CHEGADA DE MARÁNOS Á MONTANHA
Qual noite que não fosse produzida
Pela ausencia do sol, mas que viesse
Ao encontro do sol, e no seu peito
Esse monstro de fogo recolhêsse;
Assim Marános viu a sombra eterea
De Eleonor, novamente, aproximar-se...
Para ele caminhou mais alta e séria
E em sua treva amavel o escondeu...
E logo o dominou de tal maneira,
Que, n'um profundo encanto, a foi seguindo.
E seus pés nem trilhavam a poeira,
Como se um vento olympico o levasse...
E a Pastôra ficou mais grave e humana,
Menos triste n'aquela soledade,
Como a Virgem depois de vêr o Espirito
Pousar em sua carne e virgindade.
E Marános, sonhando, já subia
A encosta arborisada da outra margem...
Azas de clara bruma esvoaçavam
Na frescura do Rio e na paisagem,
Doirada pelo outomno...
E á sua frente,
Uma Nevoa de branca fórma angelica,
Toda embebida em luz do sol nascente,
Mais ia pelo chão do que voava...
Esta fecunda terra bem amada,
Esta amorosa terra maternal
Depois da sua mystica descida
E do repouso idylico do Vale,
Tomando novas forças, se alevanta
Em pequeninas ondas que se vão
Turvando, pouco a pouco, e sobrepondo
Até aos altos sêrros do Marão.
E assim a bela encosta se ia erguendo
Com enternecimentos de arvoredos,
De bois pastando e moças a cantar;
Depois, já com rudezas de penedos,
Rugas que a Dôr em lagrimas cavou
E vagas expressões de nevoeiros...
Terra idylica e doce, toda envolta
Em seu verde cabelo de pinheiros,
Que a estranha visinhança azul do céu,
A tentação divina das alturas,
Em fragaroso drama converteu...
Eram já as raizes da Montanha.
E Marános, que tinha nos seus olhos
A fome secular, olhava, olhava
O horisonte que, ao passo que subia,
Mais distante e mais largo se tornava.
E a branca Névoa humana, á sua frente,
Sorrindo, caminhava, esvoaçando,
Hieratica, divina, resplendente...
E outras nuvens, tão altas, a seguiam...
E emquanto mais felizes, no Infinito,
Espirituaes e leves se elevavam,
Suas sombras, (ai d'elas!) que eram feitas
De escuridade e pêso, rastejavam...
Marános era um môço, projectando
Para os lados do poente, a sua sombra...
E julgava avistar, de quando em quando,
A adoravel imagem da Donzela...
E sentia-lhe os passos, e até mesmo
Suas ternas palavras amorosas...
Depois, apenas via deante d'ele,
Altitudes sombrias e brumosas...
E para as outras bandas, as longinquas
Paisagens apagadas, mais o outeiro
Da Aparição; e ao fundo, o rio Tamega
Todo mudado em branco nevoeiro.
E uma tristeza doce de crepusculo,
Um cair de folhas mortas se casava,
Dentro em seu coração, com a alegria
Das aves e do sol que o deslumbrava.
Gostava de sentir esta tristeza
Que nos prende ao que fica ... Na verdade,
Um homem só se encontra no que perde,
Porque ele abrange o Espaço e a Eternidade!
Emquanto um homem vive, a sua vida
É assim como se fosse sempiterna;
E a Dôr, n'esse momento em que é sofrida,
Tambem parece eterna e sem principio!
Mas, ai! da mesma fórma, a creatura
Depois da sua morte, é como se
Nunca houvesse vivido! E a Morte escura
É também como a Vida, sempiterna!
E uma profunda e alegre comoção
O punha em sobresalto; era sentir-se
Livre e fórte na grande solidão
E na máscula posse de si proprio,
Sentindo-se fraterno, ao mesmo tempo,
Com tudo o que ha no céu e sobre a terra...
Mas, a pouca distancia, ante seus olhos
Já se erguiam os pincaros da Serra.
O sitio onde chegára, tinha o nome
De Marãosinho; ali principiava
A Montanha sonhada e prometida,
E a terra bôa e culta ali findava.
As arvores mudavam-se em rochedos,
Como as Nymphas em arvores ... estranhas,
Duras metamorphoses provocadas
Pelo poder oculto das Montanhas...
A ervinha tenra em urze dura e sêca,
Por castigo talvez, se convertia...
E a ondulação suave dos outeiros,
Sob a força de ignota ventania,
Para nós insensível, mysteriosa,
Turvava-se a distancia; e nevoenta,
Como as marinhas ondas, alterosa,
Em píncaros subia para o sol.
E Marános extatico e suspenso:
«Terra bemdita e santa! Terra estranha
Dos tristes pinheiraes e alegres campos,
Ei-la Silencio, Solidão, Montanha!
Ei-la a fronte coroada de relampagos!
Ei-la o ninho das aguias, das procelas,
O retiro somnambulo das nuvens...
Ei-la um altar onde ardem as estrelas!
«Montanha consagrada, eleita e virgem!
Alto Templo de terra, onde o luar
É tão saudoso canto que os penedos
E os lobos ficam tristes, a scismar...
Alta e santa Montanha omnipotente,
D'onde os montes em circulos infindos
Parecem afastar-se vagamente,
E em brumas e distancias apagar-se...
Longes espirituaes! Distancias tristes!
Terra já incorporea e sublimada!
Terra feita de sombras e crepusculos,
Vaga Paisagem mystica e sonhada!
«Ó Montanha n'um extase profundo!
Ermos planaltos contemplando Deus!
Sêrros meditativos, altos pincaros,
N'um grande vôo de terra para os céus!
Surdos desejos intimos, sem nome;
Anciedades do mundo empedernidas!
Phisionomias tragicas de pedra,
Atitudes de Esphinge incomprehendidas!
Vertigem dos abysmos! Precipicios!
Olhos olhando para dentro; olhando
A Sombra anterior, o negro Cahos,
Em harmonia e luz desabrochando...
Rudeza austera e biblica dos montes!
Sorrisos de verdura que se ocultam
Em pequeninos vales, onde as fontes
São phantasmas de nevoa, no crepusculo...
«Ó grande Serra esphingica da Noite!
Montanha da chimerica emoção,
Da palida tristeza que se espraia
Em ondas de silencio e solidão!
Montanha que o Sol veste de oiro e rosas!
Ó bemdita Montanha no esplendor
Da divina manhã que sobre ti,
Abre o seu calix de infinita flôr!
«Serra que és minha apenas, e do céu,
Amo-te, desde o instante extraordinario,
Em que teu vulto cósmico se ergueu
Ante os olhos que têm as minhas lagrimas!
Amo-te, desde o vale pequenino
Que em teus labios rochosos e profeticos,
É o tenro, verde riso cristalino
Que ás brancas ovelhinhas mata a fome,
Aos escarpados sêrros denegridos
Pelo fogo dos raios, quando o vento
Solta, no ar, seus tragicos gemidos,
E ha nuvens abrasadas de relampagos!
Amo-te, desde a neve imaculada
Que teus píncaros veste de pureza
(Branca toalha de altar na elevação
Da Lua, Hsstia de amor e de tristeza...)
Até á sombra fria que dos vales
Vae alcançando o viso dos outeiros,
D'onde o sol diz adeus, n'um gesto triste
De lagrimas subindo em nevoeiros.
Amo-te, ó Serra, em tudo o que tu és!
Amo-te, desde a fonte piedosa
Que de teus flancos mana, d'uma fresca
E casta transparencia religiosa;
Desde os negros abysmos que te affligem
Ao alivio das grandes altitudes,
D'onde tocas os soes que te dirigem
A palavra de amor e claridade!
Amo-te, desde a rocha que em ti sofre
Ao tôjo bravo e á urze tão mesquinha
De que sempre te vestes, porque, emfim,
Tu és grande e, portanto, pobresinha!
Amo-te, desde a vasta solidão
E do fundo silencio que te envolvem
Desde o instante da tua Creação,
Do teu sagrado Genesis de fogo,
Até á pobre flôr quasi aromatica,
Humilde e rasteirinha, que na trança
Põe a pastôra mystica e selvatica,
De geito agreste e doce olhar bravio!
«Eu amo-te por tudo o que não sei
Dizer quando te vejo! Pelo verso
Imortal e infinito que eu criei,
Mas que é feito de treva e de silencio!»
D'esta fórma, Marános, em voz alta,
Saudava a grande Serra, quando viu
O vulto de Eleonor que sobresalta
Seu coração e as cousas que o contemplam.
E no sêrro mais alto que primeiro
Beija a luz da manhã, e onde o sol-pôr
Grava em oiro seu beijo derradeiro
Que a fria noite ascetica dilue,
Apesar da distancia, bem se via
Aquele suave Corpo sobre as rochas
Que uma nevoa chimerica esbatia
Em doces, brandas fórmas apagadas...
E a sua clara fronte era esculpida
No denso azul marmoreo que a cercava
D'uma aureola de sonho indefinida:
Vaga trança fluctuante e luminosa...
E cobria-lhe a face um veu etéreo,
Lembrando um beijo esparso que a envolvesse...
Era a imagem da Vida e do Mysterio,
De pé, sobre a Montanha irradiante.
Marános, n'um ideal contentamento,
Para ela caminhou na grande luz
Do céu; mas, por milagre e encantamento,
Fez-se uma Sombra enorme deante d'ele.
Parecia surgir da propria terra,
Toldando a luz e o ar ... E as fórmas nitidas
Dos mais altivos pincaros da Serra
Desmaiaram nos braços d'essa Nuvem...
E n'um delirio estranho e repentino,
N'um ataque sagrado de loucura,
Ouvindo a voz chimerica do Espirito
Que dentro em nós, somnambula, murmura,
Voltado para a Sombra, assim dizia:
«Phantasma d'estes montes, quem és tu?
Em que abysmos de treva e de agonia,
Em que profundidades d'este mundo,
Fôste creado? Ah, dize: não és mais
Que um sentimento trágico da Terra?
E em mysteriosas fórmas espectraes
Perante mim te ergueste, á luz do Sol?
Vens da animica e viva intimidade
Das Cousas? Vens de Deus? Acaso viste
A face imponderavel e infinita
Da Vida? Aquela face eterna e triste!
Ha no teu seio o fogo das estrelas,
Como no corpo rude, tôsco e mudo
Da pedra, ha luz do céu que foi roubada?
Conheces o Principio e o Fim de tudo?
Tu sabes quem eu sou? Responde, fala!
Porque eu entendo as sombras ... Meu amôr
É uma Sombra de espirito que exhala
A formosura eterna em meu espirito!
Quero ouvir tua voz e conhecer
Que mysterios desvenda. Meu desejo
É subir ás estrelas e descer
Aos abysmos phantasticos da Noite!
O meu desejo é Tudo; mas eu sou
Somente um fragil sêr! Quero sondar
As entranhas da Vida! a Treva imensa
Onde tudo se géra, e o grande mar
Nem lagrima é sequer, mas simplesmente
A precursôra comoção das lagrimas...
E onde o sagrado Espirito vivente
Nem mesmo é Corpo ou Forma transitoria...
Oh, dá-me as tuas azas, Sombra enorme!
Quero voar, subir á grande altura
D'onde meu sêr tombou, qual fio de agua
Que d'uma nuvem desce á terra dura;
Mas sempre prêso á nuvem d'onde cáe,
Mas sempre prêso á terra que o devora!
Quero ir além da Vida e além da Morte,
Para além das estrelas e da aurora!»
E a Sombra, que dos montes se elevava,
Envolvia Marános ... e o seu gesto
Crepuscular e vago se tornava,
Como um vulto sumindo-se na noite:
«Já levas meu espirito ancioso
Atravez de nevoeiros e penumbras,
D'esse profundo ventre mysterioso
D'onde nascem as almas e os espectros.
E n'um estonteamento interior,
Vou atravez de espaços confundidos,
De estrelas hesitantes, mundos vagos
E noturnos desertos esquecidos...
Vou em procura de mim proprio; eu ando
Ao longo de infinita escuridão,
De forças, energias que se cruzam
N'um sitio—que é meu sêr, meu coração!
E eis que me perco em grande labirintho!
Onde estou? Quem sou eu? Apenas vejo
Uma onda viva de emotivo instincto,
Que me vae arrastando para um mar
De sombra c de mysterio ... Como a espuma,
Filha das aguas com as aguas vae
Na cerração phantastica da bruma!
Assim eu vou também, espuma fragil,
N'um alteroso mar de sentimento...
Qual o destino meu? Quem me responde?
Que diz á noite negra a voz do vento?
Onde me levas tu, meu coração?...
E lá vaes! e lá vaes arrebatado
No dôrso d'esse mar! E fico só!
E vejo então meu corpo—esse punhado
De alegria, de terra e de tristeza!
E como compreender-te, pobre corpo,
A tua ignota vida inconfundivel,
Se és feito de invisiveis elementos,
Embora ao nosso olhar sejas visivel?
És pêso que um milagre quiz compôr
De imponderaveis cousas! Fórma viva
Feita do que é informe e não tem côr...
És phantasma fugindo e aparecendo!
Alma e corpo, que sois? Que és tu tambem
Ó Voz que os interrogas? Quem sou eu?...
Sombra da terra, fala! Ó tu que és feita
Talvez de toda a luz que tem o céu!...»
E estas palavras doidas, sem sentido,
Que seus labios profeticos disseram,
De echo em echo, arrastadas pelos vales,
N'uma poeira de som se desfizeram.
Poeira que sobe ... e é nuvem de silencio...
Nuvem que mysteriosa e fria aragem,
Perpassando, condensa: e é voz humana,
Canção, marulho de agua e de folhagem...