Memórias duma Mulher da Época/A Diana de Lis

A Diana de Liz

 

Está aqui, amôr, a tua novela. Durante quasi dois anos fugi, covarde perante uma dôr maior, de seleccionar os teus papeis, os papeis que as tuas mãos e os teus olhos acariciaram e que foram do muito pouco que pedi para se salvar do naufragio da nossa vida. Mas, ha meses, numa livida antemanhã de hospital, arrependi-me de não ter enfrentado a nova dôr, lacerando mais uma vez o pobre coração. A morte que, desde ha dias, estava estendida ao meu lado, parecia, finalmente, resolvida a levar-me tambem. Eu, de certa maneira, não a temia; desde que ela te arrebatou ao meu carinho, ¿que importava que me cerrasse tambem a mim, e para sempre, os olhos?

Mas uma outra angustia me pungia: não proceder e orientar a publicação da tua novela, do teu ultimo livro, já que o primeiro se encontrava impresso. Isso e não ver um pouco mais de amôr e de justiça sobre a terra agora que eu creio que a sua aurora está iminente eram as unicas rasões que me prendiam a vida, ao sentir-me morrer. Tu sabes como eu te amei e como amo a Humanidade e sofro com o seu destino , para que se torne compreensivel a angustia dessa trágica manhã.

Erguia-se, então, ao meu lado, carinhosa e fraternal sombra feminina Nem ela, nem eu acreditávamos que a Inimiga me poupasse por muito tempo. Murmurei os dois motivos que me an- gustiavam em frente da morte e a amiga dedicada protestou contra a ameaça que sobre mim pairava.

Mas eram tão orfans de convicção as suas palavras, que, mais do que conforto, me pareceram uma sentença inexoravel.

Então, no momento patetico e de funda emoção dramatica, surgiu a tua imagem, recortada em certa tarde de Paris, quando entrámos no Père Lachaise, em busca do tumulo de Chopin, cujas composições tu adoravas e, em algumas noites, enchiam de melo- dias o nosso ninho de amôr, para sempre desfeito.

Pedi á amiga dedicada que me recitasse versos de Musset, cujo tumulotambem haviamos visitado nessa tarde do Père Lachaise.

— Aqueles que começam por Mes chers amis... Conhece-os?

Não era a sua voz que eu queria ouvir; era a tua, que eu desejava ter a ilusão de escutar mais uma vez. Ela principiou a recitar. E ouvindo-a, eu via-te, amôr, a recitar para mim aquela mesma poesia, em frente da sepultura do poeta, emquanto eu contemplava o salgueiro que os amigos haviam plantado sobre a sua campa.

Mes chers amis, quand je mourrai,
Plantez un saule au cimetière.
J'aime son feuillage éploré,
La pâleur m'en est douce et chère,
Et son ombre sera légère
A la terre où je dormirai.

As lágrimas começaram a deslisar-me pelas faces, caindo sobre os lençois do hospital. Foi necessário acordar as irmãs de caridade, para que me dessemuma injecção de morfina.

Não quiz, porem, o destino que eu partisse então, talvez para que, continuando a sofrer, melhor podesse compreender e amar, sob a humildade raza que me deu o teu brusco desaparecimento, os homens desgraçados como eu.

Assim, logo que a enfermidade fisica deixou de ameaçar-me, os meus olhos nublados de lágrimas e as minhas mãos trémulas de emoção percorreram os teus papeis, ao ritmo acelerado do coração que eu martirisava. Hoje, cumpro, apressado, uma das rasões que, naquela manhã tragica e inolvidável, me prendiam á vida. Cumpro, apressado , receando que a vida possa de novo atraiçoar-me ― e definitivamente — como atraiçoou a ti.

Está aqui o teu segundo livro, amôr. Se a morte vier, já só encontrará em mim esta ansia de ver o homem redimido das iniquidades que ele proprio creou, já que da dôr da existencia não será facil a redenção.

Desejavas tu que as Memorias duma mulher da época levassem um prefácio — um prefácio onde dirias das intenções desta novela e de toda a tua obra, tão insubmissa, tão subtil e tão feminina. Algumas vezes te ouvi falar dessas palavras com que pensavas abrir o livro, explicando-o. Quiz, porem, o condicionalismo da nossa vida que fosse eu e não tu quem as escrevesse.

Faço-o com essa angustiosa sensação de quem não pode fazer mais nada em homenagem a quem tudo merecia e que lhe parece muito pouco e inutil tudo quanto faz. Ha momentos em que até a nossa propria vida dir-se-ha oferta mesquinha a quem, como tu, conseguiu abrir em toda uma existencia de sofrimento, uma pausa de luz e de amor!

Ferreira de Castro