I


MARÁNOS E ELEONOR




Marános era o Sêr que vagueava
Errante pelo mundo; a creatura
Que mais do seu espirito vivia
Que dos fructos da terra...


 A noite escura​
Em seus olhos se fez; e os povoou
De sombras e de espantos, porque o Espirito
É luz, mas foi a Noite que o criou.


E logo, a sua vida se tornára
Inquieta como o vento e como as ondas;
E mais alta, mais triste e mais sósinha
Do que um êrmo pinheiro alevantado
Na confusão sombria da noitinha...
E partiu pelo mundo; e o acompanhava
Um vulto escuro e palido: era a sombra
Que seu corpo terreno derramava...
Ia tão falto de animo e esperança,
Que apenas o salvou da negra morte
Esta misteriosa sympathia
Que, semelhante á tua lyra, Orfeu,
Sabe encantar a noite e a luz do dia;
Sabe atrair as selvas que murmuram,
As nuvens e os rochedos taciturnos
E as estrelas do céu que nos procuram
Com seus olhos de eterna claridade.
Por isso, ele ia andando n'este triste
Enlevo da paisagem, n'este encanto
Que paira sobre as cousas e assemelha
Um murmurio de Deus, divino canto...


No madrugar do outono, quando as nuvens
Aparecem no mundo; no arripio
Anunciador do Inverno, êrmo Phantasma
De cinza, folhas mortas, vento frio,
Chegou, de noite, a um sitio com pinheiros
E luar entre nevoas, situado
N'um alto que domina dois outeiros,
Um rio, um vale e, ao longe, uma montanha...
E ali parou Marános pensativo...
E um silencio de lagrimas descia
Sobre o seu coração aflicto e mudo,
Que uma aragem de medo arrefecia,
Quando viu, muito perto, um Vulto branco
Desenhar-se na sombra do arvoredo,
Em diluidas fórmas e apagados
Contornos de esplendor e de segredo...
E Marános, confuso, olhava, olhava,
Aquela Aparição que deante d'ele,
Em brumas e silencios ocultava
Sua expressão perfeita e definida.


A Lua, que era nova e ia espargindo
Um luminoso e vago encantamento
Nas êrmas cousas pálidas, sorrindo,
Mostrou-se d'entre as nuvens que se abriram;
E então com mais clareza e nitidez
A pôde contemplar; e, surprehendido
Ante a subita graça e esplendidez
Que em volta irradiava aquela estranha,
Mysteriosa e mystica Figura
Que seus olhos, ao vê-la, a imaginaram
Vinda de além da propria Formosura,
Lhe disse, n'uma voz que estranho mêdo
Agitára e turbára:


 «Quem és tu,
Que n'esta solidão saudosamente
Me empeces? D'onde vens? Porque decreto?
És do mundo e da vida? ou simplesmente
Ilusorio Phantasma de beleza?
D'estas sombras chimericas que pairam
Á superfície irreal da Natureza...
Alvas fórmas aéreas, fluctuantes
Do coração da Noite esparso e oculto?...»


E a penumbra sentiu-se trespassada
Pela voz de Marános que era um vulto
De som: era uma sombra que se ouvia...


E a nocturna Visão aproximando-se
Do nocturno viandante:


 «Eu sou aquela
Nuvem que teu espirito derrama
Sobre o mundo que a sente... assim a estrela
Sente, de longe, os olhos que a contemplam...
Eu sou a tua Alma aparecida; Creatura imortal da tua dôr,
E vivo como tu, mas outra vida...
E choro como tu, mas outras lagrimas...
Este meu corpo mystico e velado,
Repára, é irmão do teu; mas um segredo
Que nunca foi aos homens revelado
Reveste-me de nevoas, faz de mim
A Sombra que fala... Em breve tempo
Tu saberás, Marános, porque vim,
A este monte sósinho...»


 E no silencio
Tinha um alto relevo musical
A voz da Aparição que n'estes versos,
É uma voz morta, um echo sepulchral,
Quasi frio silencio doloroso...


E a Voz, sobresaltada, continúa:


«Levanta para mim os olhos tristes...
Entre eles e o meu corpo a luz da Lua
Abre abysmos de sonho e de tristeza.
Eu venho do mysterio que perturba
A noite do teu sêr... E quem sou eu?
A tua propria Alma, a Creatura
Que voluptuosamente concebeu
E deu á luz escura da Penumbra
Teu corpo de animal e de tragedia,
Que treme, que se espanta e se deslumbra
Ante a sua perfeita Creação...
Eu sou a tua Alma aparecida:
Sou a tua Mulher! Ah, tu não sabes
Que esta clara presença comovida
Ha quantos anos já que te persegue!
Quantas vezes, a sós, eu te falava,
Em segredo, baixinho e com amor.
E ao pé de ti, sorrindo, me assentava
E meu sorriso alegre te envolvia...
Mas tu andavas triste e vagabundo,
De olhos vagos, perdidos não sei onde,
Assim como se entre eles e este mundo
Uma nuvem somnambula pairasse...»


Marános ajoelhando fervoroso,
Pendeu-lhe a fronte ardente sobre o peito;
E algum tempo ficou silencioso,
E nem ousava olhá-la face a face:
Tal era a estranha força de dominio
Que brilhava em seus olhos imortaes!
A luz da Lua Nova era uma aragem
De sonho sobre a rama dos pinhaes...
Eram de sonho as pedras; e de sonho
A terra onde Marános ajoelhou;
E sonho era ele proprio; e sonho a noite;
E sonho era a Mulher que lhe falou...
E respondeu confuso e entontecido,
Como disperso em nuvens de emoção:


«Sabia que um amor desconhecido,
Um vago sobresalto interior
Ha muito tempo já me perturbava...
E em meus olhos tentava definir
Essa dispersa luz que me doirava
De longe; da Tristeza e do Mysterio...
E chorava e scismava, e para mim
Dizia:—Ó Sombra etérea que persegues
Meu sêr perdido e errante, sem um fim
Que lhe ilumine a vida e o seu destino!
Ó Sombra, toma corpo e carne viva!
E fala-me, e aparece! Quero vêr-te!—
E minha voz exhausta e fugitiva,
Caia-me nos lábios quasi morta.
Mas tu vieste, emfim, se por acaso
Pertences a esta vida; se não és
Um Fumo d'este incendio em que me abrazo,
Uma Fórma irreal do meu delirio...»


«—Eu sou a tua Eleita, a Virgem pura.
E vim rasgar as sombras, desvendar
O mistico sentido da Natura
E o mysterio divino da tua Raça.»


E sentindo Marános sobre a fronte
O amanhecente alvor da sua mão:


«Bemdita seja a hora em que te vi
E esta sombria e calma solidão;
E esta noite de encanto e de silencio
Que assim como o teu rôsto me deslumbra!
E esta paz amoravel, e este doce
E chimerico beijo da Penumbra!


Ó Phantasma aparente e verdadeira
Creatura! Meu sonho e minha carne!
Rosa mystica! Estrela! Companheira
Da minha Dôr errante e caminhante,
Ah, não me deixes nunca! Nem tu sabes
A chamma que em meu peito vae lavrando
Depois que me falaste e que os teus olhos
Estão estes penedos animando!


«És da vida e do mundo, como eu sou;
Todo o meu sêr, emfim, te reconhece;
Meu sêr que já teu Vulto enevoou,
Emquanto fôste nuvem, sonho vago...
Agora és a Verdade, a Luz divina!
E a bruma que meus olhos abafava
Condensou-se na fórma crystalina,
Definida e perfeita do teu corpo.


«Subiste á superfície iluminada
Da Alegria bemdita e creadora,
Ó luz da minha vista naufragada
Na fundura oceanica das lagrimas!
E já se faz o dia! E vejo emfim!
Já vejo a luz sagrada! A cada instante,
Sinto-te, Deusa oculta, ao pé de mim;
Bafeja-me o teu halito divino...
Ó Divindade, ampara-me e protege-me!
Dá-me o teu braço, e leva-me atravez
Do mysterio era que vives, d'essa noite
Toda feita da tua esplendidez...»


N'um movimento cégo e inconsciente,
Marános levantou-se; e comovido,
Tentou beijar-lhe a face, mas sómente
Beijou a noite, o luar, a sombra palida...
E nos seus labios trémulos sentiu
Um contacto de nevoa e de chimera,
Mas tão vivo e subtil que presentiu
Sua perfeita e viva realidade...


E a clara Aparição:


 «Ó Creatura
Mortal e transitoria, eu imagino
Que és um Vulto da noite, uma Figura
Fingida ante os meus olhos... E por isso,
Na minha fronte a fome dos teus labios
Achou sómente a nuvem, a ilusão...»


E Marános, de novo, se encontrou
Com a noite, o luar e a solidão...
Pois aquelas palavras de mysterio
Lhe tornaram chimerica e afastada
A estranha Aparição; mas de repente,
Sua nitida fórma revelada
Desenhou-se na sombra que descia
Das nuvens todas cheias d'um sorriso...
Assim nos foge, ás vezes, a esperança
E subito, regressa de improviso!


E Marános então: «Como te chamas?
Pois nada ha sem nome n'esta vida,
Seja carnal ou bruta creatura,
Seja Espirito ou Sombra aparecida...»


«—Eleonor me chamo, já que o Verbo
Pôz um signal de som em cada cousa;
Signal que é a própria cousa, muitas vezes,
Em sua oculta essencia mysteriosa.
Ouve aquela palavra que é Saudade;
Vê tu como traduz a tua Raça
No que ela tem de funda intimidade
Religiosa, mystica, infinita...
Por isso, em ti, ó poeta lusitano,
Saúdo o novo Verbo e o Povo heroico
Que apoz a descoberta do Oceano,
Em descobertas anda pelo Espaço.


«Mas tu pelo meu nome de Eleonor,
Não saberás quem sou; é necessario
Que interpretes a voz do teu amor,
Pois falará por mim teu coração...
Do que é meu Sêr ao nome que me deram,
Vae a imensa distancia indefinida
Que separa da Vida (vã palavra!)
Em sangue, febre e sonho a propria Vida!...»


E Marános tão palido e confuso
Ouvia... E Eleonor continuou:
(E no calmo silencio e luar difuso
Como um cantico de anjos ondulava)


«Eu sou a eterna Luz que te fecunda,
Meu Creador e Amante! Ó tórva Fonte,
D'onde meu Sêr espiritual dimana,
Como as estrelas nascem do horisonte...
Ó pobre creatura entregue á Sorte;
Humilde espectro humano que a meus pés
Lembras escura sombra mortuaria
Recortada na viva esplendidez
Do meu corpo lunar... segue meus passos;
Saberás o que nunca imaginaste;
Em mim has de encontrar o que debalde
No mundo a que pertences, procuraste.
Ouve meu canto e guarda-o na memoria,
Se desejas viver a Vida eterna
Em tua fragil vida transitória...
Eis o grande segredo, o meu Segredo.»


E emquanto assim falava, a propria Noite
Abria os labios tristes e sorria...
E cada estrela apenas nos mostrava
Um longinquo vislumbre do seu dia.
E o Silencio divino e a sua amante
A Solidão bemdita, de mãos dadas,
Vagueavam nas trevas em que o Dante
Pôz o idylio de Paulo e de Francesca.
E Marános ouvira aquele Vulto
Que mais lhe recordava um sonho infindo,
Uma chimera vã, embora houvesse
Phisionomia clara e gesto lindo...
Sonho que lhe falava de tão perto,
Em luminosa voz, marulho de agua,
Ou suspiro de brisa n'um deserto,
Passos de nevoa erguida e caminhante...


E como quem se encontra, de improviso,
Por oculta tristeza dominado,
Que nem dá mesmo tempo a que um sorriso
Se apague em nosso rosto escurecendo-o,
Marános exclamou:
 «Mas afinal
Eu não sei quem tu és; eu não descubro
O que ha de vivo, nitido e real
Na aparição estranha do teu sêr!
Tu falas... mas as vozes são phantasmas...
Teu gesto é o d'uma sombra de ramagem
Quando perpassa o zephyro... e os teus olhos
Lembram noturnos longes de Paisagem...
São phantasmas teus labios, onde apenas
Minha anciedade chega, e já cansada...
Phantasma é a tua grande formosura
Que, ainda além da Beleza, foi creada!


«Quem és tu! Quem és tu, ó minha Alma?


«Não te conheço, não! E todavia,
Vejo teu lindo rosto, e sinto bem
A minha dôr beijar tua alegria!
Se és luz, dissipa a nuvem que te veste!
Toma presença humana, ao pé de mim!
Antes fosses um tronco ou rocha agreste
Do que essa Fórma animica e ilusoria!»


E ela então: «Se entendeste a minha voz,
É porque sou vivente creatura...
E é perfeito signal de que eu existo
O teu amor por mim, essa ternura.
Não sabes quem eu sou? Mas para quê
Desejas tu saber! Mais vale amar!
É luz crucificada a luz que vê...
E saberás um dia quem eu sou.»


E Marános mais triste e pensativo,
Sentiu arrefecer nas suas veias
Esse vermelho sangue primitivo
Que outr'ora florescia o corpo humano.
Era uma arvore morta projectando
Sombra viva de espirito e de amor,
Erguida sobre a terra, á luz da Lua...
E era esta sombra o vulto de Eleonor.


E palido e cansado da emoção
Que a aparecida Imagem lhe causou,
Encostou-se a um rochedo que um antigo
E tragico diluvio ali pousou.
E doce, intimamente adormeceu
Junto áquele penedo... E a linda Noite
Com sua trança esparsa pelo ceu,
Ia fugindo ao Sol apaixonado...