XII

A VELHA CEIUCÍ

 

Então Macunaíma se lembrou de fazer uma pescaria. Porém não podia pescar nem de frexa nem com timbó nem joticá nem cunambi nem tingui nem macerá nem no pari nem com linha nem arpão nem juquiai nem sararaca nem gaponga nem de poita nem de cassuá nem itapuá nem de giqui nem de grozera nem de gererê, guê, tresmalho, Cóvo, anzol de vara, todos esses objetos armadilhas e venenos porque não possuia nada disso. Fez um anzol com cera de mandaguari porêm bagre mordia, levava anzol e tudo. Porém tinha ali perto um inglês pescando aimarás com anzol de verdade. Macunaíma voltou pra casa e falou pra Maanape:

— Quê que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar aimará de mentira pra enganar o bife. Quando ele me pescar e der a batida na minha cabeça então faço “juque!” enganando que morri. Ele me atira no samburá, você pede o peixe mais grande pra comer e sou eu.

Fez. Virou num aimará pulou na lagoa o inglês pescou-o e bateu na cabeça dele. O heroi gritou “Juque!” Mas o inglês tirou o anzol da guela do peixe porêm. Maanape veio vindo e muito disfarçado pediu pro inglês:

— Dá peixe pra mim, seu Yes?

— All right. E deu um lambarí de rabo vermelho.

— Ando padecendo de fome, seu inglês! dá um macota, vá! êsse um gordinho do samburá!

Macunaíma estava com o ôlho esquerdo dormindo porêm Maanape conheceu-o bem. Maanape era feiticeiro. O inglês deu o aimará pra Maanape que agradeceu e foi-se embora. Quando estava legua e meia longe o aimará virou Macunaíma outra vez. Assim tres vezes, inglês sempre tirando anzol da guela do heroi. Macunaíma segredou pro mano:

— Quê que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar piranha de mentira e arranco anzol da vara.

Virou numa piranha feroz pulou na lagoa arrancou o anzol e desvirando outra vez legua e meia abaixo no lugar chamado Poço do Umbú onde tinha umas pedras cheias de letreiros encarnados da gente fenicia, sacou o anzol da guela bem contente porquê agora podia pescar corimã piraíba aruana pirarara piaba, todos êsses peixes. Os dois manos iam-se quando escutaram inglês falando pra uruguaio:

— Que posso fazer agora! Não possuo mais anzol que a piranha enguliu. Vou pra vossa terra, conhecido.

Então Macunaíma fez um grande gesto com os dois braços e gritou:

— Espera um bocado, tapuitinga!

O inglês se voltou e Macunaíma só de caçoada virou-o na máquina London Bank.

No outro dia falou pros manos que ia pescar peixões no igarapé Tietê. Maanape avisou:

— Não vá, heroi, que você topa com a velha Ceiucí mulher do gigante. Te come, heim!

— Não tem inferno pra quem já navegou no Cachoeira! que Macunaíma exclamou. E partiu.

Nem bem lançou a linha de cima dum mutá que veio vindo a velha Ceiucí pescando de tarrafa. A caapora viu a sombra de Macunaima refletida nagua jogou depressa a tarrafa e só pescou sombra. O heroi nem não achou graça porquê estava tremendo de medo, vai, pra agradecer falou assim:

— Bom-dia, minha vó.

A velha virou a cara pro alto e descobriu Macunaíma em riba do mutá.

— Vem cá, meu neto.

— Não vou lá não.

— Pois então mando marimbondos.

Fez. Macunaíma arrancou um molho de pataqueira e matou os maribondos.

— Desce, meu neto, que sinão mando novatas!

Fez. As formigas novatas ferraram em Macunaíma e êle caiu nagua. Então a velha tarrafiou, envolveu o heroi nas malhas e foi pra casa. Lá chegada pôs o embrulho na sala-de-visitas que tinha um abajur encarnado e foi chamar a filha mais velha que era bem habilidosa, prás duas comerem o pato que ela caçara. E o pato era Macunaíma o heroi. Porém a filhona estava muito ocupada porquê era mesmo habilidosa e a velha pra adiantar serviço foi fazer fogo. A caapora possuia duas filhas e a mais nova que não era nada habilidosa e só sabia suspirar, enxergando a velha fazer fogo, imaginou: “Mãi quando vem da pescaria conta logo o que pescou, hoje não. Vou ver.” Desenrolou a tarrafa e saiu dela um moço bem do gôsto. O heroi falou:

— Me esconde!

Então a moça que estava mui bondosa porquê vivia desocupada desde tempo levou Macunaíma pro quarto e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.

Quando fogo ficou bem quente a velha Ceiucí veio com a filhona habilidosa pra depenarem o pato porém acharam só tarrafa. A caapora embrabeceu:

— Isso ha-de ser minha filhinha nova que é muito bondosa...

Bateu no quarto da moça, gritando:

— Minha filhinha nova, entrega já meu pato que sinão enxoto você da casa minha pra todo o sempre!

A moça ficou com medo e mandou Macunaíma atirar vinte milreis por debaixo da porta pra ver si contentava a gulosa. Macunaíma de medo já atirou cem que viraram em muitas perdizes lagostas robalos vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa enguliu tudo e pediu mais. Então Macunaíma atirou um conto de reis por debaixo da porta. O conto virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs e a velha sempre comendo e pedindo mais. Então a moça bondosa abriu a janela dando pro Pacaembú deserto e falou:

— Vou dizer tres adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: E' comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gôsto da gente e não é palavra indecente?

— Ah! isso é indecencia sim!

— Bobo! é macarrão!

— Ahn... é mesmo!... Engraçado, não? É

— Agora o que é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabelo mais crespinho?

— Ôh, que bom! isso eu sei! é aí!

— Cachorro! E' na Africa, sabe!

— Me mostra, por favor!

— Agora é a última vez, Diga o quê que é:

Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pelo com pelo,
Deixar o pelado dentro.

E Macunaíma:

— Ara! Tambem isso quem que não sabe! Mas cá pra nós que ninguem nos ouça, você é bem senvergonha, dona!

— Descobriu. Não é dormir ajuntando os pelos das pestanas e deixando o ôlho pelado dentro que você está imaginando? Pois si você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava prá gulosa de minha mãi. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu. Na esquina você encontra uns cavalos. Tome o castanho-escuro que pisa no mole e no duro. Esse é bom. Si você escuta um passarinho gritando “Baúa! Baúa!” então é a velha Ceiucí chegando. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu!

Macunaíma agradeceu e pulou pela janela. Na esquina estavam dois cavalos, um castanho-escuro e outro cardão-pedrez. "Cavalo cardão-pedrez pra carreira Deus o fez" Macunaíma murmurou. Pulou nesse e abriu na galopada. Caminhou caminhou caminhou e já perto de Manaus ia correndo quando o cavalo deu uma topada que arrancou chão. No fundo do buraco Macunaíma enxergou uma coisa relumeando. Cavou depressa e descobriu o resto do deus Marte, escultura grega achada naquelas paragens inda na Monarquia e primeiro-de-abril passado no Araripe de Alencar pelo jornal chamado Comercio do Amazonas. Estava contemplando aquele torso macanudo quando escutou “Baúa! Baúa!”. Era a velha Ceiucí chegando. Macunaíma esporeou o cardão-pedrez depois de perto de Mendoza na Argentina quasi dar um esbarrão num galé que tambem vinha fugindo da Guiana Francesa, chegou num lugar onde uns padres estavam melando. Gritou:

— Me escondam, padres!

Nem bem os padres esconderam Macunaíma num pote vazio que a caapora chegou montada no tapir.

— Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim?

— Já passou:

Então a velha apeou do tapir e montou num cavalo gazeo-sarará que nunca prestou nem prestará e seguiu. Quando ela virou a serra do Paranacoara os padres tiraram o heroi do pote ,deram pra êle um cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e mandaram êle embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma cêrca de arame porêm era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou o pongo e ajuntando as mãos do animal caido com um geito forte fez o cavalo girar e passar por debaixo do arame. Então o heroi pulou a cêrca e amontou de novo. Galopeou galopeou galopeou. Passando no Ceará decifrou os letreiros indigenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte costeando o serrote do Cabelo-não-tem decifrou outro. Na Paraíba, indo de Manguape pra Bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição que dava um romance. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra do Poti no Piauí, nem a de Jajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados do Inhamum, que já era no quarto dia e se escutava no ar rentinho: "Baúa! Baúa!” Era a velha Ceiucí chegando. Macunaíma pernas pra que vos quero pelo eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto e Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela velha. Afinal topou com a biboca dum surucucú que tinha parte com o canhoto.

— Me esconde, surucucú!

O surucucú nem bem escondeu o heroi no buraco da latrininha, a velha Ceiucí chegou.

— Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim?

— Já passou.

A gulosa apeou do gazeo-sarará que nunca prestou nem prestará e montou num cavalo bebe-em-branco que é cavalo manco e seguiu.

Então Macunaíma escutou surucucú tratando com a companheira pra fazerem um moquem do heroi. Pulou do buraco do quartinho e jogou no terreiro o anel com brilhantão que dera de presente pro dedo Mindinho. O brilhantão virou em quatro contos de carros de milho, adubo Polisú e uma fordeca de segunda-mão. Enquanto o surucucú olhava pra aquilo tudo satisfeito, Macunaíma pro melado-caxito descansar, amontou num bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado e galopou através de varjões e varjotas. Varou num atimo o mar de areia do chapadão dos Parecis e por derrames e dependurados entrou na caatinga e assustou as galinhas com pintos de ouro do Camutengo perto de Natal. Legua e meia adiante abandonando a margem do São Francisco entrou por uma brecha aberta no morro alto. Ia seguindo quando escutou um “psiu” de cunhã. Parou morto de medo. Então saiu do meio da catinga-de-porco uma dona alta e feiosa com trança até o pé. E a dona perguntou cochichado pro heroi:

— Já se foram?

— Se foram, quem!

— Os holandeses!

— Você está caducando, que holandês esse! Não tem holandês nenhum, dona!

Era Maria Pereira cunhã portuga amufumbada naquela brecha de morro desde a guerra com os holandeses. Macunaíma não sabia bem mais em que parte de Brasil estava e lembrou de perguntar.

— Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como que chama êste lugar?

A cunhã secundou emproada:

— Aqui é o Buraco de Maria Pereira.

Macunaíma soltou uma grande gargalhada e escafedeu enquanto a mulher amoitava outra vez. O heroi seguiu de carreira e enfim passou prá outra banda do rio Chuí. Foi lá que topou com o tuiuiú pescando.

— Primo Tuiuiú, você me leva pra casa?

— Pois não!

Logo o tuiuiú se transformou na máquina aeroplano, Macunaíma escanchou no aturiá vazio e ergueram vôo. Voaram sobre o chapadão mineiro de Urucuia, fizeram o circuito de Itapecerica e bateram pro nordeste. Passando pelas dunas de Mossoró, Macunaíma olhou pra baixo e enxergou Bartolomeu Lourenço de Gusmão, batina arregaçada, pelejando pra caminhar no areão. Gritou pra ele:

— Venha aqui com a gente, ilustre!

Porém o padre gritou com um gesto imenso:

— Basta!

Depois que pulando a serra do Tombador no Mato Grosso deixaram prá esquerda as cochilhas de Sant’Ana do Livramento, o tuiuiú-aeroplano e Macunaíma subiram até o Telhado do Mundo, mataram a sêde nas aguas novas do Vilcanota e na última etapa voando sobre Amargosa na Baía, sobre a Gurupá e sobre o Gurupi com sua cidade encantada, enfim toparam de novo com o mocambo ilustre do igarapé Tietê. D’aí a pouquinho estavam na porta da pensão. Macunaíma agradeceu muito e quis pagar o ajutorio porêm se lembrou que estava carecendo de fazer economia. Virou pro tuiuiú e falou:

— Olha, primo, pagar não posso não mas vou te dar um conselho que vale ouro: Neste mundo tem tres barras que são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e barra de sáia, não cáia!

Porém estava tão acostumado a gastar que esqueceu-se da economia. Deu dez contos pro tuiuiú, subiu satisfeito pro quarto e contou tudo pros manos já muito ressabiados com a demora. O caso afinal custara uns bons pacotes. Maanape então virou Jiguê num telefone e deu queixa pra Polícia que deportou a velha gulosa. Porém Piaimã tinha muita influência e ela voltou na companhia lirica.

A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu. É uma cometa.