VII

MACUMBA

 

Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era matar Piaimã... Então saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o vento sacudia a folhagem na altura porém. “Inda não tenho bastante força não”, Macunaíma refletiu. Agarrou num dente do ratinho chamado crô, fez uma bruta incisão na perna, de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pensão. Estava desconsolado de não ter força ainda e vinha numa distração tamanha que deu uma topada. Então de tanta dor o herói viu no alto as estrelas e entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. “Quando mingua a Luna não comeces coisa alguma” suspirou. E continuou consolado.

No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.

Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe de santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de açacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo pro chão de terra.

Vai, um rapaz filho de Oxum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.

Então a macumba principiou de deveras se fazendo um sairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexemexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:

— Va-mo sa-ra-vá!...

Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar:

— Ôh Olorung!

E a gente secundando:

— Va-mo sa-ra-vá!...

Tia Ciata continuava:

— Ôh Boto-Tucuxi!

E a gente secundando:

— Va-mo sa-ra-vá!...

Docinho numa reza mui monótona.

— Ôh Iemanjá! Anamburucu! e Oxum! três Mães-d’água!

— Va-mo sa-ra-vá!...

Assim. E quando a Tia Ciata parava gritando com gesto imenso:

— Sai Exu!

porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:

— Uúum!... uúum!... Exu! Nosso padre Exu!... E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O sairê continuava:

— Ôh Rei Nagô!

— Va-mo sa-ra-vá!...

Docinho na reza monótona.

— Ôh Baru!

— Va-mo sa-ra-vá!...

Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:

— Sai Exu!

porque Exu era o pé de pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:

— Uúum!... Exu! Nosso padre Exu!...

E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.

— Ôh Oxalá!

— Va-mo sa-ra-vá!...

Era assim. Saudaram todos os santos da pajelança, o Boto-Branco que dá os amores. Xangô, Omulu, Iroco, Oxosse, a Boiuna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar muito, todos esses santos e o sairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda aquela gente suando, médicos padeiros engenheiros rábulas polícias criadas focas assassinos Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe de santo imóvel. Já quase todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o caxiri temível cujo nome é cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande gargalhada.

Depois da bebida, entre bebidas, seguiram as rezas de invocação. Todos estavam inquietos ardentes desejando que um santo viesse na macumba daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não vinha por mais que os outros pedissem. Porque a macumba da tia Ciata não era que nem essas macumbas falsas não, em que sempre o pai de terreiro fingia vir Xangô Oxosse qualquer, pra contentar os macumbeiros. Era uma macumba séria e quando santo aparecia, aparecia de deveras sem nenhuma falsidade. Tia Ciata não permitia dessas desmoralizações do zungu dela e fazia mais de doze meses que Ogum nem Exu não apareciam no Mangue. Todos desejavam que Ogum viesse. Macunaíma queria Exu só pra se vingar de Venceslau Pietro Pietra.

Entre golinhos de abrideira, uns de joelhos outros de quatro, todas essas gentes seminuas rezavam em torno da feiticeira pedindo a aparição dum santo. À meia-noite foram lá dentro comer o bode cuja cabeça e patas já estavam lá no peji, na frente da imagem de Exu que era um tacuru de formiga com três conchas fazendo olhos e boca. O bode fora morto em honra do diabo e salgado com pó de chifre e esporão de galo de briga. A mãe de santo puxou a comilança com respeito e três pelo-sinais de atravessado. Toda a gente vendedores bibliófilos pés-rapados acadêmicos banqueiros, todas essas gentes dançando em volta da mesa cantavam:


Bamba querê

Sai Aruê

Mongi gongô

Sai Orobô

Êh!...


Ô mungunzá

Bom acaçá

Vancê nhamanja

De pai Guenguê,

Êh!...


E conversando pagodeando devoraram o bode consagrado e cada qual buscando o garrafão de pinga dele porque ninguém não podia beber no de outro, todos beberam muita caninha, muita! Macunaíma dava grandes gargalhadas e d e repente derrubou vinho na mesa. Era sinal de alegrão pra ele e todos imaginavam que o herói era o predestinado daquela noite santa. Não era não.

Nem bem reza recomeçou se viu pular no meio da saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio com o gemido meio choro e puxar canto novo. Foi um tremor em todos e as velas jogaram a sombra da cunhã que nem monstro retorcido pro canto do teto, era Exu! Ogã pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo, canto livre, de notas afobadas cheio de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de fúria. E a polaca muito pintada na cara, com as alças da combinação arrebentadas, estremecia no centro da saleta, já com as gorduras quase inteiramente nuas. Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e depois na barriga, juque! com estrondo. E a ruiva cantando cantando. Afinal a espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu o tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura.

Passou um tempo de silêncio sagrado. Então tia Ciata se levantou da tripeça que uma mazombinha substituiu no sufragante por um banco novo nunca sentado, agora pertencendo pra outra. A mãe de terreiro veio vindo veio vindo. Ogã vinha com ela. Todos os outros estavam de-pé se achatando nas paredes. Só tia Ciata veio vindo veio vindo e chegou junto do corpo duro da polaca no centro da saleta ali. A feiticeira tirou a roupa, ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos de contas de prata pingando nos ossos. Foi tirando da cuia que ogã pegava o sangue coalhado do bode comido e esfregando a pasta na cabeça da babalaô. Mas quando derramou o efém verdento em riba, a dura se estorceu gemida e o cheiro iodado embebedou o ambiente. Então a mãe de santo entoou a reza sagrada do Exu, melopeia monótona.

Quando acabou, a fêmea abriu os olhos, principiou se movendo bem diferente de já-hoje e não era mais fêmea era o cavalo do santo, era Exu. Era Exu, o romãozinho que viera ali com todos pra macumbar.

O par de nuas executava um jongo improvisado e festeiro que ritmavam os estralos dos ossos da tia, os juques dos peitos da gorda e o ogã com batidos chatos. Todos estavam nus também e se esperava a escolha do Filho de Exu pelo grande Cão presente. Jongo temível... Macunaíma fremia de esperança querendo o cariapemba pra pedir uma tunda em Venceslau Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de supetão, entrou gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando com vitória. E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá.

Terminada a cerimônia o diabo foi conduzido pra tripeça, principiando a adoração. Os ladrões os senadores os jecas os negros as senhoras os futebóleres, todos, vinham se rojando por debaixo do pó alaranjando a saleta e depois de batida a cabeça com o lado esquerdo no chão, beijavam os joelhos beijavam todo o corpo do uamoti. A polaca vermelha tremendo rija pingando espuminha da boca em que todos molhavam o mata-piolho pra se benzerem de atravessado, gemia uns roncos regougados meio choro meio gozo e não era polaca mais, era Exu, o jurupari mais macanudo daquela religião.

Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exu consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio dele e Exu se riu falando que isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora municipal para casarem e Exu consentiu. Um médico fez um discurso pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não consentiu. Assim. Afinal veio a vez de Macunaíma o filho novo do fute. E Macunaíma falou:

— Venho pedir pra meu pai por causa que estou muito contrariado.

— Como se chama? perguntou Exu.

— Macunaíma, o herói.

— Uhum... o maioral resmungou, nome principiado por Ma tem má sina...

Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo o que ele pedisse porque Macunaíma era filho. E o herói pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.

Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar. Esperou um momento, o eu do gigante veio, entrou dentro da fêmea, e Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no corpo polaco. O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que mais deu. Exu gritava:


— Me espanca devagar

Que isto dói dói dói!

Também tenho família

E isto dói dói dói!


Enfim roxo de pancada sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando no chão. E era horroroso... Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar um banho salgado e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse pisando vidro através dum mato de urtiga e agarra-compadre até as grunhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos de vidro, unhadas de espinhos e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra recebesse o guampaço dum marruá, o coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes quarenta mil formigas-de-fogo e o corpo de Exu retorceu sangrando empolando na terra, com uma carreira de dentes numa perna, com quarenta vezes quarenta mil ferroadas de formiga na pele já invisível, com a testa quebrada pelo casco dum bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu dum cheiro intolerável. E Exu gemia:


— Me chifra devagar

Que isto dói dói dói!

Também tenho família

E isto dói dói dói!


Macunaíma ordenou muito tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau Pietro Pietra aguentou pelo corpo de Exu. Afinal a vingança do herói não pôde inventar mais nada e parou. A fêmea só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio fatigado. E era horroroso.

Lá no palácio da rua Maranhão em São Paulo tinha um corre-corre sem parada. Vinham médicos veio a Assistência todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava todo urrando. Mostrava uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia coice de potro, queimado enregelado mordido e todo cheio das manchas e galos duma tremendérrima sova de pau.

Na macumba continuava o silêncio de horror. Tia Ciata veio maneira e principiou rezando a reza maior do diabo. Era a reza sacrílega entre todas, que se errando uma palavra dá morte, a reza do Padre Nosso Exu, e era assim:

— Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis te quereremo muito, nóis tudo!

— Quereremos! quereremos!

— ... O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!... Glória pra pátria jeje de Exu!

— Glória pro fio de Exu!

Macunaíma agradeceu. A tia acabou:

— Chico-t era um príncipe jeje que virou nosso padre Exu dos século seculoro pra sempre que assim seja, amém.

— Pra sempre que assim seja, amém!

Exu ia sarando sarando, tudo foi desaparecendo por encanto quando a caninha circulou e o corpo da polaca virou são outra vez. Se escutou uma bulha tamanha e tomou o espaço um cheiro de breu queimado enquanto a fêmea deitava pela boca um anel de azeviche. Então voltou do desmaio vermelha gorda só que mui fatigada e agora estava só a polaca ali, Exu tinha ido embora.

E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então tudo acabou se fazendo a vida real. E os macumbeiros, Macunaíma, Jayme Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada.