A nova ordem de coisas perturbou profundamente o ânimo de Estela. O procedimento de Jorge, por ocasião da moléstia do marido, não lhe pareceu esconder nenhuma intenção particular; mas durante a convalescença, e sobretudo depois dela, afigurou-se-lhe que a idéia do moço era insinuar-se na família. Para quê? Estela supunha que o amor de Jorge, ao fim de tão longo período, estaria acabado de todo, como produto da primeira estação. Não lhe negou um pouco de gratidão, quando viu os obséquios que prestara ao marido enfermo, com tanta, solicitude, discrição e dignidade. Agora, porém, ao ver a freqüência e a convivência, supôs alguma coisa mais do que a simples afeição tradicional. Que encanto podia oferecer a casa de uma família retirada e obscura a um homem criado em mais aparente plana social? Seu meio era outro, tendências de espírito ou ambições de futuro o deviam levar a outra esfera. Esta consideração lhe pareceu decisiva. Concluiu que a paixão, vencida ou comprimida, soltava outra vez o brado da revolta; e se assim era, Jorge devia estar pior que em 1866, porque então os sentimentos rompiam com violência e sinceridade, ao passo que agora o seu principal aspecto era a dissimulação. O amor, se amor havia, trazia já os olhos abertos e dispunha da razão; de estouvado, tornava-se cauteloso e sutil.
— Que idéia faz ele de mim? perguntou Estela a si mesma.
Quando esta palavra lhe soou no espírito, Estela sentiu-se diminuída e humilhada aos olhos de Jorge. Cumpria pôr termo a uma vida de reticências e dubiedade. Estela cogitou no meio de fazer cessar a intimidade dos dois homens; quando menos, a freqüência de Jorge naquela casa. Pensou em pedi-lo diretamente a Jorge; mas rejeitou desde logo a idéia, aliás incompatível com sua índole; depois, pensou em dizer tudo ao marido.
Uma noite, na primeira semana de novembro, Estela assentou definitivamente revelar ao marido a única página de seu passado. Estava sozinha, no jardim, e vira desmaiar o crepúsculo da tarde — uma tarde cinzenta e amortecida. De quando em quando o espírito volvia ao passado, e toda ela estremecia com uma sensação estranha, misteriosa e insuportável. A noite caiu de todo, e a alma de Estela mergulharia também na vaga e pérfida escuridão do futuro, se a rude voz do escravo não a viesse acordar.
— Nhanhã está apanhando sereno, disse Raimundo.
Estela ergueu-se e foi dali ao gabinete do marido. Luís Garcia trabalhava, à claridade de um lampião, que toda convergia para ele e os papéis que tinha diante de si graças ao efeito de um abat-jour. O resto do aposento ficava na meia obscuridade.
— Que é? perguntou Luís Garcia sem levantar a cabeça.
Estela parou do outro lado da secretária; Luís Garcia ergueu então a cabeça e olhou para ela, sem lhe poder ver o transtorno das feições.
— Que é? repetiu.
Vendo-o entregue ao trabalho, por amor dela e da filha, Estela hesitou; pareceu-lhe crueldade dar-lhe, em troca da proteção e do afeto, um desengano e uma aflição. Hesitou um instante, e passou da hesitação à renúncia. Conteve-se e saiu. Escolheu o silêncio.
Mas o silêncio só por si não melhorava nada; tarde ou cedo, o marido viria ler em seu rosto o constrangimento, em relação a Jorge, constrangimento inexplicável, que ele podia interpretar contra ela. Foi então que a serpente lhe ensinou a dissimulação. A necessidade deu-lhe a intuição maquiavélica; isto é, a ocasião não consentia um rosto franco, sinceramente hostil, mas um ar ameno, uma cordialidade de superfície, friamente cortês, mas cortês. Desse modo, salvava-se a paz doméstica, e era o essencial. Ao mesmo tempo mostraria a destemidez de seu coração, capaz de afrontar todo o artifício do outro.
Com o tempo, verificou Estela que o procedimento de Jorge, se alguma intenção escondia, não a deixava sequer suspeitar; não lhe parecia já dissimulação, mas abstenção Ele próprio a evitava; fugia às conversas longas, sobretudo às conversas solitárias. Era respeitoso e frio.
Com efeito, Jorge não havia cedido a nenhum plano preconcebido; ia à feição do tempo; metia-se por um atalho, sem saber se iria dar à estrada reta ou a um abismo. Nenhuma preocupação lhe ensombrava a fronte risonha e plácida. Dir-se-ia que, após longa e trabalhosa jornada, vingara o cume das delícias humanas.
A verdade é que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de sentimento para constituir-se idéia fixa. Nascido de uma primeira explosão de juventude, curtiu alguns anos de ausência. A ausência disciplinou os primeiros ardores, quebrou os ímpetos, afrouxou o alento; o amor atou aos ombros as asas de um misticismo quieto. Não parou nessa evolução. Do coração em que pousava tomou impulso e alou-se ao cérebro, onde assumiu a fixidez das resoluções definitivas. Não era já uma paixão, mas uma convicção, isto é, outra coisa. Pensava muitas vezes na conseqüência de herdar em breve prazo a esposa de Luís Garcia, resolução que lhe parecia necessária; era o que ele dizia a si mesmo. E esse casamento tinha dois resultados: era uma reparação e uma desforra: reparação do mal que ele fizera, desforra do tratamento que ela lhe deu. Ambos tinham que reprochar um ao outro. O casamento absolvia-os. Talvez na balança comum não fossem iguais as dívidas, mas Jorge tinha certo fundo de eqüidade, e entendia que, se padecera muito e longo, não excedeu o padecimento à injúria que, a seus olhos, fora grave.
Os ralhos da consciência eram agora menos freqüentes e menos ríspidos: é o efeito natural dessa ordem de situações violentas. Os mais rígidos podem chegar assim às complacências inexplicáveis, e o que é hoje nobre repugnância, é amanhã hesitação pueril. Jorge não ficou estranho a essa lei do costume. De si para si julgava-se inocente, porque era impassível, esquecendo a letra do decálogo que não defende somente a ação, mas a própria intenção.
Duas circunstâncias perturbaram, entretanto, o espírito de Jorge, antes do fim daquele ano.
A primeira foi a assiduidade de Procópio Dias, que lhe pareceu pouco explicável. Procópio Dias era recebido com agasalho mais cordial do que ele. Em relação a Jorge, o procedimento de Estela era cauteloso e apenas afável; o de Iaiá era de algum modo medroso ou hostil; uma e outra pareciam alegrar-se quando Procópio Dias assomava à porta. Era uma expressão diferente. Este acompanhava-as às vezes nos passeios, ou conversava-as largo tempo, fazendo-as rir com uma espontaneidade, que não tinham a falar com Jorge. Obedecia aos desejos da madrasta e aos caprichos da enteada, quaisquer que fossem, com tamanha tolerância e bom humor, que fazia despeitar o outro, sem o saber. Jorge atentou nos ditos e ações do intruso, e com o tempo veio a tranqüilizar-se.
— É um celibatário necessitado da companhia de mulheres, disse consigo.
Procópio Dias não parecia outra coisa; a atmosfera feminina era para ele uma necessidade; o ruge-ruge das saias a melhor música a seus ouvidos. Graças à idade, Iaiá era mais familiar do que Estela; às vezes chegava a "judiar" com ele, excesso que o pai ou a madrasta reprimia, e reprimia sem necessidade. Procópio Dias não manifestava nem sentia o menor despeito; achava-lhe graça e chegava a fazer coro com ela.
A segunda circunstância que projetou alguma sombra no espírito de Jorge, foi justamente a hostilidade de Iaiá Garcia.
— Que diabo fiz eu a esta menina? perguntava Jorge a si mesmo.
Durante a moléstia e a convalescença do pai, Iaiá tratara Jorge com muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois, começou a diminuir essa aparência, até que cessou de todo e se converteu noutra coisa, que visivelmente era repugnância, com unia pontazinha de hostilidade. Luís Garcia viu logo a diferença, tanto mais fácil de notar quanto que Estela, se não era já tão expansiva como nos primeiros dias, tratava ainda assim o filho de Valéria com uma afabilidade, que salvava as aparências; a única exceção era a filha. Não deixou de a advertir; ponderou-lhe que Jorge era filho de uma pessoa a quem eles deviam estima, e de quem ela mesma houvera uma recordação póstuma; que essa circunstância devia atenuar a antipatia, se Jorge lhe era antipático. Iaiá ouvia e calava-se; emendava-se num dia, para reincidir toda a semana.
— És uma estranhona, disse uma vez o pai depois de lhe repetir a advertência.
Podia ser estranhice. A vida que Iaiá tivera durante largo tempo dera-lhe o amor exclusivo da solidão e da família. Mas no caso presente parecia ser alguma coisa mais do que isso. O rosto com que recebia Jorge não era o mesmo com que via outras pessoas. Jorge às vezes chegava quando ela estava ao piano; Iaiá interrompia-se habilmente, fazia gotejar dos dedos umas três ou quatro notas soltas e divergentes e erguia-se. Se ele ia conversar com ela e a madrasta, Iaiá tomava a parte mínima do diálogo e esquivava-se cautelosamente. Não sorria nunca se ele dizia uma coisa graciosa ou fazia cumprimento; não animava nunca a adoção de qualquer projeto que viesse dele; não lia os romances que ele lhe emprestava. Se era convidada a dizer o que pensava de um ou outro desses livros, fazia descair os cantos da boca com um gesto de indiferença. Não falava nunca de Jorge; aparecia-lhe o menos que podia. Este procedimento constante, não afrontoso, porque ela o disfarçava, impressionou o espírito do moço, que não lhe pôde descobrir a causa verdadeira, ou pelo menos verossímil.
A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava o pai sobre todas as coisas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão de filha.
Iaiá viu, entretanto, a mudança que houve nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abrira uma exceção em favor de Jorge; sem mostrar maneiras ruidosas, aliás incompatíveis com ele, era menos reservado, de mais fácil e continuado acesso. Não foi porém esse primeiro reparo que produziu em Iaiá a notada mudança; foi outro. Luís Garcia deu a Jorge algumas demonstrações de confiança pessoal, e no dia em que a filha viu a primeira, recordou-se da carta que escrevera ao moço na noite em que a moléstia do pai se agravara, e da confidência dos dois, cujos assuntos nunca lhe chegara aos ouvidos. Neste instante sentiu borbulhar no coração uma primeira gota de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe alguma coisa. Não cogitou se haveria assunto que dois homens devessem tratar exclusivamente entre si; supôs-se despojada de uma parte da confiança do pai, e porque amava o pai sobre todas as coisas, seu amor tinha os ciúmes, as cóleras, os arrebatamentos do outro amor, e conseqüentemente os mesmos ódios e lágrimas.
Conhecia o pai toda a intensidade da afeição filial da moça, e não era menor a do seu amor; mas ele dizia consigo filosoficamente, e não sem pesar, que a natureza se encarregaria de lhe ensinar outro sentimento, menos grave, mas não menos intenso e imperioso. Quando ele assim refletia, contemplava a filha com um olhar já úmido das primeiras saudades.
Iaiá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era leve, ágil, súbita, — com um pouco de destimidez; às vezes áspera, mas dotada de um espírito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse falar também dos olhos, que, se eram límpidos como os de Eva antes do pecado, se eram de rola, como os de Sulamites, tinham como os desta alguma coisa escondida dentro, que não era decerto a mesma coisa. Quando ela olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da consciência alheia. Mas eram raras essas ocasiões. A expressão usual era outra, meiga ou indiferente, e mais de infância que de juventude. Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os lábios eram finos e enérgicos. Em resumo, as feições dos onze anos estavam ali desenvolvidas e mais acentuadas.
Uma tarde Luís Garcia recebeu ordem de ir imediatamente à casa do ministro. Saiu, deixando a mulher e a filha, ansiosas pelo resultado. Jorge apareceu pouco depois. A demora de Luís Garcia foi longa, e Jorge ter-se-ia retirado, se não fora a chegada do Sr. Antunes, que deu um sopro de vida à conversa que expirava. Nove horas, dez horas, onze horas bateram sem que Luís Garcia voltasse. Iaiá estava impaciente; receava alguma doença súbita do pai, um desastre qualquer. Eram onze horas e um quarto quando este entrou ofegante, porque viera depressa, tendo encontrado Raimundo, que, ouvindo as ânsias da moça, saíra a encontrá-lo e a dizer-lhas.
Iaiá atirou-se-lhe aos braços.
— Medrosa! disse Luís Garcia abrangendo-lhe a cabeça com as mãos.
Sentou-se um instante para repousar; com a mão esquerda comprimia o coração. Logo depois ergueu-se, chamou Jorge e foi até uma das janelas. Conversaram em voz baixa dez minutos. Disse-lhe que talvez fosse obrigado a sair no fim daquela semana; tratava-se de uma necessidade de serviço; salvo uma hipótese, a viagem era inevitável.
Iaiá não tirava os olhos de um e de outro; despediu-se de Jorge dando-lhe as pontas dos dedos. Foi no dia seguinte que Estela lhe disse que talvez fossem obrigados a sair por algum tempo. Ouvindo a notícia, Iaiá compreendeu a confidência da véspera e ficou consternada. Ela era a última que a recebia, e o primeiro fora um estranho, um intruso, — esteve quase a dizer um inimigo. Nenhuma palavra do pai; nenhuma comunicação direta.
— A última!
Esse ressentimento exagerado era o próprio efeito da organização da moça, e, outrossim, de sua educação quase solitária. Para afastá-la de Jorge não foi preciso mais; o despeito apoderou-se inteiramente dela. Se até ali pouco lhe havia falado, esse pouco diminuiu ainda com o tempo; fez-se quase nada.
E essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a esbarrar-se, no caminho de seus destinos.