—No altar de Nossa Senhora... no altar de minha madrinha!... exclamou Maria, com a face coberta de lagrimas.—E, depois, meu tio—continuou ella—que lhe succedeu, quando tornou a si? Não lhe fizeram mais algum mal?

«Os flagellos não tinham ainda principiado, minha querida menina. Tu verás que a dôr de um golpe, não punge tanto como o escarneo de uma affronta moral. Quando recobrei o sentimento, pedi a Deus que me fechasse os olhos, e logo em seguida lhe pedi perdão da minha supplica. Compreendi nos meus padecimentos a expiação dos crimes da humanidade e a redempção dos meus peccados. Fui ahi trazido a pontapés, quando o sangue me escorrria da ferida. Fizeram-me, e aos meus companheiros, servir canecas de vinho áquella gente, que se movia em ondas pelos dormitorios, bramindo na embriaguez do seu odio. Quando a custo me pude desviar do tumulto, comprimi com o meu lenço a ferida, e esperei ensejo de poder fugir para morrer em paz debaixo de algum tecto piedoso. Não pude. Ao amanhecer fomos levados á casa do noviciado, e fechados á chave com vigias á porta, para não tentarmos o arrombamento.

«Olhavamo-nos com uma especie de idiotismo doloroso. Não sabiamos palavras de consolação, porque a amargura era extrema em todos. Em tamanha afflicção tinhamos só a linguagem da afflicção: oravamos. E nem um só reclinou a cabeça no chão para adormecer a agonia. Parece que o travo da morte, assim demorada, adoçára o coração de tantos infelizes. Nunca eu senti em mim tão santa, tão divina a influencia do temor de Deus. Esperava amanhecer na eternidade, á luz da justiça eterna, e da misericordia do Summo-Bem. A oração pelos meus inimigos era de um sabor indizivel, de um allivio intimo, que tanto mais se prende á creatura quanto ella se resigna nas tribulações! Bemdito seja nosso Senhor Jesus Christo, que por cada afflicto reparte uma faisca d'aquelle incendio de caridade em que expirára na cruz, pedindo a seu Pae o perdão para seus matadores!»

Frei Antonio não pudera, se quizesse, represar as lagrimas. A sua familia chorava, porque a voz convulsa, soturna, e sombria do padre, entrava no coração dos ouvintes, como as ultimas palavras do sacerdote no espirito do christão agonisante.

«O sol—proseguiu o padre—coava pelas frestas do noviciado uma restia pallida, que illuminava um crucifixo, esquecido pela populaça. Se cada um de nós fosse particularmente consultado em seu coração, no momento em que aquelle raio do sol nos allumiou, dissera a devoção fervente com que saudou a luz do céo, irradiando-se na effigie augusta do Creador do céo e da terra.

«Decorreu uma hora, sem que o silencio nos fosse quebrado por alguma voz. Julgámos abandonado o mosteiro como cidade viuva de seus filhos e espoliada das suas alfaias. Um de nós foi á porta escutar, e desmentiu as nossas conjecturas. Junto á porta resonavam profundamente as nossas guardas.

«Soaram nove horas, quando os primeiros echos reboaram pelos dormitorios. Como atalaias nocturnas, os brados reproduziram-se, reforçaram e subiram ao alarido compacto com que principiaram. Os vituperios vinham, como ondas sobrepostas, bater á porta do nosso carcere.

«A porta foi de improviso aberta. Mandaram-nos enfileirar. Cercaram-nos como a animaes extranhos, que movem a curiosidade. Emquanto eramos insultados por palavras de um outro menos soffrido e mais ultrajador, cuspiam-nos na face, e arrancavam-nos os cabellos. As mulheres, com as faces rubras do vinho, e com as linguas afiadas no sarcasmo villão e truanesco do seu officio, soltavam-nos aos ouvidos risadas ferozes, mixturadas com empuxões que nos davam ao capello, e aos cordões do habito. Esta situação penosa e indizivel durou meia hora.

«Mandaram-nos saír, escoltados, e fazer alto no pateo do mosteiro. Ahi lançaram ao primeiro uma corda ao pescoço, que vinha encadeando um por um até ao derradeiro monge. Depois mandaram-nos curvar o pescoço tanto quanto fosse preciso para assentar uma albarda. Penduraram-nos algumas campainhas ao pescoço, e mandaram-nos andar.

«Caminhámos uma legua, e fizeram-nos parar para reconhecermos um cadaver que se dizia pertencer ao brigadeiro realista Pessoa. Era effectivamente o seu. Dias antes estivera elle em nossa casa, já de retirada para a sua, visto que as forças sitiantes do Porto começavam a dispersar. Pedimos-lhe que se acautelasse porque os seus maus feitos tinham excitado o odio, e a vingança. Respondeu-nos, que tinha um salvo-conducto na sua honra, e na sua consciencia pura. A sua consciencia não devia estar tranquilla... Este mau homem fôra morto n'uma ribanceira pedregosa que nos ficava ao lado esquerdo da estrada.

«Caminhámos outra legua, e fomos mettidos n'uma cadeia, onde mal nos podiamos mexer. As prisões do pescoço affligiam-nos muito; e a sentença de morte fôra-nos lida quando entrámos, no caso de quebrarmos a «arreata» como elles nos disseram.

«Não vos posso contar com miudeza que tormentos provámos durante vinte dias que ahi vivemos. O frio, a fome, a insomnia, a falta de respiração, todas as privações que pode soffrer um homem, bemdito seja Deus, complicaram-se ahi... Que padecimentos! A piedade tremia de approximar-se do nosso infortunio. Homens bem trajados apiedavam-se; mas temiam o povo esfarrapado. Algum boccado de pão vinha através de difficuldades, e no ardor da sede as lagrimas serviam-nos de refrigerio aos labios queimados da febre.

No fim de vinte dias foi-nos dada a liberdade, sob a condição de não caminharmos para o sul. A infracção d'esta lei implicava pena de morte. Pensavam que viriamos procurar o exercito do sr. D. Miguel. A condição era escusada para mim. Ministro de Deus, jurado á caridade e ás humilhações, o meu braço, consagrado á elevação da hostia, não levantaria o ferro contra homens, ou barbaros, ou portuguezes. Eu maldigo em nome de Deus os meus irmãos que borrifaram de sangue a tunica legada pelos apostolos. A arma do sacerdote é o coração votado a abrandar a justiça do Altissimo, que faz dos homens o instrumento de sua vingança contra homens. Se me chamassem ao mais perigoso de um combate para acalmar, em nome de Deus e da caridade, as iras sanguinarias dos partidos, eu cruzaria as balas, e as baionetas travadas, corajoso, como um filho da patria, e um sacerdote de Christo. Viria, meu irmão, viria ajoelhar-me na frente do teu regimento, e pedir-te em nome da tua esposa e de teus filhos, que me deixasses fallar ao rei antes que mandasse voar a morte das espingardas dos teus soldados.[1]

Estás anciosa pela continuação da historia, minha menina? Olhas tanto para mim!... Tens entristecido com as desventuras do teu pobre tio?

—E tenho chorado... o tio não vê?

—Vejo, vejo, menina. E sabias que no mundo havia homens que fizessem assim padecer outros de quem não receberam alguma offensa?

—Pensei que não... Meu pae, e minha mãe, e meus irmãos são todos tão bons, tão meus amigos, tão dados uns com os outros... e eu não conhecia mais ninguem. E como é possivel ser-se assim tão cruel, diga-me, meu tio?

—Digo... direi, minha filha... mais tarde... Queres agora o fim da minha triste peregrinação até á casa de teus paes?

—A tua casa, meu irmão—atalhou o coronel.

—Sim, sim, a sua casa, meu caro irmão—disse a esposa do coronel.

—Pois não somos nós todos a mesma familia?!—perguntou Maria com um sorriso de candida alegria e admiração.

—Graças vos sejam dadas, meu Deus!—-exclamou o padre.

Notas editar

  1. Se Fr. Antonio ampliasse um pouco mais estas suas reflexões muito judiciosas, invectivaria os frades que, fóra das linhas de Lisboa, despejavam fogo para os de dentro com uma coragem e disciplina digna de granadeiros da guarda imperial. Alguns d'esses estavam ahi provando pela pratica as theorias vociferadas do pulpito, desde 1828 até 1832. Não foi mais do que lançar um correame sobre o habito, e substituir ao som da palavra incendiaria o som do arcabuz homicida. Se não receássemos desnaturalisar o romance pondo na bocca de frei Antonio censuras inverosimeis aos da sua politica, se é que elle tinha alguma além da do Evangelho, seria elle o que nos poupasse o trabalho d'esta nota para que se não diga que o auctor acoberta um pensamento hostil á liberdade, afeiando o quadro inevitavel, no conflicto d'ella com o despotismo em paroxismo. A leitores de má fé respondemos com a boa fé de imaginarmos, antes de começar o romance, que os não teriamos... [N. do Autor]