Horas de Folga/Orgulho de português

 
Orgulho de português




Os espanhóis, quando querem dizer que alguem é muito orgulhoso, costumam demonstrá-lo por esta frase: é orgulhoso como um português. Nós usamos dizer: tem a bazófia dum espanhol; e, quando alguem se gaba de cousas, que exagera ou não fez, dizemos: ih! que espanholada!

E’ forçoso confessar: êles têem de nós melhor opinião do que nós dêles.

Uma vez viajavam num comboio um português e um espanhol. Querendo o primeiro provar que a sua família era muito antiga, contou que conservava em sua casa um retrato de Cristo que o mesmo Senhor dera na Palestina a um seu ascendente. Era uma maravilha, decerto devida a um milagre divino, porque até mesmo em nossos dias não havia tela de mais mimosas côres. E, concordando todos os pintores célebres que era um trabalho notabilissimo, não lhe podiam atribuir um autor por mais vontade que tivessem. A maneira como estava pintada diferia de todas as conhecidas ficando-lhes sempre superior.

Então o espanhol quiz provar-lhe que tinha um objecto mais precioso e não menos antigo, e disse-lhe:

– Eu tenho na minha casa de Madrid uma imagem do Senhor Crucificado tão que S. José,

 


… Viajavam num comboio…

 

vendo-a quando Jesus nasceu, tomou-a por um presságio.

E, no tom de quem fornece uma informação menos importante, ajuntou:

– Foi uma avó minha que lha mostrou.

Pelas duas anedotas que acabo de escrever pode notar-se que, quanto a parlapatice, não estamos muito longe dos espanhóis embora êles tenham a supremacia. Agora, em orgulho, creio que lhes levamos a palma.

O que daria origem á frase espanhola: orgulhoso como um português?

E’ muito possivel que fôsse o seguinte facto histórico:

Quando o rei de Castela D. João I casou com a infanta D. Beatriz, filha de D. Fernando, o formoso, e


Nuno A’lvares Pereira

de D. Leonor Teles, deu um grande jantar a que assistiram muitos fidalgos de Portugal e de Castela.

Entre várias mesas destacavam-se as três principais: a do meio, que era a do rei, estava atravessada e mais alta do que as outras, e as que a ladeavam que eram destinadas ás pessôas principais. A uma delas devia sentar-se D. Nuno A’lvares Pereira e seu irmão Fernão. Quando todos se dirigiram para a mesa, êles, naturalmente corteses, não se apressaram e, quando quiseram tomar logar, já o não encontraram nem lho fizeram, apesar de serem muito conhecidos e estarem em trajo de côrte e gala. E os espanhóis riram muito de os vêrem ficar sem lugar.

Então Nuno A’lvares, irritado pela grossaria com que se via tratado, disse ao irmão:

– Não é para nós honra demasiada estar aqui. Parece-me que nos devemos ir embora; mas primeiro temos de rir de quem se ri de nós.

E vagarosamente dirigiu-se para a cabeceira da mesa, o que o rei viu muito bem do sítio em que estava sentado, e com os joelhos partiu o pé da mesa pregando com ela no chão. Os que a rodeavam ficaram espantados, e êle, com seu irmão, saiu da sala tão socegado como se nada tivesse feito.

O rei informou-se do caso e, tendo-lhe sido contada a verdade, respondeu:

– Sei que se vingaram bem. E, se a tanto se atreveram neste lugar, para pagar a ofensa recebida, para muito mais terão valor os seus corações.

Se fôssem castelhanos talvez tivessem sido castigados; mas como eram portuguêses que iam no séquito da rainha, D. João de Castela não falou mais em tal. Porêm as crónicas trouxeram até aos nossos dias este curioso exemplo de orgulho dum dos mais nobres portuguêses que têem existido. Teria tido origem neste episódio a frase orgulhoso como um português?

E’ possivel, mas não está provado.