XIII

TEQUE-TEQUE, CHUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS

 

No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite inteira e sonhado com navio.

— Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão.

Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina telefone pra insultar a mãi de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis se levantar pra ir saber o que era. Porêm sentia um calorão coçado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou:

— Ai... que preguiça...

Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos vieram saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em Beberibe que curava com alma de indio e a água de pote. Bento deu uma aguinha e fez reza cantada. Numa semana o heroi já estava descascando. Então se levantou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante.

Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã com toda a familia fôra na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou macambusio prá pensão. Maanape e Jiguê encontraram o heroi na porta da rua e perguntaram pra êle:

— Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados?

Então Macunaíma contou o sucedido e principiou chorando. Os manos ficaram bem tristes de ver o heroi assim e levaram êle visitar o Leprosario de Guapira. O heroi estava muito contrariado e o passeio não teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque imitando cabeça de tucano e espirraram bem. Então puderam pensamentear.

— Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar, foi-se. Agora aguente a massada!

Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou:

— Achei!

Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que êles podiam ir na Europa tambem, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu:

— Tem coisa milhor.

— Pois então desembuxe!

— Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do Gôverno e vai sozinho.

— Mas praquê tanta complicação si a gente possui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na Europa!

— Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porêm mano seguindo com arame do Gôverno não é milhor? É. Pois então!

Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa:

— Achei!

Os manos levaram um susto.

— Que foi!

— Pois então finjo de pintor que é mais bonito!

Foi buscar a máquina oculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor.

No outro dia pra esperar a nomeação matou o tempo fazendo pinturas. Assim: agarrou num romance de Eça de Queiroz e foi na Cantareira passear. Então passou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara porquê possuia folhinha de pica-pau. Macunaíma deitado de bruços divertia-se amassando os tacurús das formigas tapipitingas. O tequeteque saudou:

— Bom-dia, conhecido. Como vai, muito obrigado, bem. Trabalhando, não?

— Quem não trabuca não manduca.

— É mesmo. Bom, té-loguinho.

E passou. Legua e meia adiante topou com um micura e lembrou de trabucar também um bocado. Pegou no gambazinho, fez êle engolir dez pratas de dois milreis e voltou com o bicho debaixo do braço. Chegando perto de Macunaíma mascateou:

— Bom-dia, conhecido. Como vai, muito obrigado, bem. Si você quer te vendo meu micura.

— Quê que vou fazer com um bicho tão pichento! Macunaíma secundou botando a mão no nariz.

— Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você!

— Deixe de conversa, turco! Onde que se viu micura assim!

Então o tequeteque apertou a barriga do gambá e o bicho desistiu as dez pratinhas.

— Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica riquissimo! Barato pra você!

— Quanto que custa?

— Quatrocentos contos.

— Não posso comprar, só tenho trinta.

— Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos pra você!

Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porêm só tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do Cassino de Copacabana. Deu a letra e teve vergonha de receber o troco. Até inda deu as fichas de inhapa e agradeceu a bondade do tequeteque.

Nem bem o mascate sovertera entre as sapupiras guarubas e parinarís do mato que já o micura quis fazer necessidade outra feita. O heroi arredondou o bolso aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o lôgro e abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão. Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e gritou para ele:

— Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café!

José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãi do heroi porêm êste não fez caso não, deu uma grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa zangado e pegou na gritaria outra vez.

Os manos inda não tinham voltado da maloca do Govêrno e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem o heroi pegou no chôro. Quando os manos chegaram toda a gente se sarapantou porquê êles tinham cinco metros de altura. Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento de Maanape tinha favado e os manos ficaram compridos por causa do desaponto. Quando enxergaram o mano chorando, se assustaram bem e quiseram saber a causa. E como esqueceram o desaponto voltaram pro tamanho de dantes, Maanape já velhinho e Jiguê na fôrça do homem. O heroi fazia:

— Ihihih! tequeteque me embromou! Ihihih! Comprei micura dele, quarenta contos me custou!

Então os irmãos se descabelaram. Agora não era possivel mais irem na Europa não, porquê possuiam só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto o heroi esfregava olio de andiroba no corpo pros mosquitos não amolarem e adormecia bem.

No outro dia amanheceu fazendo um calorão temivel e Macunaíma suava que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do Govêrno. Quis sair pra espairecer porêm aquela roupa tanta aumentando o calor... Teve mais raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar com o butecaiana que é doença da raiva. Então exclamou:

— Ara! Ande eu quente, ria-se a gente!

Tirou as calças pra refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito satisfeito Macunaíma falou pros manos:

— Paciencia, manos!

Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, corredeiras carrascos carrascões e chavascais, coroas de vasante boqueirões mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancadas pedrais funis bocâinas barroqueiras e rasouras, todos êsses lugares, campeando nas ruinas dos conventos e na base dos cruzeiros pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não acharam nada.

— Paciencia, manos! Macunaíma repetiu macambusio. Jogamos no bicho!

E foi na praça Antonio Prado meditar sobre a injustiça dos homens. Ficou lá encostado num platano muito bem. Todos os comerciantes e aquele desproposito de máquina passavam rentinho do heroi grugunzando sobre a injustiça dos homens. Macunaíma já estava disposto a mudar o distico pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são” quando escutou um “Ihihih!” chorado atrás. Virou e viu no chão um ticotico e um chupim.

O ticotico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra êle. Fazia raiva. O ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era não. Então voava, arranjava um decumê por ai que botava no bico do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãi... telo decumê!... telo decumê!...” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado porquê estava padecendo fome e aquele nhenhenhem-nhenhenhem azucrinando êle atrás, diz-que “Telo decumê!... telo decumê!...”, não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichinho uma quirerinha, todos êsses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engulia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditando na injustiça dos homens e teve um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porquê Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram gente feito nós... Então o heroi pegou num porrete e matou o ticotiquinho.

Foi-se embora. Depois que andou legua e meia sentiu calor e lembrou de beber pinga pra refrescar. Trazia sempre num bolso do paletô uma garrafinha de pinga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!” chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão.

— Ihihih! papai... telo decumê!... telo decumê!... lá na língua dele.

Macunaíma ficou com odio. Abriu o bolso onde estava guardado aquilo do micura e falou:

— Pois coma então!

Chupinzão pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando engordando, virou num passaro preto bem grande e voou pros matos gritando “Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira.

Macunaíma seguiu caminho. Legua e meia adiante estava um macaco mono comendo coquinho baguassú. Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque ! a fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia dagua. Falou:

— Bom-dia, meu tio, como lhe vai?

— Assim assim, sobrinho.

— Em casa todos bons?

— Na mesma.

E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquisilou assanhado:

— Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou melado!

— Mas o que você está fazendo aí, tio!

O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou:

— Estou quebrando os meus toaliquiçús pra comer.

— Vá mentir na praia!

— Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então praquê pergunta!

Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou:

— É gostoso é?

O mono estalou a língua:

— Chi! prove só!

Quebrou de escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçús e deu pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem.

— É bom mesmo, tio! Tem mais?

— Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará os vossos! Come êles, sobrinho!

O heroi teve medo:

— Não doi não?

— Qual, si até é agradavel!...

O heroi agarrou num paralelepipedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou pra êle:

— Você tem mesmo coragem, sobrinho?

— Boni-t-o-tó macacheira mocotó! o herói exclamou empafioso. Firmou bem o paralelepipedo e juque! nos toaliquiçús. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim:

— Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!

Então calçou as luvas de balata e foi-se. D'aí a pouco veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guajúguajús e murupetecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraido pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadaver porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto prá pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porêm o defunto pesava por demais e o advogado viu que não podia com o pêso. Então arreou o cadaver e deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho levianinho e o advogado Fulano poude leva-lo prá pensão.

Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado prá patroa dois cocos-da-Baía, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçús amassados e assoprou fumaça de cachimbo no defunto heroi. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra êle e d'aí a pouco matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito porquê por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha dado mesmo. E assim êles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro.