Memórias duma Mulher da Época/Convicção de mulher

Convicção
de mulher...


 

Os vitrais de colorido sombrio davam uma penumbra voluptuosa, vedando aos raios gloriosos do sol a entrada naquele ninho de uma mulher de gosto. Titere côr de rosa de um Destino caprichoso, Tereza escrevia, com uma pequenina ruga entre as sobrancelhas, finas e negras como traçadas a nanquim:

«...... Tenho ainda a dizer-te que João Emilio, homem em voga com quem tivéste já ocasião de conversar, se lembrou de me fazer a côrte ― ao fim de três anos de nos conhecermos-e demonstrando um grande entusiasmo. O interesse não ouso dizer o amôr — de João Emilio é quási disputado por muitas mulheres, algumas das quais me excedem, incomparavelmente, em beleza e inteligencia. Por isso, muito me admiro de que êle, mentalidade elevada e homem atraente, esteja crivando de atenções apaixonadas uma criaturinha como eu, possuidora apenas de algum espirito, de uns longes de elegancia e de uns cabelos ruivos com os quais a maior parte dos homens antipatisa... E' verdade que tenho uns olhos rasgados, uma bôca expressiva e um pescoço de lírio ― mas é tambem incontestavel que um narizito irregular me descontenta e que estas impertinentes sardas resistem a todos os pretensos remédios de perfumaria, transparecendo, teimosas, sob a velutina rescendente...

Quanto a cultura intelectual, estou, como sabes, em condições de compreender uma ou outra alusão á longevidade de Matusalem, ao prato de lentilhas de Esaú e aos talentos poéticos de Byron, Camões e Dante ― cujas obras grandiosas aliás nunca li. Mas, se tu soubesses como me sinto véxada, humilhada, inferior, junto da Maria Moniz, que cita grêgos e troianos (o Alvaro Lima afirma que ela o faz para «épater le bourgeois» e não sabe o que diz, mas eu não o acredito) e da Nelinha Sampaio, que traduz Ibsen e sabe, só pela descrição de um quadro, se êle é de Van Dick ou de Botticelli! E é por mim que João Emilio, sábio e artista que discute letras, ciencias e modas com o mesmo seguro gosto, se mostra quási apaixonado!

Mas, o que talvez te surpreenda ainda mais, minha querida e discreta confidente, é que eu não amo João Emilio nem descubro em mim o mais leve indicio de que possa vir a amá-lo. Passou o ensejo propicio para isso. Nos primeiros tempos em que o conheci e quando apenas lhe merecia a amabilidade trivial de todos os indiferentes bem educados, que fundo e secreto entusiasmo tive por êle! Houve momentos em que, involuntariamente, exteriorisei o que em mim se passava ― mas êsse homem privilegiado, que reúne uma estranha agudeza de espírito a uma rara cultura, cuja frequente exibição me deixa por vezes aterrada, tinha então outro alvo dos seus manejos amorosos... E, embora não fosse amôr aquela minha obsessão alguma coisa sofri, pela inferioridade que, pensara eu, me fazia passar despercebida ao seu olhar. Ainda, nessa época, a sua caracteristica imodéstia, o seu mal escondido reclamismo, a sua vaidade ostensiva não tinham sido observados, como depois o fôram, pela minha perspicácia de mulher...

E agora, os seus galanteios, que tanto apeteci, dão-me a impressão de um licôr caro — que tenha perdido o aroma e o vigôr... Habilissimo em submeter corações de mulher, não poude conquistar este coração de boneca — dizem — mas de boneca viva e palpitante... Se é certo que a ocasião, só uma vez na vida de cada um de nós pode entrevêr-se, deixou João Emilio fugir, á cerca de três anos, o momento feliz para dobrar-me à sua fantasia de D. Juan moderno, déstro e prudente...»

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Convicta, Tereza fechou a carta, sem perder a ruga pequenina que lhe plissava a fronte de inconstante. Mas Satan, o eterno tentador, sorriu nas trevas, cheio de esperança...

 

Lisboa, 1924 (?)