VI

A FRANCESA E O GIGANTE

 

Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papiri pros três morarem porém jamais que papiri se acabava. Os puxirões goravam sempre porque Jiguê passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou numa colher, virou-a num bichinho e falou:

— Agora você fica sovertida no pó de café. Quando mano Maanape vier beber, morda a língua dele!

Então pegando num cabeceiro de algodão, virou-o numa tatorana branca e falou:

— Agora você fica sovertida na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele!

Maanape já vinha entrando na pensão pra beber café outra vez. O bichinho picou a língua dele.

— Ai! Maanape fez.

Macunaíma bem sonso falou:

— Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não.

Maanape teve raiva. Atirou o bichinho muito pra longe falando:

— Sai, praga!

Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte. O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até virou rosado.

— Ai! que Jiguê gritou.

E Macunaíma:

— Está doendo, mano? Ora veja só! Quando tatorana me chupa até gosto.

Jiguê teve raiva e atirou a tatorana longe falando:

— Sai, praga!

E então os três manos foram continuar a construção do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma do outro pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam tiriricas e desejando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais na frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói.

— Ui! que o herói fez.

Os manos bem sonsos gritaram:

— Uai! está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói!

Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou:

— Sai, peste!

Veio onde estavam os manos:

— Não faço mais papiri, pronto!

E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de içás que tomou São Paulo por três dias.

O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.

No outro dia, com o pensamento sempre na Marvada, o herói percebeu que xetrara mesmo duma vez e nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão porque agora Venceslau Pietro Pietra já o conhecia bem. Imaginou imaginou e ali pelas quinze horas teve uma ideia. Resolveu enganar o gigante. Enfiou um membi na goela, virou Jiguê na máquina telefone e telefonou pra Venceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a respeito da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado.

Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia-de-seda, a máquina combinação com cheiro de casca-sacaca, a máquina cinta aromada com capim-cheiroso, a máquina decoletê úmida de patchuli, a máquina mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com azul de pau-campeche os olhinhos de piá que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau Pietro Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente.

Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo de tesoura. Não gostou da caguira não e pensou abandonar o randevu porém como promessa é dívida fez um esconjuro e seguiu.

Lá chegado encontrou o gigante no portão, esperando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindíssima com esteios de acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de muirapiranga e pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem no centro havia uma mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada de Breves e cerâmica de Belém, dispostas sobre uma toalha de rendas tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista vindo dos frigoríficos da Continental, uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação, de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias de chuva. E inda havia dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados de papel os esplêndidos bombons Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté com desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre.

A francesa sentou numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando. Estava com muita fome e comeu bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã! Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a francesa pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a pedra também não.

— Você imagina então que vou cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual!

— Mas eu estou querendo tanto a pedra!...

— Vá querendo!

— Pois tanto se me dá como se me dava, regatão!

— Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua! Colecionador é que é!

Foi lá dentro e voltou carregando um grajau tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo-d’água tinideira esmeril lapinha ovo de pomba osso de cavalo machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do igarapé Alegre, rubis e granadas do rio Curupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo tamanho que Oaque o pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajau.

Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a joia da coleção era mesmo a muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar... “Conforme...” O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de “conforme”, ficou muito inquieto. Matutou: “Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!... Cai fora, peruano sem-vergonha!”. E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa pulou numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma cochichou pra ela:

— Caterina, sai daí sim?

Caterina nem gesto. Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou:

— Caterina, sai daí que sinão te bato!

A mulatinha ali. Então Macunaíma deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela.

— Caterina, me larga minha mão e vai-te embora que te dou mais tapa, Caterina!

Caterina era mas uma boneca de cera de carnaúba posta ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu outro tapa com a mão livre e ficou mais preso.

— Caterina, Caterina! me larga minhas mãos e vai-te embora pixaim! sinão te dou um contapé!

Deu o pontapé e ficou mais preso ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita. Então chegou Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou pro cesto:

— Abra a boca, cesto, abra a vossa grande boca!

O cesto abriu a boca e o gigante despejou o herói nele. O cesto fechou a boca outra vez, Piaimã carregou-o e voltou. A francesa em vez de bolsa estava armada com o mênie que serve pra guardar as flechinhas da sarabatana. O gigante deixou o cesto encostado na porta de entrada e afundou casa adentro pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém o mênie era de pano cheirando pixé de caça. O gigante desconfiou daquilo e perguntou:

— Vossa mãe é tão cheirosa e gordinha que nem você, criatura?

E revirou os olhos de gozo. Ele estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa era Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta e principiou ficando excessivamente inquieto. “Pois então será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha pra ter mudado a natureza? te esconjuro, credo!” Então assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguara do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro. O cachorro correu atrás. Correram correram. Passaram lá rente à Ponta do Calabouço, tomaram rumo de Guajará Mirim e voltaram pra leste. Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena o fugitivo avistou uma vaca no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar porém a vaca era de raça Guzerá muito brava. Escondeu o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma oração assim:


Valei-me Nossa Senhora,

Santo Antônio de Nazaré,

A vaca mansa dá leite,

A braba dá si quisé!


A vaca achou graça, deu leite e o herói chispou pro sul. Atravessando o Paraná já de volta dos pampas bem que ele queria trepar numa daquelas árvores porém os latidos estavam na cola dele e o herói isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava:

— Sai, pau!

E desviava de cada castanheira, de cada pau-d’arco, de cada cumaru bom de trepar. Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro enterrado... Porém Macunaíma estava com pressa e frechou pras barrancas da ilha do Bananal. Enfim enxergou um formigueiro de trinta metros abrindo um olho no rés do chão bem na frente. Barafustou subindo pelo buraco adentro e se encolheu no alto. O jaguara ficou acuando ali.

Então o gigante veio e topou com o jaguara acuando o formigueiro. Bem na entrada a francesa perdera uma correntinha de prata. “Meu tesouro está aqui” murmurou o gigante. Então o jaguara desapareceu. Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma palmeira inajá e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o pelo buraco por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela! Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá. Vendo que a francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar pimenta. Trouxe uma correição das formigas anaquilãs que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram no herói. Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança. Pinchou fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma:

— Agora que te agarro mesmo porque vou buscar a jararaca Elitê!

Quando ouviu isso o herói gelou. Com a jararaca ninguém não pode não. Gritou pro gigante:

— Espera um bocado, gigante, que já saio.

Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do peito e botou na boca do buraco falando:

— Primeiro bota isso pra fora, faz favor.

Piaimã estava tão furibundo que atirou os mangarás longe. Macunaíma presenciou a raiva do gigante.

Tirou a máquina decoletê, pôs ela na boca do buraco, falando outra vez:

— Bota isso pra fora, faz favor.

Piaimã inda atirou o vestido mais longe. Então Macunaíma botou a máquina cinta, depois a máquina sapatos e foi fazendo assim com todas as roupas. O gigante isso já estava fumando de tão danado. Jogava tudo longe sem nem olhar o que era. Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou:

— Agora me bote pra fora só mais esta cabaça fedorenta.

Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os mororós.

Chegou na pensão tomando a bênção de cachorro e chamando gato de tio, só vendo! suando esfolado com fogo nos olhos, botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado de fome bateu uma fritada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó molhando a janta com mocororó. Descansou.

Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não. Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante. Porém não achava graça em colecionar pedras não porque já tinha uma imundície delas na terra dele pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos animais passarinhos gentes e cunhãs e cunhatãs e até as graças das cunhãs e das cunhatãs... Pra que Praquê mais pedra que é tão pesado pra carregar! ... Estendeu os braços com moleza e murmurou:

— Ai! que preguiça!...

Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção de palavras-feias de que gostava tanto.

Se aplicou. Num atimo reuniu milietas delas em todas as falas vivas e até nas linguas grega e latina que estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstancias da vida e sentimentos humanos. Cada bocagem! Mas a joia da coleção era uma frase hindú que nem se fala.