O critico...


 

— Talento! O Alfredo N. tem lá talento! Aquilo é talento, porventura?!... Os dois últimos livros?... Um fiasco rematado! A última peça?... Uma perfeita banalidade!

Estavamos, eu, a avó e o sr. Martinho Leal, sentados em tripós, na praia. Era numa noite de Setembro e ouvia-se uma guitarra melancólica, que um banhista romântico ía tangendo, à beira-mar, rodeado por quatro ou cinco amigos, um dos quais cantarolava uma quadra popular.

— No entanto — objectei — o Alfredo N. dispõe dum vasto vocabulário, duma certa elegancia de forma...

— Ora! Tudo aquilo representa um esforço violento que êle faz, permanentemente, com o fim de imitar Fialho...

— Isso lá... — retorqui — Preferir ou seguir uma determinada escola... não me parece coisa das mais censuráveis... Desde que não se plagie as idéas nem os termos... Qual é o escritor-inovador que não deixa escola? E não sucede, até, serem certos estilistas originais igualados, e mesmo excedidos, por sucessores seus? Flaubert, por exemplo, não tem discípulos ilustres?!

— Sim, às vezes sucede isso... Mas com o Alfredo N. não se dá êsse caso. Só tem audácia e vaidade. Nenhum talento. Talentos! Onde estão êles, hoje em dia?! O F. de M., o J. G., o... emfim, todos êsses que por aí andam, não passam duns odres de vaidade e inépcia, sem méritos de qualidade alguma! Eu estou actualmente preparando um opúsculo - o primeiro em que me proponho abrir os olhos à turba cretina que está vitoriando tantas nulidades e patentear bem claramente as deficiências dêsses pretensos génios... E depois, à custa de quantas baixesas grande parte dêsses rabiscadores consegue nomeada! Reclamos disfarçados e não disfarçados, humildes pedidos de recomendação, críticas lisongeiras escritas por êles próprios, etc., etc... Um nojo, tudo isto!

E o sr. Martinho Leal teve um gesto de supremo tédio e esmagadora superioridade.

Eu principiava a sentir-me enervada. Estes críticos snobs e de má língua, que acham dum requintado chic e altamente atilado o sistema de deprimir quem muitas vezes possui méritos autênticos ou quem tem pelo menos, o merecimento de trabalhar, são-me particularmente antipáticos. Demolidores sistemáticos do trabalho alheio, bom ou mau, nada fazem, nada preduzem e falta-lhes, geralmente, a mínima autoridade para julgar êsse trabalho. Dão, em meu entender, mostras de covardia ao atacar escritores e artistas, abrigando-se por detráz da muralha do direito à critica — e livres, ao mesmo tempo, dos ataques da crítica dos outros, porque nada conseguem obter de si próprios, a não ser o veneno expelido em jactos sobre os que não são seus afeiçoados ou seus dependentes...

São comparáveis a certos músicos mediocres, que depreciam a técnica e o sentimento dalguns artistas que os excedem imensamente em valor. Assemelham-se a alguns dilettanti ignorantes que, não tendo soltado nunca da garganta senão sons roufenhos, pateiam impiedosamente a mais leve alteração da voz dum cantor ou cantora, sem se lembrarem de que êsse artista é, provavelmente, muito mais sensivel e susceptivel de perturbações físicas e morais do que êles. Egoístas comodamente postados de palanque, a sua maior preocupação consiste, freqüentemente, em denegrir em arte e em moral o próximo, por chic ou por inveja. Não resisti a dar-lhe uma liçãosinha.

— Então, então, sr. Leal! — disse-lhe, em tom amável. — Nada de exagêros! Com os seus talentos, — tive a coragem de pronunciar estas palavras —com a sua clara inteligência, tem o dever de ser indulgente para com as inferioridades dos outros!... Olhe que os homens de reconhecido valor, como o senhor, só imparcialmente e sem intensões agressivas devem julgar os mediocres... O J. G., ao contrário do que o senhor me disse há pouco, tem realmente obras de feliz ironía e espírito incontestável... Já leu o Bezerro de Oiro, o último livro dêle?

O sr. Martinho Leal enguliu em sêco.

— Não, êsse ainda não li...

— E a Vitória do Amor, o penúltimo ?

— ... Tambem não... Mas tenho lido outros. Aquela crítica ao Sonho Azul do Alberto de Matos, um homem de tanto merecimento e que, demais a mais, já morreu, é rancorosa, está repleta de má vontade...

— Rancorosa? Mas eu já li essa crítica e não vejo em que ela seja rancorosa! O J. G. reconhece bem claramente o talento do Matos, não regateia louvores a alguns trabalhos dêle e apenas discorda de certas teorias reveladas nêssas paginas, no que está em pleníssimo uso dos seus direitos de crítico que, por seu lado, se não esquiva à crítica dos outros, por que bastante produz... Em todos os tempos as obras científicas e literárias têm sido discutidas e apreciadas, favorável ou desfavorávelmente, em vida dos autores e depois da sua morte... Mas o senhor já leu essa crítica? Recorda-se bem da sua feitura?

O sr. Martinho Leal tossiu ligeiramente.

— Não li... isso é verdade... Mas sei como está feita... porque sou amigo do Oliveira de Melo que acudiu, no Orgão da Justiça, a defender a memória e a obra do Alberto de Matos... Demais, eu conheço muito bem o J. G... Quem êle é, sei eu!

— Então já deve ter-lhe notado, certamente, a sua tão rara erudição, admirado o seu tão perfeito conhecimento dos clássicos...

— Eu não digo que êle seja um ignorante... Mas olhe que, pelo lado moral, deixa tambem muito a desejar... Lembrar-me eu de que está ligado, há tantos anos, a uma mulher que já tinha andado, em público, de braço dado com o Filipe Cardoso!

Puz-me a rir.

— Mas, deveras, acha isso um grande desdoiro para um homem?

— Se até dizem que ela lhe é infiel!

— Pois olhe que se o é, êle não o suspeita. Eu tambem o conheço um pouco... o bastante para estar certa de que não é homem que se sujeite a sêr enganado por uma mulher, sendo conhecedor do procedimento dela!

A avó bocejava, ao meu lado, na obscuridade da noite.

— Mimi, olha que já é tarde e está frio... E o sr. Leal vá-se chegando, tambem, que a esta hora ninguem póde estar na praia!...

E, para mim, de novo:

— Olha a raposa, que te escorregou para a areia... O sr. Martinho Leal apanhou-me o abafo, puxando, na altura dos joelhos, a fina calça branca e abaixando-se com uma certa elegância. A praia, na verdade, estava quási deserta. Havia humidade e já passava das onze.

Despedimo-nos do sr. Martinho Leal, que se curvou gentilmente e insistiu em acompanhar-nos até ao jardim. E eu, dando o braço à avó, para ajudá-la a transpor um montão de pedras, sobre o qual tinhamos inevitavelmente de passar, sorri, intimamente divertida, ao lembrar-me de que o alto cargo oficial do severo crítico e moralista lhe tinha sido concedido, segundo indícios palpáveis e comprovados, em resultado da intervenção generosa dum antigo conselheiro de Estado, que lhe requestára com retumbante exito a mulher, e que da pena que ameaçava agora traçar, num opúsculo fatal, a condenação suprêma dalgumas outras penas muito mais hábeis, haviam brotado em tempo, num jornal sem cotação, dois ou três artiguinhos crivados de êrros de gramática...

 

Lisboa, 1923.