Memórias duma Mulher da Época/Milú, a ingénua

Milú, a ingénua



 
Milú — gentil diminuitivo usado pela mais graciosa das burguezinhas ricas tem dezoito anos, loiros e risonhos como o sol de Abril, e é simultaneamente travessa e sentimental. Apesar do seu caracter vivo e caprichoso, possue a adorável e rara qualidade de ser ingénua.
Há oito dias, estavamos eu e ela em Lisboa; fui fazer-lhe uma vizita e anunciar-lhe a minha partida para o Alemtejo. Milú recebeu-me no seu pequenino quarto mobilado a plátano e guarnecido com cortinados ae tule-creme, mostrando uns grandes ares preocupados e perplexos.
 

MILÚ — (depois de nos abraçarmos) — Ai, Mimi, tiveste uma grande idéa em vir. Estava mesmo precisada de ti!

EU (pressurosa) — O' filha, estou á tua disposição. Conta lá o que te preocupa.

MILÚ (gravemente) — Então, ouve. E' a respeito da vida aborrecida que eu levo. Tu sabes que eu gosto muito do José, que o adoro, que quero casar com êle, etc. Toda a gente sabe isso. Mas sabes tambem que êle só daqui a dois anos deixa a Escola Médica e que isto de passar ainda vinte e quatro meses a escrever e a receber aquelas cartinhas que tu conheces, sem qualquer outra espécie de distração, a não ser uns bocadinhos de tagarelice com êle, é uma coisa que me vai maçar atrozmente. Todos sabem que eu não danso em parte alguma, porque o José não dansa e não me deixa dansar com outros. Não vou ao teatro senão quando êle vai, porque, de contrário, escandalisa-se e diz que não compreende como uma noiva se sinta bem em divertimentos onde o seu noivo não esteja. Cá em casa são doidos por êle, e dão-lhe razão em tudo. E eu, francamente, não me sinto com coragem para passar os meus dois ultimos anos de solteira assim nesta insipidez. Quero divertir-me um poucochinho, acabou-se! Parece-me que tenho direito!

EU — E então? Já descobriste alguma fonte de distrações compativeis com a tua situação de noiva...?

MILÚ — Sabes de que me lembrei? De arranjar um amiguinho daqueles de que falam os romances e como a Isabel diz que há em Inglaterra. Ela ainda se escreve, até, com dois dêles. Lá, as raparigas convivem com os rapazes, á vontade, mesmo sem haver namoros, e êles tratam-nas, a elas, como irmãs. São os seus confidentes e divertem-se assim grandemente.

EU — Já percebi, mas isso é muito dificil de encontrar... Já arranjaste?

MILÚ — Não foi bem isso que arranjei, mas, em todo o caso, estou contente. Foi em casa do tio Eduardo. E' um amigo dêle. Mas olha que podia ser meu pai!

EU — E' velho?!

MILÚ — Não, velho não é; é... assim, assim. Mas, já vês, comparado comigo....

EU — E' bonito?

MILÚ — Qual bonito! Para que havia de ser bonito, não me dirás?! E' até muito feio, mas engraçado e simpático a valer. Tem o cabelo grisalho, ondeado e puxado para traz e nunca deixa as polainas. Tem até melhor figura de que o José.

EU — E o que te diz êle?

MILÚ — Ora! Diz que eu sou um amor, uma bonequinha e mais coisas... Quando vamos a casa do tio Eduardo, vai sempre para o pé de mim conversar e, como o José nunca lá vai, delicio-me ouvindo-lhe dizer coisas bonitas.

EU — Então, deves estar satisfeita! De que conselho é que precísas? Não entendo!

MILÚ (indecisa) — E' que êle... escreveu-me (olhando para todos os lados, receosa) escreveu-me, ontem. Cá em casa não sabem, é claro; julgam que a carta foi do José. Nem eu quero que saibam, se não havia o bom e o bonito, porque ainda que eu jurasse que não há aqui mal nenhum, não me davam crédito. Eu estou mas é muito preocupada por não saber o que lhe hei-de responder. Preciso de que me ajudes!

EU — Estou pronta, mas primeiro preciso lêr a carta dêle.

MILÚ — Vou buscal-a! (Vai espreitar á casa contigua, fecha novamente a porta e dirige-se para a pequena secretària. Está um calor sufocante. Refresco-me com o leque. Uma rosa chá, a murchar, debruça-se melancólicamente dum solitário. A vizinha do segundo andar gorgeia uma canção andaluza, acompanhando-se a um piano escandalosamente desafinado).

MILÚ (dando-me a carta) — Lê lá!

EU (lendo) — «Minha amiguinha: Depois da nossa conversação de ante-ontem não pude furtar-me à tentação de lhe escrever. E aqui me tem a dizer-lhe que estou ansioso por principiar a cultivar consigo uma afeição intensa mas suave; quando mais não seja, uma simples amitié amoureuse...»

MILU (interrompendo) — Isso aí é que eu não percebo bem... Tu entendes?

EU — Um pouco. Mas deixa vêr o resto. (Continuando a lêr) «Vamos arranjar um lindo canteiro para cultivar essa planta tão rara? Depende só de si! Mas precisamos fazer uma cultura inteligente, de maneira que toda a planta daninha de sensaboria, que costuma nascer nesta especie de culturas, seque e se queime logo ao desabrochar. Quere experimentar? E' boa jardineira? Diga-mo, sim? Para a nossa cultura aí vai o primeiro beijo...» (interrompendo-me) O quê?! Ele escreve isto?!

MILU (a rir) — Isso é brincadeira! Que te parece?

EU — Parece-me que não se pode ser mais galantemente atrevido... Vamos ao final. (Continuando) «Plante-o onde mais gostar...»

MILU (a rir) — Póde ser na extremidade das minhas unhas rosadas... artificialmente!

EU (continuando) — «Escreva-me para o Hotel Borges...» (dobrando a carta) O resto já não interessa.

MILU (ansiosa) — Então? que hei-de eu responder?

EU (pensativa) — Não sei! (ficamos a olhar uma para a outra, silenciosas, como duas bonecas de Saxe) Olha, Milu, eu, no teu logar, escrevia uma carta a desculpar-me, dizendo que havia certas razões que me não permitiam cultivar a tal amitié amoureuse, que era ainda muito nova, que tinha noivo, etc., mas que não deixava de o estimar como a um bom amigo...

MILU (contrariada) — Isso não quero! Não tinha graça nenhuma! Voltava outra vez á mesma monotonia, não?! Eu quero divertir-me um bocado, ás escondidas, já te disse. E tambem já te disse que ele parecia meu pae! Que mal há nisto ?!

EU (gravemente) — Pois olha, não sei que devas dizer-lhe, a não ser que lhe respondas no mesmo tom da carta dêle. Mas isso não o podes tu fazer de maneira alguma!

MILU — Porquê?

EU — Fica-te mal. Não é proprio da tua idade nem da tua posição.

MILU (amuada) — Pois fica sabendo que já não preciso dos teus conselhos! Sei muito bem quem me ha-de aconselhar!

EU — Quem é?!

MILU — A tia Clara. Eu gostava de responder ao meu amiguinho ainda antes de sair de Lisboa, mas, visto isso, escrevo-lhe de Entre-os-Rios. Tambem vamos para lá, eu e a mamã, já na segunda-feira. A tia Clara já lá está e arranja-se tudo! (carinhosa) Mas deixa estar que não fico zangada contigo!

EU (com alivio) — Acho tudo muito bem! Mas porque é que tu dizes que a tua tia Clara é que é capaz de te aconselhar nestas coisas?

MILU — Ora! Porque ela ás vezes conta-me o que fazia quando era solteira. Chegou a ter cinco namorados ao mesmo tempo! Uma vez até fumou um cigarro no pavilhão da quinta do tio Eduardo!

EU (ironica) — Então estás salva! E, se me dás licença, vou cumprimentar tua mãe e retirar-me, depois. Preciso fazer os meus preparativos de jornada, como tu.

(Levanto-me. A rosa-chá deixa cair as primeiras pétalas. O calor aumenta. A visinha de cima torna agora irreconhecivel o mais insipido dos fados de sala. Saimos do quarto).

 

Recebi, ontem, um lindo postal, datado de Entre-os-Rios, em que a minha querida Milú me escreve, compungida:

"Querida Mimi: Afinal, a tia Clara repreendeu-me asperamente por causa da tal carta que tu sabes; fez-ma rasgar, disse-me que eu não tinha juizo e ameaçou-me de que contaria á mamã qualquer outra coisa deste genero que se passasse comigo e de que tivesse conhecimento. Estou tristissima. Um abraço. Milú»

 

Lisboa, 1923.