XVII
URARICOERA
No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imaginando que o herói estava hetico. Em vez era impaludismo, e a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra brincarem, o heroi até uma vez recusou suspirando:
— Ara... que preguiça...
No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou logo:
— Sinhá dona do porto, dá caminho pra mim passar!
Macunaíma agradeceu feliz. De pé êle assuntava a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões. Afinal ficou tudo conhecidissimo. Se enxergou o cerro manso que fôra mãi um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o roçado velho agora uma tiguera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma chorou.
Abicaram e entraram na tapera. Vinha a boca-da-noite. Maanape com Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O heroi ficou descansando. Estava assim quando sentiu no ombro um pêso de mão. Virou a cara e olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou:
— Quem és tu, nobre estrangeiro?
— Não sou estranho não, conhecido. Sou Macunaíma o heroi e vim parar de novo na terra dos meus. Você quem é?
O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou:
— Sou João Ramalho.
Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram a mulher dele e as quinze familias de escadinha. E lá partiram de mudança buscando pagos novos sem ninguem.
No outro dia bem cedinho foram todos trabucar . A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciencia deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem êle. Então o heroi pegou na consciencia dum hispanoamericano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.
Passava uma piracema de jaraquís. Macunaíma agarrou pescando e distraido distraido quando viu estava em Obidos, a montaria cheínha de peixes frescos. Mas o heroi foi obrigado a atirar tudo fora porquê em Obidos “quem come jaraquí fica aqui” falam e êle tinha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos voltaram prá tapera só Macunaíma não. Os outros sairam pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão pra ver si escutava o passinho do heroi, nada. Maanape trepou no grêlo duma inajá pra ver si enxergava o brilho dos brincos do heroi, nada. Então sairam por mato e capoeira gritando:
— Macunaíma, nosso mano!...
Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou:
— Nosso mano!
— Que foi!
— Você, aposto que já estava dormindo!
— Dormindo nada, então! Estava mas era negaceando um inambu-guassú. Você fez bulha, nhambú escapoliu!
Voltaram. E assim todos os dias. Os manos andavam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou bem:
— Eu caço porêm não acho nada não. Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo.
Jiguê teve raiva porquê peixe andava rareando e caça inda mais. Foi na praia do rio pra ver si pescava alguma coisa e topou com o feiticeiro Tzaló que tem uma perna só. O catimbozeiro possuia uma cabaça encantada feita com a metade duma casca de gerimum. Mergulhou a cabaça no rio, encheu de agua até o meio e despejou na praia. Caiu um desproposito de peixe. Jiguê reparou bem como que o feiticeiro fazia. Tzaló largou da cabaça por aí e principiou matando peixe com um porrete. Então Jiguê roubou a cabaça do feiticeiro Tzaló que tem uma perna só.
Mais pra diante fez que nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira veio pacú veio cascudo veio bagre jundiá tucunaré, todos êsses peixes e Jiguê voltou carregado prá tapera depois de esconder a cabaça na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com aquele mundo de peixe e comeram bem. Macunaíma desconfiou.
No outro dia esperou com o ôlho esquerdo dormindo que Jiguê fosse pescar, saiu atrás. Descobriu tudo. Quando o mano foi-se embora Macunaíma largou da gaiola com os legornes no chão pegou na cabaça escondida e fez que nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio acará veio piracanjuba veio aviú gurijuba, piramutaba mandú surubim, todos êsses peixes. Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar todos os peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mergulhou no rio. Passava a pirandira chamada Padzá. Imaginou que era abobra e enguliu a cabaça que virou na bexiga de Padzá. Então Macunaíma enfiou a gaiola no braço voltou prá tapera e contou o sucedido. Jiguê teve raiva.
— Cunhada princesa, eu que pesco, seu companheiro fica dormindo embaixo da ingazeira e inda atrapalha os outros!
— Mentira!
— Então o que você fez hoje?
— Cacei viado.
— Que-dele êle!
— Comi, uai! Fui andando por um caminho, vai, topei rasto dum... catingueiro não era não mas era mateiro. Me agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada numa coisa mole, que engraçado! sabem o que era! pois a bunda do viado, gente! (Macunaíma deu uma grande gargalhada.) Viado perguntou pra mim: — Que está fazendo aí, parente! — Te campeando! secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo. Vinha trazendo um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipú, dei um tombo, naco foi parar longe e tanajura sujou nele.
A peta era tamanha que Maanape desconfiou. Maanape era feiticeiro. Chegou bem rente do mano e perguntou:
— Você foi na caça?
— Quer dizer... fui sim.
— O que você caçou?
— Viado.
— Qual!
Maanape fez um grande gesto. O heroi piscou de medo e confessou que tudo era lorota.
No outro dia Jiguê estava procurando a cabaça quando topou com o tatú-canastra feiticeiro chamado Caicãi que nunca teve mãi. Caicãi sentado na porta da toca puxou a violinha dele feita com a outra metade da abobra encantada e agarrou cantando assim:
“Vôte vôte coandú!
Vôte vôte cuatí!
Vôte vôte taiassú!
Vôte vôte pacarí!
Vôte vôte cangussú!
Êh!...”
Assim. Vieram muitas caças. Jiguê reparando. Caicãi atirou a violinha encantada por aí, pegou num porrete e foi matar todo aquele poder de caças que estavam feito bobas. Então Jiguê roubou a violinha do feiticeiro Caicãi que nunca teve mãi.
Mais pra diante cantou que nem tinha escutado e veio um diluvio de caça parando na frente dele. Jiguê voltou carregado prá tapera depois de esconder a violinha na raiz de outro cipó. Todos tornaram a se espantar e comeram bem. Macunaíma tornou a desconfiar.
No outro dia esperou com o ôlho esquerdo dormindo que Jiguê partisse, foi atrás. Descobriu tudo. Quando o mano voltou prá tapera Macunaíma pegou na violinha, fez talequal reparara e veio uma imundicie de caça, viados cotias tamanduás capivaras tatús aperemas pacas graxains lontras mussuans catetos monos antas jaguatiricas tejús queixadas, isso era uma imundicie de caças! O heroi teve medo daquela bicharada tamanha e sahiu numa carreira mãi pinchando a violinha longe. A gaiola enfiada no braço dele ia batendo nos paus e o galo com a galinha faziam um cacarejo de ensurdecer. O heroi imaginava que era a bicharia e disparava mais.
A violinha caiu no dente dum queixada que tinha umbigo nas costas e se partiu em dez vezes dez pedaços que os bichos enguliram pensando que era gerimum. Os pedaços viraram nas bexigas das caças.
O heroi estourou tapera a dentro feito um desesperado botando os bofes pela boca. Nem bem poude respirar contou o sucedido. Jiguê teve odio e falou:
— Agora que não caço nem pesco mais!
E foi dormir. Todos principiaram curtindo fome. Bem que pediam porêm Jiguê pulava na rede e fechava os olhos. O heroi jurou vingança. Fingiu um anzol com prêsa de sucurí e falou pro feitiço:
— Anzol de mentira, si mano Jiguê vier experimentar você, então entra na mão dele.
Jiguê não podia dormir de tanta fome e enxergando o anzol falou pro mano:
— Mano, êsse anzol é bom?
— Xispeteó! Macunaíma fez e continuou limpando a gaiola.
Jiguê decidiu ir numa pescaria porquê estava mesmo curtindo fome, falou:
— Deixa ver si anzol é bom.
Pegou no feitiço e experimentou na palma da mão. O dente de sucurí entrou na pele e despejou todo o veneno lá. Jiguê correu pro matinho e bem que mastigou e engoliu maniveira. Não valeu de nada. Então foi buscar uma cabeça de anhuma que fôra encostada em picada de cobra. Pôs na mão. Não valeu de nada. Veneno virou numa ferida leprosa e principiou comendo Jiguê. Primeiro comeu um braço depois metade do corpo depois as pernas depois a outra metade do corpo depois o outro braço depois o pescoço e a cabeça. Só ficou a sombra de Jiguê.
A princesa teve odio. É que ela andava ultimamente brincando com Jiguê. Macunaíma bem que percebeu porêm imaginou: “Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguem se priva, paciencia!...” E tinha encolhido os ombros. A princesa raivosa falou prá sombra:
— Quando o heroi for passear de fome você vira num cajueiro numa bananeira e num churrasco de viado.
A sombra era envenenada por causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma.
No outro dia o heroi acordou com tanta fome que foi espairecer passeando. Topou com um cajueiro cheio de frutas. Quis comer porêm presenciou que era a sombra leprosa e passou adiante. Legua e meia depois topou com um churrasco de viado fumegando. Já estava roxo de fome porêm pôs reparo que o churrasco era a sombra leprosa e passou adiante. Legua e meia depois topou com uma bananeira carregadinha de pencas maduras. Mas agora o heroi já estava que vinha vesgo de tanta fome. A vesgueira fez êle enxergar dum lado a sombra do mano e do outro a bananeira.
— Arre que posso comer! fez.
E devorou todas as pencas. E as bananas eram da sombra leprosa de mano Jiguê. Macunaíma ia morrer. Então se lembrou de passar a doença nos outros pra não morrer sozinho. Pegou numa formiga saúva e esfregou bem ela na ferida do nariz, formiga já foi gente que nem nós e a saúva ficou leprosa. Então o heroi agarrou a formiga jaguatací e fez o mesmo. Jaguatací ficou leprosa tambem. Então foi a vez da formiga aquêque devoradora de sementes e da formiga guiquem, da formiga tracuá e da formiga mumbuca bem preta, todas ficaram leprosas. Não tinha mais formigas em redor do heroi sentado. Ele ficou com preguiça de estender o braço porquê já estava moribundo. Esperou a visita da saúde, criou fôrça e pegou no mosquito biriguí mordendo o joelho dele. Passou a doença no mosquito biriguí. Por isso que agora quando êsse mosquito morde a gente, entra na pele, atravessa o corpo e sai do outro lado enquanto o furinho de entrada vira na bereva medonha chamada chaga-de-Baurú.
Macunaíma tinha passado a lepra em sete outras gentes e ficou são no sufragante, voltando prá tapera. A sombra de Jiguê conferiu que o heroi era muito inteligente e quis voltar desesperada pra junto da família. Era já de-noite e se confundindo com a escureza a sombra não achava mais o caminho perto. Sentou numa pedra e berrou:
— Foguinho, cunhada princesa!
A princesa coxeando muito porquê estava doente de zamparina veio com um tição alumiando caminho. A sombra engoliu o fogo e a cunhada. Berrou de novo:
— Foguinho, mano Maanape!
Maanape veio logo com outro tição alumiando caminho. E se arrastava molengo porquê barbeiro chupara sangue dele e Maanape estava opilado. A sombra enguliu fogo e mano Maanape. Berrou:
— Foguinho, mano Macunaíma!
Queria engulir o heroi também mas Macunaíma percebendo o que sucedera pro mano e prá companheira encostou a porta e ficou bem quieto na tapera. A sombra pedia foguinho pedia porêm não recebendo resposta se lastimou até madrugada. Então Capêi apareceu iluminando a terra e a leprosa poude chegar na tapera. Sentou na cangerana da soleira e esperou o dia pra se vingar do mano.
De-manhã inda estava acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou. Não se ouvia nada e êle concluiu:
— Arre! Foi-se!
E saiu passear. Quando passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. O heroi não maliciou nada. Estava padecendo de fome porêm a sombra não deixava êle comer. Tudo o que Macunaíma pegava ela engulia, tamorita mangarito inhame biribá cajuí guaimbê guacá uxí ingá bacuri cupuassú pupunha taperebá graviola, todas essas comidas do mato. Então Macunaíma foi pescar porquê agora não tinha mais ninguem que pescasse pra êle não. Mas cada peixe que tirava do anzol e jogava no paneiro, a sombra pulava do ombro, engulia o peixe e voltava pro poleiro outra vez. O heroi matutou: “Deixa estar que te arranjo!” Quando peixe pegou, Macunaíma fez um esfôrço heroico, deu um bruto dum arranco na vara de forma que o impulso fez o peixe ir parar lá na Guiana. A sombra correu atrás do peixe. Então Macunaíma gavionou mato fora no sentido oposto. Quando a sombra voltou, não achando mais o mano disparou no rasto dele. Depois de correr um pouco, atravessar a terra dos indios tatús-brancos e pegar um susto tamanho que passou sem pedir licença entre a sombra de Jorge Velho e a sombra do Zumbi que estavam discutindo, o heroi fatigadissimo, olhou pra trás e viu que a sombra já vinha chegando. Estava na Paraíba e tão sem vontade de chispar que parou. Era por causa do heroi estar impaludado. Perto havia uns trabalhadores destruindo formigueiros para construir um açude. Macunaíma pediu agua pra êles. Não tinha nem gota porêm deram raiz de umbú. O heroi matou a sêde dos legornes, agradeceu e gritou:
— Diabo leve quem trabalha!
Os trabalhadores estumaram a cachorrada no heroi. Isso mesmo que êle queria porquê teve medo e chispou bem. Na frente abria a estrada das boiadas. Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela sombra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante estava dormindo um boi malabar chamado Espacio que viera do Piauí. O heroi deu um trompaço nele de tanta furia. Isso o boi saiu numa galopada louca de susto e lá foi cego manadeiro abaixo. Então Macunaíma quebrou por uma picada sem geito e se amoitou por debaixo dum mucumúco. A sombra escutava a bulha do marruá galopeando e imaginou que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não perder a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita:
“Meu boi bonito,
Boi Alegria,
Dá um adeus
Pra toda a familia!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!”
Porêm nunca mais que o boi poude comer, a sombra engulia tudo antes do bicho. Então o marruá foi ficando jururú ficando jururú magruço e lerdo. Quando passou pelo rincão chamado Agua Doce perto de Guarapes, o boi mirou sarapantado bem no meio do areão a vista linda, um laranjal cheio de sombra com a galinhada ciscando por baixo. Era sinal de morte... A sombra desenganada cantava agora:
“Meu boi bonito,
Boi Desengano,
Dá um adeus,
Até para o ano!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!”
No outro dia o marruá estava morto. Foi esverdeando esverdeando... A sombra muito penarosa se consolava cantando assim:
“O meu boi morreu,
Que será de mim?
Manda buscar outro,
— Maninha,
Lá no Bom Jardim...”
E o Bom Jardim era uma estancia do Rio Grande do Sul. Então veio vindo uma giganta que gostava de brincar com o marruá. Viu o boi morto, chorou bem e quis levar o cadaver pra ela.
A sombra teve raiva e cantou:
“Arretira-te, giganta,
Que o caso está perigoso!
Quem se arretirou amante
Faz ação de generoso!”
A giganta agradeceu e foi-se embora dançando. Então passou por ali o individuo chamado Manuel da Lapa carregado de folha de cajueiro e de fruta de algodão. A sombra saudou o conhecido:
“Seu Manué que vem do Assú,
Seu Manué que vem do Assú,
Vem carregadinho de folha de cajú!
Seu Manué que vem do sertão,
Seu Manué que vem do sertão,
Vem carregadinho de rama de algodão!”
Manuel da Lapa ficou muito concho com a saudação e pra agradecer dançou um sapateado e cobriu o cadaver com a folha de cajú e a rama de algodão.
O velho já estava tirando a noite do buraco e a sombra toda confundida não via mais o boi debaixo dos flocos e da folhagem. Principiou dançando á procura dele. Um vagalume se admirou daquilo e cantou perguntando:
“Linda pastorinha
Que fazeis aqui?”
“Vim buscar meu gado,
— Maninha,
Que eu aqui perdi.”
Foi como a sombra secundou cantando. Então o vagalume dançando voou do tronco pra baixo e mostrou o boi prá sombra. Ela trepou na barriga verde do morto e ficou chorando ali.
No outro dia o boi estava podre. Então vieram muitos urubús, veio o urubú-camiranga, veio o urubú-jeregua o urubutinga que só come olhos e lingua, todos êsses cabeças-peladas e principiaram dançando de contentes. O mais grande puxava a dança cantando:
“Urubú é passo feio feio feio!
Urubú é passo limpo limpo limpo!”
E era o urubú-ruxama, urubú rei, o Pai do Urubú. Então mandou um urubuzinho piá entrar dentro do boi pra ver si já estava bem podre. O urubuzinho fez. Entrou por uma porta e saiu por outra dizendo que sim e todos fizeram a festa juntos dançando e cantando:
“Meu boi bonito,
Boi Zebedeu,
Corvo avoando,
Boi que morreu.
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!”
E foi assim que inventaram a festa famanada do Bumba-meu-Boi, também conhecida por Boi-Bumbá.
A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubú-ruxama. O Pai do Urubú ficou muito satisfeito e gritou:
— Achei companhia pra minha cabeça, gente!
E voou prá altura. Desde êsse dia o urubú-ruxama que é o Pai do Urubú possui duas cabeças. A sombra leprosa é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubú-rei tinha só uma cabeça.