Memórias de um pobre diabo/Segunda Parte - Capítulo 3

Aos vinte e dous annos colleccionei meus manuscritos que, impressos, dariam tres volumes, inclusive versos e prosas, romances e dramas, comedias e algumas maximas.

Dirigia-me ao prélo com os originaes do primeiro volume (poesias), quando encontrei o maior enthusiasta e admirador do genio que o céo cobre, moço de 25 annos de idade, bacharelado em letras pelo collegio de Pedro II.

—Que andas fazendo, meu poeta? perguntou elle.

—Vou á typographia, respondi.

—O que estás imprimindo?

—As minhas obras, disse enchendo a bocca....

—Meus parabens, a ti e ao Brazil. Ora, graças a Deus! vamos ter uma literatura patria.

Enguli a pilula sem difficuldade, como outros muitos a — tem engulido depois de mim.

— Quantos volumes?

— Tres.

— Só?! clamou admirado.

Como se aos vinte e dous annos de idade tres volumes de asneiras não bastassem.

— E quando sahem?

— Breve, aqui levo os originaes do primeiro volume.

— Permittes?....

— Pódes vêr.

O bacharel, meu amigo e enthusiasta, depois de varrer duas vezes com os olhos os originaes, assim se exprimio, como quem entendia do riscado.

— O titulo abrange o totum; direi até — este titulo foi inspirado e leu.

«Horas incertas
Versos, prosas e comedias,
Dramas, maximas e pensamentos
do
Exilio.»

— É como digo, proseguio; isto que é saber achar um titulo. Horas incertas! quanta profundeza nestas duas palavras horas incertas!... Se as horas da vida são incertas, mais incertas são as horas do genio....

(Sim, porque o genio não tem horas certas, é da sua indole não saber nunca a quantas anda.)

—Concedes-me uma observação.

—Faze-a.

—Gósto de tudo isto, tudo isto é grande, menos a epigraphe. Esta epigraphe não cabe nas obras de um genio.... E leu a epigraphe:


«Joios da adolescencia levados á praça pela precisão.»


—Joios! chamar joios a um celeiro de trigo são! e depois, levados á praça pela precisão! que significa isto?

—Eu te explico....

—Não pergunto por ignorar o teu pensamento; sinto-lhe a essencia; sei o que tu queres dizer: levados á praça pela precisão, todos entenderão a elipse, pela precisão de... voar... sim, de voar, porque o genio precisa voar como a aguia, como o condor. Os malevolos, porém e invejosos cujas linguas não poupam os genios, esses dirão ser a precisão de dinheiro, apezar de todos saberem que tu de dinheiro não precisas...

Estavam adiantados! era justamente do que eu mais precisava [1].

—Ou precisas? perguntou com ar de quem responderia sentir muito não me poder servir na occasião, se lhe eu respondesse pela affirmativa.

—Ora... desdenhei. Eu lá careço de dinheiro!

—Se precisas, tornou animadamente, não faças ceremonia comigo.

E sem esperar pelo muito obrigado, continuou.

—O estylo é o homem, disse Buffon; por minha vez tambem digo: o nome do autor é a epigraphe do seu livro; tu não te deves rebaixar deitando outra epigraphe nas tuas obras que não teu proprio nome.

A' vista disto, chegando ao prélo borrei a epigraphe.

  1. E se ha ahi quem saiba de algum remedio, que repare essa doença, annuncie pelos jornaes, por especial favor a uma creatura sugeita, desde aquella época até hoje, aos seus accessos.[N. do A.]