Memórias duma Mulher da Época/O Alentejo tem de que orgulhar-se

O Alemtejo
tem de que
orgulhar-se


 

Em pouco mais dum ano, os alentejanos e mais directamente os naturais de Evora, perderam duas das mais belas figuras da sua galeria literaria, para eles desconhecidas: a grande poetisa Florbela Espanca, consagrada pelos versos da Charneca em flor, e recentemente revelada como contista notavel, e Maria Eugenia Haas da Costa Ramos, distinta prosadora, afirmada superiormente no livro póstumo Pedras falsas, sob o pseudonimo de Diana de Liz.

A poetisa, alta figura de artista, que se imposera já com os sonetos admiraveis de Soror Saudade, morreu nova ainda e legou-nos o livro que é a maior das surpresas para os conterraneos. Os patricios de Florbela não podiam imaginar — era lá possivel! — que a apagada figura junto de quem passaram ombro a ombro, a quem falaram e ouviram, podesse ter um grande temperamento artistico e um cerebro em que se abrigava um vivo e fulgido talento.

Maria Eugenia, revestida de modestia, umas vezes escondida no pseudonimo que dissemos, outras vezes no de Mimi Haas, se não permitiu, por isso mesmo, que o grande publico a conheça, dos próprios conterraneos permanece ignorada, desde que não invoquemos a escassa meia duzia que a leu na sua colaboração de jornais e revistas.

Por tal motivo, sinto a perda que o meu ilustre camarada Ferreira de Castro, ao publicar o livro encantador desta última escritora, com tanta sinceridade assinala, e impõe-se-me lembrar aqui este nome aos muitos que a desconhecem, ao mesmo tempo que mostro aos alentejanos os méritos de alguem que eles devem recordar na evocação dos seus valores mais representativos.

A publicação do volume Pedras falsas mostra ao Alentejo, de modo exuberante, que a perda da sua autora acrescentou a lista gloriosa dos altos nomes desaparecidos, pois que ninguem, depois de o ler, em todas as suas paginas brilhantes deixará de sentir a finura da sensibilidade que a anima, a acompanhar a arguta delicadeza que as repassa.

Ler esse livro — o que eu fiz comovidamente e dum folego é ter a certeza de que um espírito lucido ilumina um cerebro privilegiado de mulher, e que essa, alentejana, como agora o sabemos, e alentejana da nobre Evora, marca um lugar de destaque na literatura da sua terra. Os Dialogos novelescos são a conversação inteligente, viva, elegante de alguem que encontrou no termo e na sintaxe, a forma precisa, sempre justa de expressão modelar, como as Cartas femininas, onde tanto carinho se expande, onde ha tanta suavidade, são confissões intimas de rara beleza.

A leveza, a doçura e o imprevisto de certas paginas impressionam.

Que Ferreira de Castro — cujo coração sangra no limiar deste livro formoso — perdoe a minha confissão. Comecei a leitura de Pedras falsas com alguma desconfiança e a dizer intimamente que a gloria de Florbela, com os encantos da Charneca em flor, e à revelação superior de Mascaras do destino, bastava, no momento, ao orgulho do povo alentejano.

Mas cedo mudei de parecer. Depressa a desconfiança abalou...

Mal acabada a leitura de alguns trechos, convenci-me de que, na minha frente, estava o livro de alguem e, ao encerrá-lo, dominava-me um grande sentimento de pesar pela abalada daquela cuja vida terminara tão cedo. Do mesmo modo que Ferreira de Castro, sentia, no fim de tão precioso trabalho, a impressão segura de que o livro de Diana de Liz era «o indice extraordinário duma personalidade impar e fulgurante, que o triste condicionalismo da existencia humana não permitiu que se revelasse enquanto vivia».

A prosa desta mulher tinha transparencias de aguarela no modo leve como era traçada. Sente-se apreciavel cultura no trato dos assuntos. Um vocabulario simples, mas justo, serve todas as nuances do mais encantador dos espíritos. O Alentejo tem de que orgulhar-se. E disse de mim para mim:

— A amorosa dedicação do homem de letras que prefaciou o livro Pedras falsas, não permitirá que o esquecimento caia sobre o mesmo livro, mas depois do que escrevi, certamente os alentejanos pensam, como eu, que seria ingratidão que eles se alheassem da memoria de Diana de Liz e lhe não prestassem o culto que merece.

Evora não adiará por muito tempo a consagração, pelo monumento, do nome de Florbela. Quem meteu ombros a tal empresa decerto não recuará na efectivação do seu intuito justiceiro. Pois bem! A Mimi Haas, a Diana de Liz, a primeira homenagem que lhe devemos é a de ler o seu livro póstumo e criar, com a leitura, como aconteceu comigo, a admiração que inspira os hinos de louvor e forma um cantinho de adoração na memoria de cada um de nós.

 
Celestino David
 

— Do Diario de Noticias, de Lisboa —