Era jovem, e bem jovem, o baiano Junqueira Freire! Nas­cido no dia 31 de Dezembro de 1832, entrou para o con­vento dos Beneditinos na idade de 19 anos, e nele passou o tempo precioso da juventude. Conseguiu porém secula­rizar-se em 1854, trocando então a solidão pela sociedade, e deixando a célula do monge para se atirar na existência contrariada do mundo.

A parca cruel arrebatou-lhe a vida imediatamente; cei­fou-a assim em flor, sem nenhuma piedade e no momento em que, ao desabrochar, já espargia tanto aroma, e prometia à terra da pátria um gênio admirável!

Desapareceu do claustro; não era porém o mundo des­tinado para ele; desapareceu logo do mundo; deixou to­davia para memória um livro, pouco volumoso, mas rico de inspirações elevadas, de pequeno numero de páginas, e resplandecente de poesia, e poesia verdadeira!

São tão raros os poetas! Não faltam versificadores, prin­cipalmente nas línguas do meio-dia da Europa, cujas pala­vras se prestam excelentemente à rima, e é a frase já por si harmoniosa e cadente; os poetas que todavia nascem inspirados, e que a natureza enriquece com imaginação es­pantosa; os poetas verdadeiros, raros são, porque a Provi­dencia tem prediletos, e não podem ser estes numerosos.

Era Junqueira Freire poeta! O pequeno livro das INS­PIRAÇÕES DO CLAUSTRO o demonstra; ardia-lhe no cérebro a chama divina; ainda quente deve estar o seu corpo, se bem que já sepultado na terra, e já dele falamos como de uma coisa que foi, de uma nuvem que passou, e de um som que se sumiu no espaço.

Parece que teve um pressentimento de morte precoce: sabido do claustro, publicou o bebo livro das inspirações, e logo que o entregou ao mundo, como para deixar-lhe a dor e a saudade, fechou os olhos, e desceu à sepultura!

Não é novo este acontecimento na historia literária: Chat­terton morreu antes de 18 anos de idade, Gilbert chegou apenas aos 29.

Como Chatterton e Gilbert, sentia o poeta Junqueira Freire intensa necessidade de olhar para o céu e para a eternidade; no meio de suas dores do claustro, como aqueles seus irmãos, no meio das angustias da fome, apelava o vate para Deus, e no seio imenso do Criador do mundo encontrava abrigo e consolações:

Porque se me extasia a mente às vezes,
E vaga, e vaga, alígera e perdida
Pelas soidões do Armamento etéreo,
Bem como o serafim, que esguarda os mundos,
Livre os celestes paramos percorre?
Porque penetra, às vezes arrojada,
Nos mistérios recônditos do eterno,
E toda entorna-se a seus pés, - bem como
O alabastro de nardo aos pés do Cristo?
Porque se abraça em incorpóreo amplexo
Co'os angélicos seres de além-astros,
E, como as chaves das eternas portas,
Abre os tesouros do poder do Altíssimo,
E neles bebe inexauríveis gozos?

Extasia-se assim Junqueira Freire, o poeta que a Bahia e o Brasil acabam de perder, quando à mente lhe fulgu­rava a imagem solene da imensidade; sonhava, delirava, adivinhava, como sonham, deliram e adivinham os grandes gênios que nascem feitos e não se formam no mundo.

Poeta, que vida fora a tua? tu o dizes quando pintas as dores do claustro. Ali se quebrou a tua juventude como o aço ao roçar da pedra; perderam-se os teus gemidos pelos longos corredores e sombrias celas: ajoelhado ao pé do altar, e em cima de sepulturas, é que te vinha o alívio, a espe­rança, e a voz. do anjo, que te chamava para outro mundo, que devia ser o teu, pois que é o mundo que te merecia.

Gosto de meditar, de noite, às vezes,
       Como um infante,
Espasmado no olhar, fitando o corpo
       Que tem diante.

Entre tantos cânticos e pela máxima parte cânticos de dor, que lhe arranca a solidão, parece que não há escolha; contêm quase todos belezas que denunciam um gênio poético da primeira plana: imaginação, sentimento, idéias, paixões, inspiração sublime, tudo se alia perfeitamente com a seleção da palavra, o apropriado da frase, a maviosi­dade do verso e a justeza da rima.

Junqueira Freire, se pela imaginação pertencia à escola de Sousa Caldas, Francisco Manuel, Almeida Garrett e Diniz, pela forma, vestes exteriores, e metrificação, recebeu de certo lições de Gonzaga, Camões, Garção, Bocage e José Basílio da Gama.

Como é lindo e melancólico o cântico intitulado — Um pedido!

Com este cântico rivalizam em doçura e tristeza o da profissão de frei João das Mercês Ramos, a canção intitu­lada— Ela, —os versos aos jesuítas, cheios duma cor local brasileira, que muito agradam, e as elegias — Flor murcha do altar, Freira, e Devota; derrama-se a poesia por todas as estrofes, versos, frases, e palavras; sente-se com a sua leitura, e sente-se profundamente, a perda dum gênio que começava os seus vôos, que já se podem chamar — vôos de águia!

Ah! se a dura morte se não apressasse a riscá-lo do numero dos viventes; se este jovem de 22 anos tivesse tempo de amadurar o seu engenho, moderar e regularizar a sua inspiração, colher no estudo mais profundeza de pen­samentos, que grande poeta que fora, e quanta glória der­ramaria sobre o seu país natal!

O cântico à profissão de frei João das Mercês denota o sentimento, mágoa e dor, que já haviam começado a apo­derar-se do seu espírito, e desbotar-lhe as cores mais suaves; o isolamento do claustro não poderá vencer as paixões do jovem, e quebrar-lhes os brios naturais; afigurava-se-lhe o claustro um inferno medonho, aonde lhe haviam enterrado a existência para lha amargurar e emurchecer; no meio das suas angustias exalava suspiros desesperados como os Claustros, Apóstata, Converso, e Misantropo; às vezes fe­lizmente o salvava o sopro divino, arrebatando-lhe o espírito e vôos para as idéias melancólicas, religiosas e morais, que brilham e resplandecem primorosamente na Meditação, Incenso do altar, Irmãs de caridade, e Pobre soberbo.

Quereis ouvir como se perdia aquele espírito poético, quando balançando entre a desesperação do isolamento e as crenças religiosas, entre as saudades da vida humana e a prisão da célula, fazia soar a lira com arrebatamentos do­lorosos? Lede o Cântico à profissão de frei João das Mercês.

Versos expressivos tem também o cântico da Meditação; há um doer constante, e penar contemplativo, que se ob­serva nesta existência juvenil e ardente, que fere e rasga o peito, e chama as lágrimas aos olhos.

Oh! morra o coração — gérmen fecundo
       De mil tormentos;
Desfaleçam-lhe as fibras — espedacem-se
       Os filamentos.

Isenta de paixões — de amor, ou ódio,
       Surja a razão;
Não obedeça escrava aos sentimentos
       Do coração.


Torne-se o coração lâmpada extinta,
       Cinza no lar;
E deixe que a razão veleje livre
       Em largo mar.

Creia num Deus — e dos dulçores goze
       De almo ascetismo;
Não mais lhe roa as vísceras o cancro
       Do cepticismo.

A dívida infernal, batendo as azas,
       Perdendo as cores,
Precipite-se súbito nas chamas
       Exteriores.

E Deus, que vivifica o alvar pinheiro,
       E a tenra planta;
Que os soberbos calcina, e que os humildes
       Do pó levanta;

De minha vil baixeza, como os homens,
       Ah! — não se peja;
Que ele mão cheia de mil dons em todos
       Largo despeja.

Mas se ‘té 'qui parece deslembrado,
       Triste de mim!
Se não manda a guardar minh'alma dúbia
       Um querubim!

Se nunca se lembrar que um ente existe
       Nessa amargura!
Melhor não fora me gelasse o sangue
       A morte dura?

Bastam estes extractos para conhecer-se o gênio poético que se escondia sob as vestes do monge; servem eles para deplorar-se o passamento prematuro de uma existência tão cheia de futuro, de um engenho tão ricamente mimoseado pela Providencia divina. Como era jovem não podia escapar à sorte humana e aos defeitos da mocidade; há nos seus cânticos alguma exageração de sentimentos, alguma extravagância de idéias: é defeito da idade. É também influxo da escola de Lord Byron, cuja leitura se tem espalhado por todo o mundo, e produz nos cérebros juvenis tendências desordenadas, que só a idade, e a razão amadurecida sabem evitar.

O talento e o gênio poético nascem espontaneamente, re­cebem porém da educação, do tempo, do estudo, e do mundo, o aperfeiçoamento necessário que lhe troca as vestes brilhantes e sedutoras do fogo ardente pelos vôos acertados e sublimes do entusiasmo refletido.

Tem canções que revelam qualidades de Juvenal: a can­tata a Frei Bastos, que parece que ajuntava os dotes da poesia e oratória a vícios imundos que lhe estragavam o corpo e dessecavam-lhe o espírito, é interessantíssima, alem de pitoresca: denuncia a força do poeta, e a elevação do espírito que o animava.

Não foi infelizmente Junqueira Freire o único poeta dos nossos dias e da nossa terra que a morte ceifou na juven­tude, roubando à literatura brasileira escritos, que prometia gloriosos o gênio das florestas americanas. Dutra e Mello, Álvares de Azevedo, Francisco Bernardino, Pinheiro Guimarães, e Casimiro dAbreu já também desceram ao sepulcro, legando poesias inacabadas, que provam todavia que sobre este solo não espargiu somente o Criador da na­tureza favores divinos para o bem estar, crescimento, e ri­queza do povo, que o habita. Pretendeu também, em sua infinita bondade, que o espírito se elevasse, e a imaginação dos homens subisse à compreensão dos seus mistérios, podendo satisfazer as precisões morais da sociedade, que se necessita de marchar fisicamente, não consegue fortalecer-se, e medrar sem o alimento para a alma, e a instrução para o pensamento imaterial, que dirige o homem.

Durante os tempos coloniais enriqueceu-se a literatura portuguesa com os produtos dos gênios, que criou a sua conquista dos Trópicos. Era de razão, porque formávamos todos o mesmo país, e um só reino. Basílio da Gama, Sousa Caldas, Durão, Alexandre de Gusmão, Antonio José, Rocha Pitta, os dois Alvarengas, Gregório de Mattos, Benevides, os bispos de Coimbra e Elvas, Moraes, Bartolomeu Gus­mão, Cláudio Manuel, Mello Franco, São Carlos, Antonio de Sá, Vidal de Negreiros, Câmaras, Conceição Velloso, e tantos engenhos mais, nascidos no Brasil, enriqueceram as páginas da historia portuguesa nas artes, ciências, letras, e política; nos campos sanguinolentos da guerra, e nas agradáveis planícies da paz. Ergue-se com a sua emancipação política uma nação nova, à qual D. Pedro I e José Bonifácio ensinam os primeiros passos, e ilustra o visconde de Cairu com a sua instrução variada.

Brilham já a tribuna sagrada e parlamentar com uma glória própria. Uma historia nacional se ergue à parte, e caminha o país para os seus destinos particulares. Animam associações literárias o desenvolvimento espiritual.

São Leopoldo pratica o ramo histórico, acompanhado por J. F. Lisboa, Varnhagem, Januário, e Pedro Branca entoam cânticos agradáveis. Abre Magalhães espaços novos para a poesia. Seguem-no Gonçalves Dias, Porto-Alegre, Firmino, Norberto, Macedo, e tantos jovens talentos que fulguram no horizonte da pátria. Reúne e publica o Insti­tuto materiais os mais importantes para a historia e geografia. Já mesmo no teatro aparecem engenhos originais, que traçam cenas copiadas do povo com quem vivem.

Brilham ainda hoje mais as letras, na verdade, no seio da antiga metrópole; não estão porém nela mais adiantadas as ciências práticas e abstratas: e os progressos materiais no Brasil tomaram sem dúvida a dianteira; a liberdade política ganhou mais profundas raízes; e a amor às insti­tuições tornou-se mais universal, e seguro.

Corra o tempo. Desapareçam todas as rivalidades, filhas de prejuízos antigos e hoje sem a menor base. A língua é a mesma; e ajudando-se ambas as literaturas, honrar-se-á cada uma das duas nações com o que é seu próprio, e lutarão, sem o mesquinho espírito da inveja e despeito, no vasto e brilhante teatro da inteligência humana, elogiando-se e estimando-se mutuamente.

Assim o praticam os Estados-Unidos da América do Norte, e não deram eles à Inglaterra, durante os tempos coloniais, vultos notáveis, que honrassem a mãe pátria, como o fez o Brasil para com Portugal. A independência das colônias britânicas forneceu-lhes ocasião então de tornar conhecidos Franklin e Washington à nacionalidade que criaram, devem o impulso e movimento que recebem os espíritos atualmente. Irving, Cooper, Story, Longfellow, Webster, Pres­cott, Banckroft, Wheaton e Maury, são vivas demonstrações de que a terra americana produz também talentos que honram a língua inglesa, e em todos os ramos dos conhecimentos humanos. Distingue-se porém a literatura propriamente da América; forma já uma espécie de nacionalidade; guarda como que uma autonomia. Há no colorido, na expressão, e no próprio desenho a especialidade do compatriota de Washington; diferem as sociedades em pontos sensíveis, como pode a literatura deixar de acompanhá-las, quando não é ela mais do que a imagem intelectual das socieda­des?

Possui a Grã-Bretanha os seus clãs e montanheses, as suas lutas civis, e torneios do cavalheirismo, para que um Walter Scott os pinte, e poetize um Shakespeare, historia­dores nacionais mais profundos do que Hume e Robertson. Apresenta a América do Norte os seus índios bravios, com os pitorescos costumes, e hábitos originais, guerreando constantemente os invasores europeus, que vinham roubar-­lhes a terra, a caça, os lagos e os rios, aonde viviam e vi­veram os seus avós: é esta a primeira diferença, histórica inteiramente. Nasce a segunda do estado atual do governo, instituições, leis, usos e tendências: que separação imensa entre os dois povos! Aparece ainda uma terceira, e notavelmente grave. O americano de hoje não é mais o descendente do inglês, é tão inglês como é este normando; procede o povo inglês de hoje de uma única raça, saxônica, normanda, ou da primitiva, que encontraram os romanos, quando, no seu tempo de domínio universal, se apodera­ram das ilhas dalem da Mancha? De certo, não. Formou-se uma nação original da aglomeração de todos os povos, que para ali se dirigiram, e que, inimigos ao principio, se foram, depois das sucessivas conquistas, aproximando e aluando, reunindo elementos heterogêneos, e fundindo as raças. É assim hoje o povo americano. A origem foi, em geral, britânica; mas a torrente de colonização, e as tendências da democracia, a tem metamorfoseado já, de modo a nem reconhecer-se talvez mais a tintura primitiva. Amálgama de Alemão, Inglês, Francês. Espanhol, Ita­liano, e até de gente do Norte, tornou-se uma raça nova e distinta, cujos traços se manifestam à primeira vista, apesar da homogeneidade da língua. Não pode portanto escapar a sua literatura às divergências sensíveis e graves, que se­param a sua sociedade da sociedade da antiga metrópole.

Se bem que entre o povo do Brasil e o de Portugal não apareça uma tão grande diferença, porque nem as insti­tuições, e governo das duas nações se distinguem em tão larga escala, e nem tem o Brasil modificado a raça con­quistadora com a infusão de sangue de outras raças diversas, como sucedeu no Norte da América; há todavia no céu, na terra, nos mares, nos rios, na atmosfera, na distancia, nas produções da natureza, enfim, uma separação tão palpável, que já, durante os tempos coloniais, distinguiram se alguns poetas nascidos no Brasil, pelas vestes, colorido, e tendências de seus escritos, dos vates da Lusitânia, se bem que a maior parte, educando-se, e vivendo na Europa, adotaram inteiramente os hábitos portugueses, e seguiram as inspirações de Ferreira, Quita, e Sá de Miranda.

Souberam todavia tomar diferente direção, Cláudio Ma­nuel, Basílio da Gama, e Durão, que se podem apelidar os chefes da literatura brasileira, que hoje, com a emancipação política, e a vida própria da sociedade, desenvolve a sua autonomia, e segue os vôos da águia, que paira sobre as alcantiladas cordilheiras, que se perdem no espaço, e espantam e embelezam os olhos dos viajantes.

Erga-se pois a mocidade brasileira! Tenha fé nos seus destinos, e inspire-se com a pátria admirável, que lhe coube na partilha que fez da terra a Providencia divina! Desen­volva-se a sua literatura no meio do seu clima esplendido e soberbo, e encontre ela no seu povo o apoio e proteção, a que tem indisputável direito!