Está a máscara da noite sobre meu
rosto: a não ser ela, verias as minhas
faces tintas do rubor virginal.

Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II

Mais cresce a luz, mais aumentam
as trevas das nossas desgraças
Idem. Ato IV

Grave modificação trouxe a retirada de Meyer no sistema de viver daquela morada, onde se agitava um dos problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que ali apresentava cores algum tanto carregadas, senão já sombrias.

Fora Pereira dormir no interior da casa, passando ali a maior parte do tempo. Assim os encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossíveis, e, não tendo mais a atenção do mineiro o alvo que sempre colimara durante a estada do alemão, começava como era de prever, a voltar-se para Cirino, a quem confessou ter tratado Meyer com injusta prevenção.

— Hoje, dizia o mineiro, dói-me a consciência do modo por que desconfiei daquele homem... Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? Sr. Cirino, quando a gente entra a dar volta ao miolo.. é que vê que todos têm queda para malucos... Sim senhor!... Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Enfim não me arrependo muito de ter feito o que fiz... Receei e tomei tento...

Amiudando-se estes e outros dizeres iguais, deram que refletir a Cirino. De uma hora para outra compreendeu que as vistas inquisitoriais poderiam tornar a sua posição insustentável.

Por enquanto tratou de encontrar-se com Inocência. Grandes eram as dificuldades; o meio único, tentar novamente as entrevistas noturnas; pelo que do laranjal não arredava pé, noites e noites inteiras, ficando ali com os olhos presos à janela da querida do coração.

Certa madrugada, viu afinal a sombra de Inocência.

Achou-se, num ápice, o mancebo junto dela e agarrou-lhe com violência nas mãos.

—Enfim, exclamou ele, eu a vejo.

—Meu pai, murmurou a moça com voz tão fraca que mal se ouvia, pode acordar...

— Não importa, replicou Cirino desabrido, descubra-se tudo... não posso mais viver assim,..

—Xi! observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui, mata-nos logo... Olhe, vá-me esperar junto ao corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta esta só encostada ...

O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na escuridão do pomar.

Aquela hora dava a lua de minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se pressentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir animação e alegria à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes a despertar, um gorjeio intimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabia mais madrugador desfiava melodias que o silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dúbias linhas vermelhas, prenúncio mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam as estrelas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarelada névoa empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.

Não era mais noite; mas ainda não era sequer a aurora.

Tão comovido se sentia Cirino, que teve de sentar-se, enquanto esperava por Inocência.

Esta não tardou: vinha vestida de uma sala de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma grande manta da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegância e pequenez.

Parecia muito assustada, e, mau grado seu, dos olhos lhe rolavam lágrimas a fio.

O mancebo, apenas a avistou, correu-lhe ao encontro.

—Inocência, exclamou ele notando um gesto de dúvida, nada receie de mim... Hei de respeitá-la, como se fora uma santa... Não confia então em mim?...

—Sim! disse ela apressadamente. Por isso é que vim até cá... Entretanto, estou com a cara ardendo... de vergonha...

E levando uma das mãos de Cirino às suas faces:

—Veja, Cirino, como tenho o rosto em brasa...

Por que é que mecê veio bulir comigo? Eu era uma moça sossegada... agora, se mecê não gostasse mais de mim... eu morria...

— Deveras?

—Eu lhe juro...

É mais fácil apagarem-se de repente estas estrelas todas, do que eu deixar de amá-la...

—E Manecão? perguntou ela com terror.

—Oh! esse homem, sempre esse nome maldito!...

—Há de ser meu marido...

—Isso nunca, Inocência... É impossível!... E se fugíssemos?... Olhe, amanhã a estas mesmas horas ou mais cedo, trago para aqui dois bons animais... Você monta num, eu noutro... batemos para Sant'Ana e, a galope sempre, havemos de chegar a Uberaba... onde acharemos um padre que nos case... Vamos, ouviu?

—E mecê havia de me estimar toda a vida?

—Sempre... Diga, sim... diga pelo amor de Deus, e estamos salvos... diga! ...

— E meu pai, Cirino? Que havéra de ser? .. Atirava-me a maldição... eu ficava perdida... uma mulher de má vida... sem a bênção de meu pai... Não... mecê está me tentanto... Não quero fugir... Antes a desgraça para toda a existência... mas fique eu sendo o que meu nome diz que sou... Já muito peco, fazendo o que faço.. Mecê é moço da cidade; não lhe custa enganar uma criatura como eu... Até...

—Pois bem, interrompeu Cirino, você não quer?... não falemos mais nisso .. Não hei de querer, senão aquilo que achar bom... E se eu, por fim, me decidir a falar a seu pai?

—Deus nos livre! retorquiu ela aterrada. Pensei a principio que pudera ser, mas depois vi que era pior... Mecê não conhece o que é palavra de mineiro... ferro quebra, ela não... Manecão há de ser genro dele...

—Quem sabe, Inocência? Hei de falar tanto... pedir com tanta humildade.

—Ché, que esperança!... de nada serviria...

—Então, que fazer? bradou o moço. A que Santa agarrar-nos? Por que é que o céu nos quer tanto mal?

E ocultando a cabeça entre as mãos, desatou a chorar ruidosamente. Inocência, por seu lado, encostou a fronte ao ombro do amante, e ambos, unidos, choraram como duas crianças que eram.

Foi ela quem primeiro rompeu o silêncio

—Ah! meu Deus, se o padrinho quisesse!...

— Seu padrinho? perguntou Cirino. Quem é?... quem é ele?

—Um homem que mora para lá das Parnaíbas, já nos terrenos Gerais.

—Onde?... É longe?...

—Meio longe, meio perto. .. Mecê não conhece o Pauda ?

—Conheço... A 16 léguas do Rio Paranaíba...

—Pois é aí que padrinho pára... A esquerda da fazenda do Pauda, numas terras de sesmaria...

—E como se chama ele?

—Antônio Cesário... Papai lhe deve favores de dinheiro e faz tudo quanto ele manda... Se dissesse uma palavra, Manecão havéra de ficar atrapalhado...

—Oh! exclamou Cirino com confiança, estamos salvos então!,.. Amanhã mesmo, monto a cavalo e toco para lá... Daqui à vila são sete léguas... Até lá, umas dezessete... É um passeio... Chego... conto-lhe tudo... ponho-me de rastos aos seus pés... e...

—Mas, interrompeu Inocência, não lhe fale em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou comigo... que comigo mapiou... Estava tudo perdido... Invente umas histórias... faça-se de rico... nem de leve deixe assuntar que foi por meu juízo que mecê bateu à porta dele... Hi! com gente desconfiada, é preciso saber negacear ..

—Oh! meu Deus, disse Cirino no auge da alegria, estamos salvos!... Não há dúvida... Vejo agora como há de tudo acontecer... Depois de um dia ou dois de parada na casa, desembucho o negócio. O velho escreve uma carta a seu pai e, pelo menos, se não se arredar logo o Manecão? .. ganha-se tempo... Eu já quisera estar montado na minha besta tordilha queimada, a bater a estrada por aí afora... Dois dias para ir, dois para voltar, dois ou três de pousada... Com pouco mais de uma semana, estou de volta, trazendo ou a felicidade ou a caipora de uma vez. Não! Tenho fé em Nossa Senhora da Abadia... Ela nos ajudará... e juntos havemos ainda de cumprir a promessa que já fiz...

—Que permessa foi? perguntou Inocência com curiosidade.

—Irmos nós daqui até a vila a pé, botar duas velas bentas no altar de Nossa Senhora.

—Sim, confirmou a moça com fogo, eu juro... Fosse até ao fim do mundo! ...

—Oh! minha santa do Paraíso, exclamou o moço apertando-a de encontro ao peito, quanto você me ama!!

E assim abraçados, quedaram eles inconscientes, enquanto a aurora vinha clareando o firmamento e desferindo para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas; enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as gargantas para o matutino concerto; enquanto o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes árvores e suspendendo, às das rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam já como diamantes.

Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãs levantavam a sonora grita, e o macauã atirava aos ares os pios prolongados da áspera garganta.

—É dia, observou Inocência desprendendo-se dos braços de Cirino.

—Já! exclamou este amuado.

—Meu Deus, e eu que tenho de ir até a casa... vou-me embora...

—Então, partirei hoje mesmo, disse o moço.

—Sim...

—E na semana que vem, estou de volta...

—Pois bem... Leve com mecê esta certeza; a minha vida ou a minha morte depende do padrinho...

—A minha também, replicou o mancebo beijando com fervor as mãos de Inocência...

—Deixe-me... deixe-me, implorou ela. Adeus, estou com um medo!... Felizmente ninguém me viu...

Nesse momento e, como que para responder à asseveração, de dentro do pomar partiu aquele fino assobio que tanto assombrara os amantes na primeira das suas entrevistas.

Inocência quase caiu por terra.

—Meu Deus! balbuciou ela, que agouro!... Quem sabe se não é gente?

Ao assobio seguiu-se uma espécie de gargalhada, que gelou o sangue nas veias dos dois míseros.

Agarrou-se a menina a Cirino.

—É alma do outro mundo, murmurou ela persignando-se.

Não perdera o mancebo o sangue frio. Invocando a São Miguel, fez o sinal-da-cruz na direção dos quatro pontos cardeais; depois suspendeu a moça em seus braços e, transpondo a toda a pressa o pomar, foi depô-la junto à porta que estava entreaberta, naturalmente pelo vento.

Quase desmaiara Inocência; entretanto, reunindo as forças pôde entrar, e cautelosa correu o ferrolho interior.

Mais sossegado a esse respeito, voltou Cirino ao laranjal e, como da primeira vez, pôs-se a percorrê-lo em todos os sentidos, indagando, à nascente claridade do dia, se era ente humano ou fantasma quem dele parecia fazer joguete.

No momento em que passava por junto de uma laranjeira mais copada, viu de repente certa massa informe cair-lhe quase na cabeça e no meio de folhas e ramos quebrados vir ao chão com surdo grito de angústia.

—Cruz! T'esconjuro! bradou o moço.

E, como uma visão, passou-lhe por perto uma criaturinha, desaparecendo logo entre os troncos das árvores.

Ali esteve Cirino com os cabelos eriçados, os olhos fixos, os braços hirtos de terror, os lábios secos a tartamudear um exorcismo, e as pernas a tremer.

Uma voz, a certa distância, arrancou-o desse espasmo.

Era Pereira; com a mão encostada à boca, interpelava a um dos seus escravos.

—Faz fogo, José!... Se for alma do outro mundo ou lobisomem, a bala não pega... Se for gente, melhor.

E um tiro troou.

Sibilou uma bala aos ouvidos de Cirino, indo cravar-se numa árvore próxima.

Por outra, não esperou ele. Com o favor da escuridão que ainda reinava, deslizou rápido e foi buscar a frente da casa, quando já iam acordando os camaradas.

Mal chegara à sala, apareceu-lhe Pereira à porta.

—Que foi isso? perguntou Cirino compondo a fisionomia.

—Lá sei, respondeu o mineiro. Uma matinada de gritos no laranjal, que parecia um inferno... A pequena ficou toda que parecia querer morrer de medo. Desconfio que a alma do Coletor andou hoje me rondando a casa... Não seja presságio de mal... A Senhora Sant'Ana nos proteja.

—Pois eu cá dormi como um chumbo, disse Cirino; acordei com um tiro...

—Não há de poder enfiar outra soneca; daqui a um nadinha, está o sol batendo no terreiro.

Com efeito, depressa caminhava o alvorecer, e debaixo daquelas vivas impressões acordaram aqueles que haviam conciliado o sono, na morada de Pereira.