Vai e clama.
(Palavra do Senhor a Jeremias).


Porque se me extasia a mente às vezes,
E vaga e vaga, alígera e perdida,
Pelas soidões do Armamento etéreo,
Bem como o serafim que esguarda os mundos,
Livre os celestes páramos percorre?
Porque penetra, às vezes arrojada,
Nos mistérios recônditos do Eterno,
E toda intorna-se a seus pés, — bem como
O alabastro de nardo aos pés do Cristo?
Porque se abraça em incorpóreo amplexo
Co'os angélicos seres de além-astros,
E, como a chave das eternas portas,
Abre os tesouros do poder do Altíssimo,
E neles bebe inexauríveis gozos?
 
      Porque Deus — substância eterna —
      Donde minh’alma baixou,
      Quer às vezes que ela suba
      Ás delicias, que deixou.
 

Porque se me extasia a mente às vezes,
E por entre delíquios exaltados.
Desce às fatais, exteriores trevas,
Aos in sondáveis boqueirões do inferno,
Bem como o anjo da soberba outrora
Pela invisível destra fulminado?
Porque prova um prazer terrível, forte,
Em ver a imagem Desse horror tremendo,
Em ver a face Desse caos torvado,
Em ver o orgulho do pecado infindo?
Porque no fundo da geena ardente
Sentir procura as emoções mais bárbaras,
Gostar deseja sensações de fogo,
Como procura a fátua mariposa
Chamas de luz, que há de, talvez, queimá-la?
 
      Porque Deus também às vezes
      Para os abismos nos lança,
      Para vermos seus castigos,
      Seus tesouros de vingança!
 
Porque se me extasia a mente às vezes,
E sente em si um vácuo desmedido,
Uma infinita inanição ignota,
Como talvez o espaço, o qual se estende,
Se derrama e se perde a nossos olhos?
Porque procura — sequiosa, arfando —
Encher esse vazio indefinível,

Qual para lábios tórridos, queimados,
Enche-se um calix de cristal suave?
Porque procura, um coração estranho,
Qualquer embora, — mas que o seu não seja,
Para nele fundir-se inteiro, inteiro,
Como vários metais de varias sortes
Ao mesmo fogo idênticos se ligam?
 
      Porque Deus — saber eterno —
      Tais a nós nos quis formar:
      Quis a hera unida ao tronco,
      Quis a terra unida ao mar.
 
Porque se me extasia a mente às vezes,
E vaga pelo mundo, e julga os homens,
Qual severo juiz, e os escarnece,
E compondo um sarcasmo às frases suas
Co'o riso de Demócrito os insulta?
Porque descrê das afeições, que mostram,
Francos, singelos, como o rir do infante?
Porque despreza um coração de amigo,
Que o foi por tempos, na aparência ao menos,
E falsário, traidor, demônio o chama,
Por um assomo de suspeita ou cólera?
Porque da criação blasfema às vezes,
E tem por maus os sentimentos de homem,
E a natureza dos mortais exprobra
Ante o Senhor, que no-la deu tão justa?
 
      Porque

Deus também às vezes
      O braço de nós retira,
      Para vermos os perigos,
      Em que noss'alma se atira!
 
Porque se me extasia a mente às vezes,
E num enlevo mentiroso sonha,
E dá no seio de um prazer sem termos,
Esbarrando no amor, como na imagem
Da ventura maior que o mundo oferta?
Porque se abraça neste amor terrestre,
E as emoções mais físicas apura,
E as quer, e as busca, e tresloucado as ama
Co'a mesma devoção, que aos céus dedica?
Porque em tal modo o espírito embrutece,
E vai sua alma estúpida tornando,
Que às plantas da mulher, que dele zomba,
Chega a prostrar-se, e jura-lhe perverso
Paixão eterna, além da campa; — e o corpo
Dar ao martírio por amor promete?
 
      Porque Deus deixa a matéria
      Ter também sua vitória,
      Para que, — quando a alma vença, —
      Brilhe maior sua glória!
 
Porque se me extasia a mente às vezes,
— E quanto fui beber no céu, no inferno.

No mundo, em tudo, que medito ou vejo,
Por meus lábios de vate se derrama
Em torrentes de harmônica linguagem?
 
      Porque Deus pôs em meu peito
      Um tesouro de harmonia:
      Deu-me a sina de seus anjos,
      Deu-me o dom da poesia.
 
      Cantarei o céu, o inferno,
      O mundo, — o que me aprouver
      Cantarei a Deus, o homem,
      Os amores da mulher:
      Cantarei, em quanto vivo,
      Porque Deus assim o quer!