XIII
Na morte do Kronprinz
«Apesar dos desmentidos officiosos, a saude da imperatriz da Austria de fórma alguma tem melhorado.
«As crises terriveis a que está sujeita inspiram graves inquietações.
«Segundo o diagnostico já estabelecido, a imperatriz está atacada de «loucura lucida» caracterisada por uma confusão enorme de idéas.
«Está constantemente balouçando uma almofada e pergunta ás pessoas que a rodeiam se o novo Kronprinz é bonito. Depois cae em grande prostração, parecendo de tempos a tempos melhorar para propôr um novo casamento ao imperador.»Ha nas ultimas linhas d'esta noticia o que quer que seja que faz passar vagamente pelo nosso espirito essa flebil melodia de Meyerbeer, chamada a valsa da sombra, da Dinorah.
A bella camponeza de Ploermel, julgando que Hoel a abandonára, perde a razão e, faltando-lhe a sua cabrinha branca, unica companhia que lhe restava no mundo, procura-a por entre as moitas floridas até que, suppondo havel-a encontrado, faz menção de acalental-a nos braços, chorando e cantando, n'uma loucura ternissima, emquanto o luar cae do ceu n'uma tristeza saudosa.
Assim a imperatriz da Austria, balouçando a almofada em que imagina vêr adormecido o Kronprinz, que uma catastrophe fulminára, parece cantar, no silencio concentrado d'uma loucura melancolica, a ombra leggiera do filho querido que não mais voltará.
A valsa de Meyerbeer passa certamente soluçando no coração da louca imperatriz.
De mais a mais ella teve sempre o culto da musica, foi a imperatriz que poz em moda, tanto em Pesth como em Vienna, a zither, a dôce guitarra rustica dos Alpes tyrolezes.
O seu coração conhece, pois, toda a magia d'essa divina arte capaz de fazer mover as proprias pedras, segundo a tradição mythologica, e porventura esse balsamo celeste, que se chama a musica, tivera o condão de ungir durante algumas semanas as feridas da sua alma, como a harpa de David abrandava as coleras sombrias de Saul.
Mas a loucura em que a razão brilha ainda como um crepusculo explodira finalmente.
A catastrophe que lhe roubára o filho primogenito apunhalára-a na fibra mais delicada de seu coração de mãi.
Apesar das excentricidades que constituem a lenda da imperatriz, o que é certo é que ella foi sempre uma extremosa mãi.
Quando os seus filhos eram pequeninos, ella propria os acalentava no berço, cantando, bailando, beijando-os, atirando o fardo da etiqueta para traz dos moinhos. A imperatriz desapparecia; ficava apenas a mãi.
Quando, com dois annos de idade, lhe morreu a segunda filha, abraçou-se n'uma effusão de lagrimas ao pescoço de um grande Terra-Nova, que era o companheiro dilecto da mallograda creança.
Dinorah não teria sido mais carinhosa com a sua cabrinha branca do que a imperatriz o foi n'esse momento para com o seu Terra-Nova.
E todavia ouvia-se dizer muitas vezes em Vienna que a imperatriz, amazona infatigavel, pensava mais nos cavallos que montava do que nos filhos que havia gerado.
Uma calumnia revoltante. Victor Tissot, que esteve em Vienna, e que estudou escrupulosamente a capital austriaca na côrte e na rua, desmente-a categoricamente.
D'onde veio essa má vontade dos viennenses, tantas vezes manifestada, contra a imperatriz?
Veio do tempo em que ella, creança de dezeseis annos, tinha, sem o haver sonhado, cingido a corôa da Austria, e esquissava nos seus albuns a caricatura mordente dos cortezãos que detestava.
Um cortezão não perdôa nunca: vinga-se curvado e sorridente. Foi o cortezão de Vienna que principiou a fazer a lenda injusta da imperatriz, que, por sua vez, aborrecendo o mundo palaciano em que a calumnia serpejava por entre as alcatifas, preferia as florestas ás salas, e os cavallos aos cortezãos.
E depois a imperatriz fôra creada em plena natureza, á beira do lago de Traun. Como as outras suas quatro irmãs, que vieram a denominar-se a rainha de Napoles, a princeza de Tour e Taxis, a condessa de Trani e a duqueza d'Alençon, vivêra até aos dezeseis annos como pastora nas montanhas. Seu pai era um velho gentil-homem da provincia, que jámais havia pensado em que as suas cinco filhas, embora formosissimas, podessem vir a respirar n'outra atmosphera que não fosse a das collinas que circumdavam o lago azul.
Mas Francisco José amára sempre a caça como um bom montanhez do Tyrol, cujo fato vestia nas suas excursões venatorias por montes e valles.
Ás vezes os quinteiros ouviam a distancia a grita do hallali, e o seu pensamento não podia ser outro senão o que o nosso velho Castilho soube exprimir n'uma quadra:
Voam corceis e sabujos;
Apupa, apupa, clarim,
Que esta sina de fragueiros
Não tem descanço nem fim.
E as gandaras e os montes tremiam como no rimance da Nazareth; não valiam os pés ao gamo, nem valia a furia ao javali.
Os caçadores passavam como um tufão ardente.
Era o imperador que andava monteando, tal como nas valladas da Idade-média usavam fazer os velhos reis sagrados, de que a imaginação popular se lembra ainda.
Pois bem! Francisco José havia chegado á beira do lago de Traun e, por descançar das fadigas da caça, sentára-se á porta, de uma casa de campo. Quatro filhas do velho gentil-homem que alli morava, sahiram a cumprimentar o imperador, que ficára encantado de encontrar um bouquet de rosas primaveris perdido entre montanhas, á beira de um lago. Qual d'ellas lhe parecia mais formosa? Não o saberia dizer. De repente surge na clareira do bosque uma visão encantadora, vestida de branco, e acompanhada de um fiel molosso. Então os olhos de Francisco José cegaram deslumbrados. Era Izabel, a quinta filha do velho gentil-homem: a futura imperatriz da Austria. Alguns dias depois, n'um baile em Ischl, o imperador, que amava doidamente a valsa, dançára durante toda a noite com essa deslumbrante creança de dezeseis annos, que desde logo passou a ser denominada a fada da floresta.
O coração um pouco selvagem de Izabel revoltou-se naturalmente contra a doblez da côrte. Ella preferia os aromas acres do bosque ás lisonjas perfumadas de cortezanismo. Ave das montanhas, amava o ceu azul, os alcantis agrestes, os lagos dormentes. Durante os primeiros tempos de noivado, um cavalleiro e uma amazona galopavam nas planicies, cortando as florestas, batendo os bosques. Eram o imperador e a imperatriz.
Tudo ia em redemoinho,
Homens, corceis e mastins,
Ladridos, brados, relinchos,
Fragor d'armas e clarins!
Francisco José é, em toda a extensão da palavra, um homem amavel,—qualidade indispensavel aos principes.
Tissot decreve-o em dois traços:
Este homem amavel fez-se amado desde os primeiros annos da mocidade, em que elle proprio escolhia entre as damas do salão a que preferia para sua parceira de valsa. Quando o seu uniforme branco ondulava nos circulos vertiginosos das valsas de Strauss, as mulheres, exaltadas, adoravam o gentil Habsburgo, de quem costumavam dizer:
—Encanta vêl-o valsar!
Á medida que se foi evolando n'uma saudade longinqua o perfume da flôr de laranjeira, que engrinaldára a cabeça da bella do lago de Traun, o coração da imperatriz, no seu egoismo montanhez, gotejára sangue.
Acaso o tronco ferido da arvore alpestre não chora, em bagas de resina, o attentado de que foi victima?
Tenho aqui, entre os meus papeis, um notavel artigo que ha annos appareceu n'um jornal de Lisboa e foi traduzido por mão desconhecida. Fallando da imperatriz Izabel, diz:
Natureza fogosamente selvagem, a imperatriz da Austria, tendo visto passar o idyllio de amor que a fôra arrancar ao lago de Traun, não pôde resistir á morte desastrosa do filho querido, que era a seus olhos não só a revivescencia de um passado feliz, mas tambem, certamente, a esperança de uma gloria futura.
E, similhante á Dinorah da opera de Meyerbeer, balouçando nos braços a almofada que presume ser o berço do Kronprinz, a sua voz soluça a dolente melodia de uma valsa que acaricia ainda a sombra ligeira de tudo o que não voltará mais.