Andava um dia uma linda menina brincando numa praia portuguêsa. Tinha-se afastado de casa de seus pais e, com um cestinho no braço, fitava cuidadosamente as areias, baixando-se aqui e ali para apanhar conchas, búzios e pedras bonitas. Ia tão contente e distraída, cantando uma canção que sua avó lhe ensinara, que não reparou que já estava muito longe da casa paterna. Um rijo temporal arrojara á praia mil encantadoras cousas que o rico mar encerra e, como as asperezas do tempo tinham impedido que os habitantes daquela parte da costa saíssem á praia, Rosa, (assim se chamava a menina) radiante com os seus achados, ia sempre andando e distanciando-se cada vez mais.
O cesto já estava cheio e o avental tambêm. Pensou que era tempo de voltar, mas, olhando para o seu lado esquerdo, viu uma cousa escura e muito grande que arfava ruidosamente.
Rosinha
– E’ o casco dum navio que deu á costa, pensou.
E aproximou-se curiosa. Mas não tinha dado mais de seis passos quando retrocedeu horrorisada, deixando caír involuntariamente o cesto e quanto levava no avental, e deitou a correr com a possivel rapidez.
Nos sítios onde as areias se conservavam úmidas correu facilmente, mas dentro em pouco os pés enterravam-se-lhe na areia e tinha de parar continuamente para criar alento. Duas vezes caíu no chão sem fôrças e, levantando-se, deitou de novo a correr. Chegou finalmente a casa. Empurrou a porta com violência e foi lançar-se nos braços de sua mãe que afastou cuidadosa as agulhas da meia em que estava trabalhando para a pequena se não ferir, repreendendo-a brandamente pela sua falta de cuidado.
– ¿Então isso faz-se, Rosa? Estás louca? Não vês que podias cegar-te com as agulhas da minha meia?
Rosa, que chegara em silêncio aos braços de sua mãe, desatou a chorar.
– ¿Que é isso? perguntou o pai entrando.
Tomé, pai de Rosa, era um homem dos seus quarenta e cinco anos, crestado pelo sol e pelo ar do mar. Vestia calça azul, camisola de malha e trazia o cachimbo ao canto da bôca, entretendo-se a aparar cuidadosamente com a navalha um pedaço de madeira.
– ¿Que tens tu? tornou êle. Não ouviste o que te perguntei?
Então, com a voz entrecortada, Rosa contou que là em baixo, muito longe, num sítio onde tinha ido apanhar conchinhas, estava um navio que respirava e tinha uma cabeça muito grande.
– Vamos lá vêr isso, disse o pai, atirando o bocado de madeira para cima da mesa, fechando a navalha e metendo-a no bolso.
– Não posso, meu pai, tenho mêdo e estou sem fôrças para dar um passo.
– Eu levo-te ao colo.
– Tambêm vou, disse a mãe, arrumando a meia.
E puseram-se os três a caminho, não sem que o pai de Rosa tivesse passado uma espingarda a tiracolo. Rosa, agarrada ao pescoço do pai, ia dizendo.
– Por aqui. E’ mais longe, muito mais longe.
– Devia ralhar-te por te teres afastado assim de casa; mas o susto que apanhaste ha de sêr-te proveitoso; por isso não digo nada.
– Que cara! disse a mãe compadecida: pareces feita de cêra.
– E’ que sempre tive um mêdo! Um navio que respira e tem cabeça! E eu estava tão contente! Tinha apanhado conchinhas tão bonitas!
– ¿E que lhes fizéste?
– Deixei-as caír no chão, assim como o cestinho
Intrigados e curiosos, os pais iam andando e aventando hipóteses várias.
O bom Tomé não podia ir tão depressa como desejava porque a filha já pesava bastante. Tinha porêm nos lábios um sorriso que nem Rosa nem a mãe percebiam, cheias de receio por um caso que lhes parecia sobrenatural.
Dir-se-ia que Tomé tinha a suspeita dum encontro agradavel, mas que a não queria comunicar.
De repente Rosa agarrou-se mais ao pai e disse-lhe quasi ao ouvido:
– Já estamos muito perto… é ali… ao voltar daquele rochêdo.
Andaram o caminho em silêncio e, quando atingiram o ponto indicado, Tomé soltou um grito de alegria:
– Ai, filha! que descobriste a nossa fortuna!…
A pequena e a mulher olhavam-no espantadas sem perceber o que aquela intempestiva alegria queria dizer.
– E’ uma baleia… talvez arrojada á praia pelo temporal. Agora já não respira. Isto vae ser a nossa fortuna, mulher. Não tornaremos a ser pobres. Com o dinheiro que isto nos vai render, Maria, faço-te a vontade: ponho uma tenda e não me meterei mais em negócios, nem tornarei a embarcar.
– O quê? que me dizes tu? exclamou a mulher juntando as mãos num gesto de suprema satisfação.
– O que ouves: este animal vai ser a nossa fortuna.
– ¿Então não é um navio? perguntou a filha.
– Não, minha tontinha, é uma baleia.
– ¿E’ possivel que haja um peixe tão grande?!
– E’ um mamífero marinho e não um peixe.
– Que enormidade! exclamou a mulher.
– Ainda as ha maiores do que esta. Algumas têem perto de vinte e cinco metros de comprimento.
– Mas que cabeça!
– E que dentes tão feios!
– Aquilo não são dentes, respondeu Tomé.
– Então que são? perguntou a mulher.
– São barbas. Formam uma espécie de rêde fina por onde se escôa a água depois de terem fechado a enorme bôca para engulirem uma porção de peixes.
– Vivos!
– Vivos, sim.
– Ai! que horror, meu paizinho! ainda bem que não sou peixe.
– Que corpo!
– Parece um enorme fuso.
– E’ por isso que os livros dizem que elas têem o corpo fusiforme,
– Eu digo, insistiu Rosa, que me parece um casco dum navio.
– ¿Como viria ela aqui parar?
– Naturalmente, veiu, depois de ferida pelo harpão, já sem fôrças, ao sabôr da corrente.
– ¿Que vem a ser o harpão?
– Harpão é uma espécie de grande seta com longas rebarbas, que serve para ferir a baleia.
– ¿Mas para que caçam semelhante monstro?
– E’ muito util: as suas barbas são empregadas como varetas nos chapeus de sol, nos espartilhos das senhoras, etc. Da sua gordura faz-se um óleo que se emprega no fabrico dos sabões moles, na preparação de couros e até em pinturas, embora tenha mau cheiro. Dizem que os habitantes das regiões onde ha baleias, lhes comem a carne, bebem o oleo e aproveitam os ossos para barcos e várias construções.
– ¿Como sabe o pai tanta cousa ? perguntou Rosa muito admirada.
– Aprendi no primeiro ano do liceu e, apesar de não ter continuado os estudos, não esqueci o que aprendi. Tive sempre muito gosto pela zoologia.
– O que é a zoologia? perguntou a mulher que, até então, andara em volta da baleia admirando-a em silêncio.
– E’ o estudo dos animais. Mas vamos embora.
Preciso consultar com o teu pai e vêr como havemos de aproveitar êste achado.
Regressaram a casa, mas não sem que primeiro
Rosa tivesse apanhado o seu cesto e o precioso conteúdo do seu avental.
O sogro de Tomé, já inquieto por aquela ausência tão fóra do vulgar, esperava-os passeando em frente da porta. Mal os avistou gritou-lhes com modo desabrido:
– Então que história é esta? Vocês sáem e não previnem ninguêm? Está aqui uma pessoa em cuidado…
A mãe de Rosa, que era uma filha muito carinhosa e respeitadora, apressou-se a pedir-lhe desculpa:
– Não tivemos intenção de o afligir, meu pai. Foi um acontecimento inesperado… Tomé que lho conte emquanto eu vou preparar a ceia, se me dá licença.
– Vae, vae, que já não é sem tempo. Estou morto de fome!
Tinha escurecido.
Tomé acendeu o candieiro e, sentando-se em frente do sogro, com Rosa nos joelhos, começou a contar-lhe, cheio de entusiasmo, como soubera que na praia estava uma baleia.
Rosa separava as conchinhas sobre a mesa, e sua mãe preparava a última refeição do dia.
O velho, fumando tambêm o seu cachimbo, ouvia a história do genro com um sorriso escarninho nos lábios. Quando êle acabou de lhe contar os seus projectos de fortuna com a imaginária venda da baleia, exclamou:
– Então tu julgas que por ela ter dado á nossa costa não tem dono?
– Está visto.
– Pois enganas-te. Pertence ao baleeiro que a harpoou. No harpão devem estar gravadas as armas da nação a que êle pertence e o nome do navio que se emprega nesta arriscada caça. – E eu que já estava pensando em me estabelecer!…
– Pois não! Era melhor. No entanto – quem sabe? – se tu fôres o primeiro a dar a notícia no consulado, é provavel que te dêem alguma gratificação. Péga daí numa lanterna e vamos lá vêr, emquanto a Maria apronta a ceia.
Fôram. E, como o velho dizia, encontraram, com pasmo e pena de Tomé que êle tinha gravadas as armas da Dinamarca.
– Ora adeus! dizia Tomé descoroçoado. Empreguei bem o meu tempo.
Mas o sogro tanto teimou com êle e o aconselhou, que, metendo-se no comboio, que passa a uma légua e meia do povoado, chegou a Lisboa sobre a madrugada. Andou fazendo horas e, mal abriu o consulado, sentou-se á porta esperando a chegada do consul. Fartou-se de esperar. Era quasi meio dia quando êle chegou. Disse-lhe que trazia uma notícia bôa. E com tão ingénua naturalidade contou a grande alegria que tinha tido e a esperança que sentira de deixar de embarcar para se não separar da família, que o consul escutou-o com interesse e, depois de ter mandado verificar a verdade da notícia, não só lhe deu a gratificação que o sogro lhe anunciára, como o empregou no consulado, estipulando-lhe um bom ordenado.
A família veiu toda viver para Lisboa onde Rosa anda no colégio e tem muitas amigas.
Quando ela conta que deve a sua felicidade e a de seus pais a uma baleia, todos ficam muito pasmados e não acreditam. Contudo não ha nada mais verdadeiro.