Minha querida Leopoldina:
Esta minha carta, vai, sem dúvida, surpreender-te, porque há mais de oito meses que não te dou notícias minhas. Tenho estado preguiçosa para escrever e só um grande desejo de comunicar, de transmitir a uma confidente discreta as minhas mais modernas impressões me leva a fazel-o. Perdôa-me o egoísmo. Calculo que a tua vida não terá sofrido qualquer alteração e que os teus filhos continuarão também nas invejaveis condições de saude e alegria em que mos descrevias na tua ultima carta; por isso me apressei a falar de mim, deste Eu soberano, dominador, despota, que absorve quasi todos os meus pensamentos. Creio que devem ser assim todos os mortaes enamorados de si mesmos, como eu.
Porque não o confessarei? E' que, efectivamente, querida Leopoldina, eu adoro-me a mim propria, admiro-me incessantemente neste meu conjuncto de qualidades e defeitos, de encantos e imperfeições. De que serviria uma falsa modestia? Fico extasiada seja ao observar o meu narizito arrebitado, seja contemplando o meu pé delicado, esguio; quando considero os meus cabelos rebeldes e quando os meus labios espessos e vermelhos se refletem no espelho, num meio-sorriso provocador, de cambiantes ironicos. E tenho especial predilecção por este sorriso que me levou mezes a ensaiar e que tantos cuidados dava a meu marido, aquele bom e pacifico Alberto, morto ha já quatro anos e de quem me lembro sempre com uma enternecida saudade. Mas, basta de divagações! Vou começar as minhas confidencias propriamente ditas.
Já numa das minhas cartas anteriores eu te tinha dado a entender que uma ligação oculta estava preocupando o meu cerebro e ocupando o meu coração. Não te dei então, porém, os pormenores que hoje estou disposta a dar-te. A história da ligação a que me refiro é esta:
Fez agora, na vespera do Natal, um ano que eu conheci, em casa de minha tia Berta, o Miguel G., heroi deste período da minha vida, período ainda não finalisado, contra o que eu ainda ha bem pouco tempo supunha. Conheci-o nessa noite, pessoalmente, porque de nome já de ha muito o conhecia, tendo lido dois volumes de poesias suas, que me deixaram encantada pela sua belesa, levemente satírica, quasi impercetivelmente mordaz.
As salas da tia Berta estavam cheias de visitas, principalmente meninas que ora desafinavam em romanzas de Tosti, ora recitavam, com inflexões falsas e afectadas, algumas das mais absurdas poesias modernas. Eu, com os meus trinta e quatro anos e na minha condição de viuva, fazia parte dum grupo for mado, no vão duma janela, por duas outras viuvas ainda novas e uma dama solteira, passante dos cincoenta, cuja maledicencia me desnorteava. O Miguel, que minutos antes me fôra apresentado, acercou-se de mim e travou conversação.
Entre parentesis, minha querida e modesta amiga, devo dizer-te que julgo ter estado capitosa nessa noite, com a minha toilette lilaz e com os meus bandós negros que, apesar de classicos, tão bem emolduram o meu perfil irregular. O general B., homem ainda aprumado e cheio de vida, dirigia-me, por vezes, olha res significativos e o Raul S., um rapazinho romantico, que estuda direito, não me desfitava, ficando verdadeiramente desolado quando lhe afirmei que as conveniencias, em geral, e a pruderie da tia Berta, em particular, não me permitiam dansar. Perante isto, atravessou, com ar desapontado, a sala, em direcção á Carlota M., uma solteirona bonita e garrida, com a qual deve ter sido mais afortunado do que comigo. Mas, mesmo assim, me relanceava de vez em quando um rapido olhar.
E' curiosissima a predilecção que alguns rapazes de vinte anos têm pelas mulheres de mais de trinta. O que os atrairá em nós? Uma experiencia já formada sobre a vida ou uma capacidade de compreender e sentir as paixões maior do que a das raparigas muito novas, capacidade de que nós, sem duvida, dispômos depois dos trinta anos?
Empenhámo-nos, pois, eu e o Miguel, numa conversação sobre literatura, assunto obrigatorio sempre que se fala, com pouca intimidade, com um homem de letras. Não suponhas que se trata dum Antino jovem, belo, são e perfeito; o meu poeta já não é muito novo, não se póde chamar elegante, é sofrivelmente feio, um tanto dispeptico e fuma endemoninhadamente, o que lhe agrava a inseparavel bronquite que o atormenta. Nada disto me assustou, contudo, nem alienou uma só parcela da simpatia que eu sentira por ele antes mesmo de o ter conhecido pessoalmente. E' facto provado que, para as mulheres do meu genero, os homens de talento nunca são velhos ou feios, nem têm, tambem, estado civil determinado. Longe de ser um céptico, é um sentimental de espirito amoravel e de caracter muito diferente daquele que os seus versos fazem supôr, o que, afinal, não admira. Tu conheceste bem o A. C. e deves lembrar-te do seu desaforado e chocante cinismo, completamente oposto á ternura, ao espirito cândido das suas quadras, que nós, com tanto prazer, decorávamos.
A proposito do Eça, eu disse ao Miguel quanta estranheza me causara o facto de ter achado a descrição fisica e moral de Fradique Mendes, na «Correspondencia», quasi de todo identica á que Teofilo Gautier faz de Baudelaire, no prefacio de uma edição das Flôres do Mal e, muito interessada no dialogo, dirigi-me á biblioteca de meu tio, a vêr se encontrava os dois livros. Quando abria uma das estantes, ouvi passos e voltei-me. Era êle, que me tinha seguido disfarçadamente e me vinha afirmar uma subita e profunda simpatia. Gostei da aventura e sorri, envaidecida, o que o animou e levou a propor-me uma camaraderie oculta, uma espécie de amitié amoureuse, cujas leis nunca seriam — oh, nunca! desrespeitadas. Aceitei imediatamente, com alvoroço, porque bem sabes que morro por desfeitear sua Grandeza o Preconceito, ainda que apenas o possa fazer ás escondidas-por causa da tia Berta e doutras circunstancias que tu conheces bem.
A nossa aliança foi inicíada cinco dias depois, com um jantar deliciosamente campestre, nos arredores de Lisboa, durante o qual o meu poeta se mostrou comedido e discreto até ao ponto de me irritar os nervos.
Mas o frio e a chuva apertaram, com o ano novo, e eu, viuva, livre, independente, entendi que podia, sem grandes inconvenientes, receber em minha casa o Miguel, umas vezes por outras e com tôdo o recato. Vieram, então, as tardes passadas na minha salinha, tomando chá e saboreando cigarrilhas egipcias. Mas, com a continuação, enfastiei-me dêstes tête-à-tête. Principiei a achar monótono o ar de continua adoração do Miguel e, uma tarde, surpreendi-me a bocejar durante a sua vizita. Pensei em que sempre tinha ouvido dizer que os beijos podem, pela sua variedade, formar uma verdadeira e melodiosa escala — deve ser a de lá menor — e que, afinal, os dêle se pareciam todos uns com os outros. Senti-me desgostosa e essa impressão, atenuada por quasi trez meses de afastamento, no ultimo estio, voltou a acentuar-se quando, em fins de Setembro, recomeçámos a frequentar-nos. Deliberei, pois, pôr termo a este estado de coisas e assentei comigo em que era inevitável um rompimento.
Dezembro começou; pouco depois, meus tios foram chamados ao Algarve, por causa da herança dos Saraivas, e eu tive a fantasia de escolher a noite de Natal, aniversario do meu primeiro encontro com o Miguel, para lhe anunciar a resolução que havia tomado e propôr-lhe uma separação amigável. Disse-lhe para ir a minha casa nessa noite e esperei-o meia-deitada no sofá, tendo junto de mim a pequenina mesa de chá e o calorifero.
Soavam onze horas quando êle entrou; sentou-se junto de mim, beijou-me e conversámos. Pois bem, minha querida Leopoldina, talvez aches extraordinário o que vou dizer-te, mas posso afirmar-te que o meu poeta se me afigurou, naquela noite, muito mais cativante do que antes. Achei-o mais vivo, mais espirituoso; o seu olhar brilhava e os seus beijos tinham um sabor desusado.
Senti-me feliz por ser amada tão profundamente e sem que conseguisse explicar a mim própria uma tão estranha e subita reviravolta, de todo se me foi a idéa de romper e invadiu-me um repentino e intenso desejo de prolongar indefinidamente esta afeição. Quando ele me preguntou, carinhoso, se, passado um ano, nos reuniriamos tão terna e amorávelmente como naqueles momentos, respondi-lhe, sem hesitar, que sim — e creio que, realmente, isso sucederá, convencida como estou que só de agora em diante saberei ama-lo como ele merece.
E foi isto o que me resolveu a escrever-te, nesta irreprimivel necessidade de expandir contigo a inesperada modificação do meu sentir, á qual, provavelmente, como eu, tu não conseguirás encontrar explicação.
Abraça-te a tua feliz amiga — Henriqueta.
Lisboa, 1923.