A ideia das «Memorias duma mulher da epoca» nasceu, creio, em 1923, que foi, literariamente, na vida de Diana de Liz, o ano mais fecundo. Era como que a biografia sentimental de uma alma feminina a alma duma amiga intima. Diana de Liz emprestara-lhe muito do seu talento e da sua extraordinaria sensibilidade, mas á obra faltava poder simbolico. Insatisfeita, Ela volta, possivelmente em 1924, ao manuscrito original, alterando-o e aperfeiçoando-o. Mas esse trabalho não lhe agradara ainda. E, assim, ao revolver, agora, os seus papeis, encontrei três manuscritos com o mesmo titulo e cada um deles marcando, sobre o anterior, um notavel progresso literario e psicologico.
Em que ano foi escrito o terceiro? Em 1925? Não sei. Quando, numa tarde de Novembro de 1926, tive a fortuna, que a morte, mais tarde, havia de converter em dor, de conhecer este espirito admiravel, onde parecia terem-se enlaçado todas as graças da vida, já este ultimo manuscrito existia.
Diana de Liz pretendia, quer nesta novela, quer nos seus trabalhos dispersos, agora reunidos no volume «Pedras Falsas» e no final deste tomo, analisar a alma feminina nas suas reconditas manifestações, que, de tão subtis, escapariam à observação masculina. Ela defendia a teoria de que a historia psiquica da Mulher, para ser verdadeira, deve ser feita por escritoras e não por escritores. Atraía, simultaneamente, o seu poder de analise, esse novo tipo feminino que surgira na segunda decada do seculo e que Alexandra Kolontay devia, mais tarde, estudar no seu livro «A mulher moderna e a moral sexual». A mulher da epoca, no que tem de eterno e contemporaneo, a mulher que luta pela sua independencia sem deixar de ser feminina, sem deixar de ser infinitamente mulher; a mulher «Forte...», como se diz numa das admiraveis cartas deste volume, e que procura ser mais humana, vencendo ancestraes preconceitos e cimentando a sua emancipação com a cinza das suas proprias ilusões, foi a personagem que mais fascinou a pena de Diana de Liz. Essa mulher, que começa a ser realidade depois de ter sido anseio, vibra, palpita, luta, desvenda-se e entrega-se em quasi todas as paginas desta escritora que é, por vezes, tão profunda sob a sua aparente frivolidade.
Não se preocupou Diana de Liz, como é natural num espirito de mulher, com as causas economicas que deram origem ou, pelo menos, apressaram o aparecimento desse novo tipo feminino. Procurou registar o facto social, estudando-o a sorrir, dissecando-o como se fizesse uma lição de anatomia sobre uma boneca que escondia uma alma uma alma em que poucas almas tinham reparado. E, até sob a sua ironia, que estranhos elementos humanos Ela consegue trazer para a luz! Demonstram-no, sobretudo, as «Pedras Falsas» e alguns dos trabalhos que neste livro se recolhem, como «Impressões de Silvina, viuva», que é uma pequena obra-prima; o «Dialogo entre a materia e o espirito duma mulher bonita», «Clotilde, Clarinha e Clarisse» e muitos outros, entre os quais algumas novas cartas, plenas de compreensão, de graça e de humanidade.
Mas as «Memorias duma mulher da epoca», como as novelas «O tutor» e «O tranzeunte», fazem parte de outro sector espiritual de Diana de Liz. A ironia foi substituida pela ternura. A critica, pela compreensão.
E assim, quando em 1929 eu insisti contra a sua modestia tão natural e tão expontanea, incitando-a a preparar um original para publicar em livro, Ela voltou novamente a trabalhar, ampliando a intenção inicial nas «Memorias duma mulher da epoca».
Nessa altura da sua vida, Diana de Liz desejava que a novela tivesse um sentido simbolico e que nas suas paginas se encontrasse não o caso duma mulher, mas o caso da maioria das mulheres. Seria a morte lenta das ilusões mais queridas, a renuncia de todas as horas, a submissão a todos os desgostos, a adaptação a todas as realidades quotidianas. E tudo isso sem se responsabilisar o homem, o marido que se elegeu num periodo de quimera, porque tambem ele não é o culpado das suas insuficiencias, dos seus defeitos e até dos dramas intimos que pode provocar. A novela não responsabilisava o homem que é tambem um escravo do destino — mas sim a Vida, por todo o sonho que ela dá e, pouco a pouco, vai eliminando, por toda a angustia da existencia e por todo este anseio de suprema felicidade, que jamais se consegue, duradouramente.
Diana de Liz demandava, assim, um caminho mais amplo e de maior compreensão universal, embora mais melancolico.
Mas a Vida, como se pretendesse tornar-se inviolavel á analise humana, não quiz que a obra fosse concluida sob a nova orientação da escritora. Lançada de novo ao trabalho, Diana de Liz pode modificar apenas a primeira parte das «Memorias duma mulher da epoca». As ultimas palavras que Ela escreveu nesta obra, dir-se-hão já inspiradas por um genio clarividente e tragico: «Tenho febre; e tenho frio, tambem. Isto vai acabar mal...» Era como se Ela adivinhasse já o fim prematuro do seu altissimo espirito e do seu perfil de beleza irregular, mas tão sugestivo, tão atraente, tão fascinador!
A segunda parte da novela ficou, portanto, conforme o terceiro manuscrito. Assim, já não corresponde integralmente á ultima fase mental e literaria da autora, fase que está definida nas novelas «A solteira», inserta em «Pedras Falsas», «O tutor» e «O transeunte», bem como na Carta a Lucia», que neste volume se publicam e que constituem os seus ultimos trabalhos. São paginas onde a compreensão e a justificação da existencia como ela é e não como nós queriamos que fosse, se envolvem em fraternal melancolia para com os nossos semelhantes. Satisfeita a inquietação sentimental do periodo juvenil, que tão belas e inesquecivies paginas lhe deu, Diana de Liz começava a contemplar a vida no milagre e no pavor de toda a sua extensão. Até onde chegaria nessa sua nova atitude? Não o sei. Mas ha, quer nas «Pedras Falsas», quer nas «Memorias duma mulher da epoca», quer, ainda, nos trabalhos que completam este volume, alguns dos quais são do melhor que tem brotado de penas femininas, tantas pepitas de oiro, que não seria arrojado profetisar-lhe conquistas literarias ainda mais surpreendentes do que aquelas que, postumamente, se estão revelando. Porque era mulher, o Amôr foi sempre para Ela o tema preferido. Um tema preferido, mas não um tema gasto, porque o seu grande talento sabia extrair dele novos conceitos, novas interpretações e novos estados de alma, descobrindo e analisando novas personagens amorosas. Daí, a originalidade de alguns tipos femininos que perpassam pelas suas paginas e das proprias paginas em si. É a psicologia da epoca que Ela fixou nas suas duas obras, psicologia que por não ter ainda historia, se apresenta, por vezes, á velha mentalidade, com uma sedutora expressão de audacia. Mas nisso, precisamente, está o seu encanto, a sua originalidade e o seu valor. E que grande tolerancia , que grande poder compreensivo do ser humano, nas suas fraquesas e nos seus heroismos, que delicada e nobre atitude de absolvição existem e brilham, ora sob a fulgurante ironia, ora sob a densa ternura destes livros!
Não pode Diana de Liz proceder à selecção de todas as composições que os seus dois volumes encerram; contudo, quantas paginas definitivas, duma belesa imperecivel e de forma tão cristalina e tão escultorica, a essas obras se poderia ir buscar para uma antologia das maiores escritoras que teem desabrochado sob o ceu diafano de Portugal!
Maio, 1932.
F. DE C.
Diana de Liz.