XIV
El-Rei D. Luiz nos Jeronymos
Edgar Quinet sentiu pulsar na igreja de Belem a alma navegadora do Portugal manuelino. São profundamente verdadeiras as suas observaçoes. De feito, todos os caracteres da vida do mar alli estão, em Belem. Cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros; altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas: a igreja é o navio que vai largar para os ousados descobrimentos. No claustro ha já espalhadas com mão profusa as primicias dos continentes recentemente descobertos: pendurados nos baixos relevos, os côcos e os ananazes; os macacos do Ganges trepando baloiçados pelos cabos; os papagaios do Brazil esvoaçando festivamente em de redor da cruz; elephantes de marmore que conduzem em triumpho a urna funeraria do rei Manuel. Uma igreja maritima, finalmente, com tão raro primor descripta por Quinet, erguida no proprio local d'onde Vasco da Gama partira para ir descobrir a India.
No dia 8 de julho de 1497 ninguem trabalhára em Lisboa, apesar de ser um sabbado. Toda a gente corrêra a vêr partir as naus do ancoradouro do Rastello. Eram quatro os navios que compunham a esquadra: S. Gabriel, nau-almirante, S. Raphael, Berrio, e uma barca com mantimentos.
Vasco da Gama tinha ido de vespera, com os seus companheiros, fazer vigilia na ermida de Nossa Senhora de Belem, fundada pelo infante D. Henrique. Ahi commungou pela mão de alguns freires do convento de Thomar. O vento norte, que no estio costuma soprar em toda a costa da peninsula, era favoravel á navegação.
No sabbado, logo pela manhã, encheu-se de povo o caes do Rastello. A multidão, ávida de sensações, esperava anciosamente que os navegantes sahissem da ermida. Finalmente Vasco da Gama e os seus companheiros assomaram á porta, com cyrios na mão. Seguiam-se-lhe os freires e os sacerdotes que da cidade tinham ido expressamente para dizer missa. O povo, em massa, fechava o prestito, respondendo á ladainha que os padres cantavam.
Havia n'este espectaculo o que quer que fosse de vaga tristeza, aliás justificada. Uma numerosa tripolação ia affrontar os perigos do oceano, lançar-se nas incertezas de uma navegação aventurosa.
Chegados junto aos bateis Vasco da Gama e os seus companheiros, o vigario da ermida, com voz solemne, proferiu uma allocução piedosa, acabando por lançar a absolvição.
«No qual acto, escreve João de Barros, foi tanta a lagrima de todos, que n'este dia tomou aquella praia posse das muitas que n'ella se derramam na partida das armadas que cada anno vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir: de onde com razão lhe podêmos chamar praia de lagrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfraldar das velas que os mareantes segundo seu uso deram aquelle alegre principio de caminho, dizendo boa viagem: todos que estavam promptos na vista d'elles, com uma piedosa humanidade dobraram estas lagrimas: e começaram de os encommendar a Deus, e lançar juizos sobre o que cada um sentia d'aquella partida!»
Eram oppostos os juizos e as vozes que commentavam a empreza. Muitas pessoas se mostravam contrarias a ella. De modo que o velho da Praia do Rastello representa uma prosopopêa historica quando exclama pela bocca de Camões:
Oh gloria de mandar! Oh vã cobiça
D'esta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudento gosto que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão, que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade n'elles experimentas!
Mas Deus protegêra a audacia dos portuguezes, os mares abriram passagem á frota de Vasco da Gama, e a India, descerrando de par em par as portas crystallinas dos seus golphos, desde Cambaya a Bengala, inclinava, rainha do Oriente, a fulva cabeça, radiante de auroras, ao dominio colonial do nauta do Occidente.
As lagrimas choradas na praia do Rastello, quando a frota levantava ferro, vieram-nos devolvidas em perolas arrancadas ao oceano Indico no golpho de Manaar e nas costas de Ceylão.
A melancolia que avassallava os espiritos, na hora em que Vasco da Gama partiu, transmudára-se, só com passar pelo chrysol da India, no oiro luminoso de Quiloa, que mestre Gil Vicente ou outro qualquer notavel artifice do seculo XVI arredondára n'um disco—a famosa custodia dos Jeronymos—, tão bello como o sol, tão resplendente como elle.
E depois de terem dobrado duas vezes o Cabo das Tormentas, depois de terem vencido Adamastor duas vezes, as galés d'el-rei subiam em triumpho a corrente do Tejo, á volta do Oriente, e toda a alma portugueza vibrava de alegria e de orgulho na impaciencia dos animos e na avidez dos olhos.
Lá vêm galés Tejo acima!
lá vêm as galés d'el-rei!
Por vocação ou educação, por qualquer d'estes dois factos que constituem toda a orientação do espirito, el-rei D. Luiz fizera-se marinheiro, passára no oceano os annos desenfadados da vida, impregnára a sua alma d'essa antiga tradição maritima, que fôra o maior florão de gloria da dynastia d'Aviz.
Infante de Portugal, como D. Henrique, tinha o culto da navegação, a religião do mar. No convez do Pedro Nunes ou da Bartholomeu Dias, recordaria por noites de luar, ao som das aguas, toda a nossa epopêa maritima, de que esses dois nomes, o do inventor do nonio e o do descobridor do Cabo, eram como duas estrophes gravadas nos marmores eternos da Historia. Rei, constrangido a viver em terra como um marinheiro aposentado, dessedentava saudades contemplando o Tejo do seu miradouro da Ajuda ou o Atlantico do alto da bateria de Cascaes.
E fôra Cascaes, uma pequena villa de marinheiros, Cascaes, a patria do aventuroso piloto Affonso Sanches, que recebêra o extremo alento d'esse bom rei que tanto vivêra profissional e espiritualmente da nossa gloria maritima. Fôra o mar que soluçára em torno do seu athaude o primeiro cantico funebre, fôra o mar que, marulhando nos muros da cidadella, viera receber o seu espirito para o restituir a Deus.
Antes de entrar definitivamente no sarcophago de S. Vicente de Fóra, este rei marinheiro devia, se podesse resuscitar, querer descançar alguns dias no templo dos Jeronymos,—esse bello navio de pedra, ancorado na gloriosa praia do Rastello, d'onde Vasco da Gama partira. Fizeram-lhe a vontade, adivinharam-lhe os desejos. Deram-lhe, por uma semana, a melhor companhia que podia lisonjear o seu espirito. Alli jazem, se a nossa fé nos não atraiçoa, as cinzas do proprio Vasco da Gama, o primeiro almirante do mar das Indias, e de Luiz de Camões, o Homero de toda a vasta epopêa maritima no seculo aureo de Portugal.
E na sua capella silenciosa e monumental alli jaz Alexandre Herculano, o ultimo grande historiador das glorias de Portugal, o ultimo varão forte d'essa extincta raça de chronistas, que principiou em Fernão Lopes e se continuou em Azurara, Pina, Castanheda, João de Barros e Goes.
Para um rei como D. Luiz I, que amou o seu paiz na tradição mais saliente dos fastos nacionaes, nada poderia completar melhor a sua physionomia historica de rei marinheiro, do que esta posthuma étape de alguns dias, na igreja dos Jeronymos, em caminho do pantheon de S. Vicente.
Se o rei podesse acordar por momentos do somno da morte, adormeceria de novo dôcemente, demorando o olhar embevecido nos cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros, e nos altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas...