Pag. 1. – Argumento historico. – Em 1603, Pero Coelho, homem nobre da Parahyba, partio como capitão-mór de descoberta, levando uma força de 80 colonos e 800 indios. Chegou a fóz do Jaguaribe e ahi fundou o povoado que teve nome de Nova-Lisboa.
Foi esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará.
Como Pero Coelho se visse abandonado dos socios, mandarão-lhe João Soromenho com soccorros. Esse official, authorisado a fazer captivos para indemnisação das despesas, não respeitou os proprios indios do Jaguaribe, amigos dos portuguezes.
Tal foi a causa da ruina do nascente povoado. Retirarão-se os colonos, pelas hostilidades dos indigenas; e Pero Coelho ficou ao desamparo, obrigado a voltar a Parahyba por terra, com sua mulher e filhos pequenos.
Na primeira expedição foi do Rio-Grande do Norte um moço de nome Martim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos indios do littoral e seu irmão Poty. Em 1608 por ordem de D. Diogo Menezes voltou a dar princípio á regular colonisação daquella capitania: o que levou a effeito fundando o presidio de Nossa Senhora do Amparo em 1611.
Jacaúna, que habitava as margens do Acaracú, veio estabelecer-se com sua tribu nas proximidades do recente povoado, para o proteger contra os indios do interior e os francezes que infestavão a costa.
Poty recebeu no baptismo o nome de Antonio Phelipe Camarão, que illustrou na guerra hollandeza. Seus serviços forão remunerados com o foro de fidalgo, a comenda de Christo e o cargo de capitão-mór dos Indios.
Martim Soares Moreno, chegou a mestre de campo e foi um dos excellentes cabos portuguezes que libertarão o Brasil da invasão hollandeza. O Ceará deve honrar sua memoria como de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado á foz do rio Jaguaribe foi apenas uma tentativa frustrada.
Este é o argumento historico da lenda; em notas especiaes se indicarão alguns outros subsidios recebidos dos chronistas do tempo.
Ha uma questão historica relativa a este assumpto; fallo da patria do Camarão, que um escriptor pernambucano quiz pôr em duvida, tirando a gloria ao Ceará para a dar á sua provincia.
Este ponto, aliás sómente contestado nos tempos modernos pelo Sr. commendador Mello em suas Biographias, me parece sufficientemente elucidado já, depois da erudita carta do Sr. Basilio Quaresma Torreão, publicada no Mercantil n. 26 de 26 de janeiro de 1860, 2ª página.
Entretanto farei sempre uma observação.
Em primeiro lugar, a tradicção oral é uma fonte importante da história, e ás vezes a mais pura e verdadeira. Ora na província de Ceará em Sobral não só referião-se entre gente do povo notícias do Camarão, como existia uma velha mulher que se dizia delle sobrinha. Essa tradicção foi colhida por diversos escriptores, entre elles o conspicuo autor da Corographia Brasílica.
O author do Valeroso Lucideno é dos antigos o unico que pozitivamente affirma ser Camarão filho de Pernambuco; mas além de encontrar essa asserção a versão de outros escriptores de nota, acresce que Berredo explica perfeitamente o dito daquelle escriptor, quando falla da expedição de Pero Coelho de Souza a Jaguaribe, sitio naquelle tempo e tambem no de hoje da jurisdição de Pernambuco.
Outro ponto é necessário esclarecer para que não me censurem de infiel á verdade histórica. E' a nação de Jacaúna e Camarão que alguns pretendem ter sido a tabajara.
Há nisso manifesto engano.
Em todas as chronicas se falla das tribus de Jacaúna e Camarão, como habitantes do littoral, e tanto que auxilião a fundação do Ceará, como já havião auxiliado a da Nova Lisboa em Jaguaribe. Ora a nação, que habitava o littoral entre o Parnahyba e o Jaguaribe ou Rio-Grande, era a dos Pytiguaras, como attesta Gabriel Soares. Os Tabajaras habitavão a serra de Ibyapaba, e portanto o interior.
Como chefes dos Tabajaras são mencionados Mel Redondo no Ceará e Grão Deabo em Piauhy. Esses chefes foram sempre imnemigos irreconciliaveis e rancorosos dos portuguezes, e alliados dos francezes do Maranhão que penetrarão até Ibyapaba. Jacaúna e Camarão são conhecidos por sua alliança firme com os portuguezes.
Mas o que solve a questão é o seguinte texto. Lê-se nas memórias diarias da guerra brasilica do conde de Pernambuco: — 1834, Janeiro, 18: “Pelo bom procedimento com que havia servido A. Ph. Camarão o fez El-rei capitão-mór de todos os indios não sómente de sua nação, que era Pytiguar, nas das outras residentes em várias aldeias.”
Esta autoridade, alem de contemporanea, testemunhal, não pode ser recusada, especialmente quando se exprime tão positiva e intencionalmente a respeito do ponto duvidoso.