CAPITULO LXVI

 
As pernas
 

Ora, emquanto eu pensava naquella gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei á porta do hotel Pharoux. De costume jantava ahi; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da acção me cabe, e sim ás pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E ha quem vos trate com desdem ou indifferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigaveis, quando não podieis ir além de certo ponto, e me deixaveis com o desejo a avoaçar, á semelhança de gallinha atada pelos pés.

Aquelle caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes á minha cabeça o trabalho de pensarem Virgilia, e dissestes uma á outra: — Elle precisa comer, são horas de jantar, vamos levai-o ao Pharoux; dividamos a consciencia delle, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que elle vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapeu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes á risca o vosso proposito, amaveis pernas, o que me obriga a immortalisar-vos nesta pagina.