desenfastiava dos seus trabalhos nobiliarchicos cultivando as musas.

Refiro-me a Antonio de Villasboas e Sampaio, que escreveu: Saudades do Tejo e de Lisboa na ausencia da Senhora Catharina, rainha da Gran-Bretanha.

Villasboas, na sua qualidade de poeta, tomou a liberdade, que n'essa qualidade lhe era permittida, de celebrar D. Catharina como um sol de belleza, uma maravilha de formosura.

Disse uma vez um notavel homem politico do nosso paiz que todas as princezas eram formosas. O poeta Villasboas justifica plenamente esta espirituosa affirmação. Ninguem dissera nunca que D. Catharina fosse uma dama formosa, nem mesmo o proprio retrato que apenas põe em evidencia uma grande expressão de bondade. No Peveril of the Peak, de Walter Scott, a rainha, que atravessa os ultimos capitulos d'este romance, resalta com essa mesma expressão de bondade, annuveada de melancholia. Mas Antonio de Villasboas não se prendeu com estas pequenas teias de aranha, e saudou em D. Catharina de Bragança a oitava maravilha do mundo, quanto a belleza.

Oiçamol-o:

Dita será que vejam lá no Norte,
D'onde o mal até agora ha procedido,
O bem melhor da lusitana côrte,
A bellesa maior, que hão conhecido.

Esta hyperbole é um pouco compromettedora para as damas portuguezas, visto que D. Catharina, não sendo bonita, era inculcada pelo poeta como o bem melhor da lusitana côrte, a bellesa maior!... O poeta offendia d'est'arte os creditos das damas portuguezas, que sempre tiveram fama de bellas. Aqui ha prejuizo de terceiro.

Mas os poetas, se lhes dá para serem lisongeiros, teem a vertigem da hyperbole. Villasboas continúa:

De dia, se a não via, me alegrava
Vêr o sol, que algum tanto a parecia,
Não em tudo, que a elle lhe faltava
Da bella infanta a graça e bisarria:

De noite co'as estrellas conversava,
E de todo o meu siso lhe dizia:
Tendes estrellas, porventura, inveja
De que a infanta mais formosa seja?

As estrellas, provavelmente, nunca responderam nada.

Outro poeta, Antonio da Fonseca Soares, que veio a chamar-se na religião frei Antonio das Chagas, já tinha dito, saudando o anniversario natalicio da princeza:

Oy bellissima infanta
Del lusitano sol alba nascistes,
Y aurora apenas de sus rayos fuistes
Quando te jusgaron del futuro trono
Luz feliz, bello annuncio, ilustre abono.

Os poetas são como as Marias: vão uns com os outros.

Por occasião do casamento houve festas pomposas em Lisboa, e são hoje raros os opusculos que as commemoram.

Por exemplo:

Festas reaes na côrte de Lisboa ao feliz casamento dos reis da Grã-Bretanha Carlos e Catharina em os touros que se correram no Terreiro do Paço em outubro de 1661. Dedicadas a Europa Princeza da Phenicia e escritas por Izandro, Aonio e Luzindo, toureiros de forcado. Em Lisboa, 1661.

Epithalamio aos augustos desposorios de Carlos II e a Senhora D. Catharina, Reys de Inglaterra, por Antonio Raposo, natural de Aviz. Em verso heroico.

Como se vê, os poetas não tiveram mãos a medir por occasião d'este casamento realengo.

A viagem da noiva tambem foi largamente descripta:

Relaçam dedicada á serenissima senhora rainha da Gran-Bretanha da jornada que fez de Lixboa athé Por-Tsmouth pello padre Sebastião da Fonseca, mestre, cappellão, e presidente em o hospital real de Todos os Santos na Cidade de Lixboa. Londres, 1662.

Amostra:

Serenissima senhora
a quem todo o mundo acclama
por bella Estrella do Norte
lusido Sol da Bretanha

Com lisonja,—mas sem pontuação.

Relaçam dedicada ás magestades de Carlos-Catharina reys da Grande Bretanha da jornada que fizerão de Portsmouth athé Antoncourt e entrada de Londres pelo P. Sabastião da Fonseca, etc. Londres, 1662.

É o mesmo padre, sempre com pello e sempre cappellão—com dobrada.

Relaçam das festas de palacio, e grandezas de Londres, dedicada á magestade da serenissima rainha de Gran-Bretanha. Londres, 1663.

É ainda padre Sebastião o author.

Dos vinte e tres annos que D. Catharina de Bragança viveu como rainha em Inglaterra, não consta deixassem poetas memoria alguma metrificada.

Mas conhecemos a Historia amorosa da côrte d'Inglaterra, pelo cavalheiro de Grammont, que chegou justamente a Inglaterra quando D. Catharina lá chegava tambem.

Depois de descrever a pessoa amavel do rei, diz o cavalheiro de Grammont com referencia á sua côrte:

«Quanto a bellezas, não se podia dar um passo sem as vêr. As de maior reputação eram as d'esta mesma condessa de Castelmaine, depois duqueza de Cléveland; madame de Chesterfield, madame de Shrewsbury, mesdames Roberts, madame Middleton, mesdemoiselles Brook e cem outras da mesma formosura que brilhavam na côrte, cujo principal ornamento eram, porém, mademoiselle de Hamilton e mademoiselle Stewart.

«A nova rainha em nada augmentou o brilho do palacio, nem pela sua presença, nem pela sua comitiva. O sequito da rainha compunha-se da condessa de Panetra, na qualidade de açafata; de seis monstros, que se diziam damas de honor, e de uma aia, outro monstro, que se inculcava governanta d'estas raras beldades.

«Os homens eram: Francisco de Mello, irmão da Panetra; um certo Taurauvédez, que se appellidava D. Pedro Francisco Correo da Silva, feito ao pintar, mas só elle mais tolo do que todos os portuguezes juntos. Era mais altivo do seu nome que da sua boa figura; ora o duque de Buckingham, ainda mais tolo do que elle, e mais zombeteiro, atrambolhou-lhe a alcunha de Pierre du Bois. O pobre Correo da Silva indignou-se a tal ponto que, depois de muitas queixas inuteis e algumas ameaças sem effeito, teve que deixar a Inglaterra, ao passo que o feliz duque de Buckingham herdava d'elle uma nympha portugueza, que lhe tinha roubado, bem como dois dos seus appellidos, a qual nympha era ainda mais horrorosa que as damas da rainha. Completavam o sequito seis capellães, quatro padeiros, um perfumista judeu, e um certo official, apparentemente sem funcção, que se denominava o barbeiro da infanta (sic). Catharina de Bragança não se preoccupou de brilhar na côrte encantadora onde vinha ser rainha, se bem que mais tarde conseguisse evidenciar-se algum tanto. O cavalheiro de Grammont, desde longo tempo conhecido da familia real e da maior parte dos homens da côrte, não teve mais do que fazer conhecimento com as damas. Para isso não lhe era preciso interprete. Ellas fallavam o bastante para explicar-se, e entendiam o francez preciso para comprehenderem o que se lhes dizia.

«A côrte era sempre numerosa junto da rainha; junto da princeza era menor, comquanto fosse mais escolhida.»

Esta narração carece de rectificações.

A condessa de Panetra (por pouco que a não faz condessa de Penetra) era a condessa de Penalva, irmã de D. Francisco de Mello que fôra agraciado com os titulos de conde da Ponte e marquez de Sande.

Esta senhora morreu solteira em Inglaterra.

Francisco Corrêa da Silva era o nome do outro fidalgo portuguez roubado pelo duque inglez; Pedro é que elle se não chamava, nem tão pouco Correo.

O cavalheiro de Grammont é apenas citado a titulo de curiosidade historica, porque, de resto, limita-se a estropear o nome das pessoas e a verdade dos factos. Acha os portuguezes tolos e as portuguezas monstros. Em compensação, falla sempre de si com encarecimento.

Morre Carlos II, depois de ter pedido perdão a sua esposa de todos os desgostos que lhe fizera soffrer, regressa D. Catharina a Portugal, e logo se reata a série, vinte e tres annos interrompida, dos panegyricos.

Temos pois:

Oraçoens gratulatorias na feliz vinda da muita alta e muito poderosa rainha da Gram Bretanha, compostas e recitadas na igreja da Divina Providencia á nobreza de Portugal nas trez ultimas tardes do mez de janeiro de 1693 pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa, 1693.

Seis annos depois, apparecia um folheto em latim, Agilulphus, impresso em Evora, cujo argumento é o seguinte: Agilulfo, rei da Lombardia, idólatra e perseguidor dos christãos, feito christão pelas orações e industria de sua esposa, a rainha Teodolinda.

Este opusculo allude ao passamento de Carlos II, que, como conta Macaulay na sua History of England, morreu reconciliado com a igreja catholica, graças á piedosa intervenção da rainha e do conde de Castel-Melhor.

Fallece em Lisboa D. Catharina de Bragança, em 31 de dezembro de 1705, e os gemidos saudosos da poesia palaciana não se fazem esperar.

Gemidos saudosos entre a illustre e luctuosa côrte de Lisboa, e o poderoso e sentido reino de Inglaterra: aquella lamentando defunta a sua venerada Infante, e esta suspirando morta a sua melhor rainha a serenissima senhora D. Catharina, por Pedro de Azevedo Tojal. Lisboa, 1706.

Pobre rainha! como se lhe não bastasse soffrer um marido leviano, toda a sua vida teve que aturar os poetas lisongeiros!

  1. Na Historia do Infante D. Luiz, recentemente publicada pelo snr. José Ramos Coelho (1889) vem indicadas, de pag. 148 a 150, as razões que motivaram a discordia entre D. Luiza de Gusmão e D. Duarte de Bragança.
  2. O cadaver da rainha foi em 1666 transferido da igreja do Grillo para a de Corpus Christi; em 1691 foi mudado, dentro d'esta igreja, de um lugar para outro; em 1713 trasladaram-no da igreja de Corpus Christi para a do Grillo. Duas jornadas e tres mudanças. No principio d'este anno (1889) fez a terceira Jornada, do Grillo para S. Vicente.