CAPITULO XII
PROCURA DE RECURSOS
Installado o refeitorio, pudemos offerecer ás raparigas hospedagem no celleiro da nossa primeira casa, Porter Hall. O numero de alumnos augmentava constantemente. Era-nos facil accommodar fóra os rapazes, mas não queriamos fazer o mesmo com as moças.
Achámo-nos diante duma nova difficuldade. Necessitavamos um estabelecimento mais vasto, onde se alojassem todos os pensionistas, homens e mulheres. Impunha-se a construcção dum segundo edificio, grande, com sala de jantar para todos os alumnos e quartos para as moças.
Calculámos que iriamos gastar uns dez mil dollars. Como de ordinario, nada possuiamos, o que não nos impediu de baptizar a nova casa. Isto era facil, ainda que não conseguissemos levantal-a. Resolvemos dar-lhe o nome de Alabama Hall, em honra do Estado onde viviamos. Mais uma vez miss Davidson apertou com uma subscripção a gente de Tuskegee e os nossos alumnos começaram a cavar os alicerces.
Estavamos exgottando a importancia recolhida, uma anciedade nos opprimia com a certeza de que as obras iam suspender-se, quando a generosidade do general Armstrong se manifestou providencialmente. Recebi um telegramma em que elle me pedia que, se pudesse passar um mez viajando, fosse encontral-o em Hampton. Sem vacillação, acccitei o convite. E, ao chegar, inteirei-me de que o general pretendia conduzir pelo Norte um quartetto de musicos e nas cidades realizar meetings em que falariamos os dois. Imaginarão a minha surpresa quando soube que essas reuniões deviam effectuar-se unicamente em beneficio das obras de Tuskegee e que as despesas correriam por conta do instituto de Hampton.
Outro director recearia talvez, apresentando-me, prejudicar o seu estabelecimento. Mas o general Armstrong era grande e bom. Nenhum sentimento mesquinho, nenhum egoismo. Alem disso não ignorava que os nortistas, com os seus donativos, desejavam contribuir para a civilização do negro em geral, não favorecer esta ou aquella escola. Sabia igualmente que, para fortalecer Hampton, era necessario estabelecer ali um centro de utilidade, propagar a sua influencia benefica por todo o Sul.
Quanto aos discursos, o general deu-me um conselho excellente, que não esqueço:
— Cada uma das suas palavras deve exprimir uma idéa.
Fizemos conferencias em Nova York, Brooklyn, Boston, Philadelphia e outras cidades importantes, e em toda a parte o meu admiravel companheiro advogou a causa de Tuskegee. Queriamos obter a quantia indispensavel á construcção de Alabama Hall e revelar ao publico a nossa instituição, duplo objectivo que alcançámos.
Depois dessa apresentação, entrei a viajar sózinho pelo Norte. Nestes ultimos quinze annos passei grande parte da minha vida longe da escola, na caça ao dinheiro, e fiz experiencias talvez interessantes para os leitores.
Varias vezes cidadãos dedicados ao mister de arranjar recursos para obras de philanthropia me perguntaram que regras eu adoptava na conquista da boa vontade e das contribuições do publico. Se podemos subordinar a regras fixas a arte de mendigar, direi que obedeci a duas: cumpri o meu dever, explicando-me honestamente ás pessoas a que me dirigia; tentei não me preoccupar com o resultado, coisa que obtive bem difficilmente, confesso. É horrivel, com effeito, apparentarmos tranquillidade sabendo que no dia seguinte, sem termos em caixa um nickel, seremos assaltados por letras vencidas. Entretanto, á medida que os annos se passam, convenço-me de que os desgostos e as inquietações nos consomem as forças physicas e intelleetuaes indispensaveis á actividade. As minhas relações constantes com homens eminentes ensinaram-me que os seres na verdade superiores sabem dominar-se, têm calma, paciencia e urbanidade. Modelo perfeito dessas qualidades era, segundo penso, o presidente Mac Kinley.
Para conseguir exito num emprehendimento qualquer, acho que o sujeito deve esquecer os seus casos pessoaes e subordinar a uma idéa todas as vantagens que lhe possam advir.
O meu officio de collector obriga-me a julgar severamente os que malsinam os ricos. Em primeiro lugar esses accusadores não pensam na desorganização que traria o desapparecimento das fortunas, nos individuos que se reduziriam á miseria se as grandes empresas cahissem de golpe. Depois ninguem imagina como os ricos são importunados. Conheço alguns que recebem diariamente pelo menos vinte pessoas que lhes fazem solicitações. Nas minhas viagens acontece-me ás vezes encontrar numa sala onde vou buscar recursos meia duzia de typos que ali se acham movidos pelas mesmas razões que me levaram. E esses pedidos representam uma insignificancia, comparados aos que chegam pelo correio. Ninguem calcula o numero de almas generosas que prodigalizam silenciosamente centenas de dollars e têm fama de sovinas. Cito como exemplo duas senhoras de Nova York, duas criaturas admiraveis que, alem de varios donativos á escola, nos facultaram meios de construir, nestes ultimos oito annos, tres grandes edificios. Tenho a certeza de que não dispensam as suas liberalidades apenas em Tuskegee: procuram sem descanço obras dignas de amparo. Comtudo os seus nomes raramente figuram nas listas de subscripções.
Não obstante me haver occupado em arranjar para a caixa de Tuskegee algumas centenas de milhares de dollars, sempre evitei o que em geral se considera mendicidade. Nunca mendiguei. E´ verdade que não vou exigir brutalmente o dinheiro dos ricos. Parto deste principio: a gente que possue habilidade necessaria para ganhar tem, é claro, sabedoria bastante para gastar. A melhor maneira de interessal-a por uma causa é apresentar os factos simplesmente e dignamente. Isto vale mais que a mendicidade.
Comquanto seja penosa, desagradavel e até nociva á saude, a obrigação de bater nas portas nos dá alguma satisfação. Travamos conhecimento com optimas pessoas, as melhores do mundo.
Um dia, em Boston, fui visitar uma senhora muito rica. Enviei-lhe o meu cartão. E esperava na antecamara que ella me mandasse entrar quando o marido surgiu e me perguntou seccamente que estava fazendo ali. Antes de me explicar, o homem se tornou tão grosseiro, tão violento, que deixei a casa sem receber a resposta da senhora. Continuei o meu caminho e pouco depois fui ver um cavalheiro, que me recebeu cordialmente. Offereceu-me uma quantia razoavel e cortou-me os agradecimentos com estas palavras:
— Estou muito reconhecido ao sr. Washington. E´ uma honra contribuir para as grandes obras. O senhor se encarrega de trabalho que devia ser feito por nós, e por isto lhe ficamos obrigados.
De resto posso affirmar que a primeira categoria de homens vai escasseando, emquanto a segunda cresce. Agora os ricos chegam a considerar os que lhes solicitam contribuições como agentes que os substituem junto aos necessitados. Isto é muito differente da mendicancia.
Raramente os habitantes de Boston me fazem um donativo sem dirigir-me palavras amaveis. É uma gente de extrema delicadeza, que parece julgar-se feliz quando a convidam a desembolsar. Em nenhuma parte encontrei como ahi desenvolvido o espirito christão. É claro que elle existe em outras cidades: cada vez mais o mundo se habitua a dar.
Nas minhas primeiras tentativas aconteceu-me palmilhar estradas e ruas, dias inteiros, sem receber um dollar. Decepções e mais decepções me acabrunhavam durante uma longa semana. De repente offertas generosas surgiam donde eu menos esperava, e casas que me pareciam acolhedoras se fechavam.
Disseram-me ha tempo que um capitalista residente a meia legua de Stamford, no Connecticut, desejava conhecer a situação de Tuskegee e as suas necessidades. Puz-me a caminho num dia tempestuoso, andei a meia legua a pé e, a custo, consegui avistar-me com o sujeito. Falei, expliquei, demonstrei, elle me ouviu attento, interessou-se pelo que eu lhe dizia e nada me deu. Retirei-me certo de haver conversado tres horas á toa. Um desastre. Emfim tinha cumprido o meu dever. Dois annos depois recebi esta carta:
”Aqui lhe envio para a obra de Tuskegee um cheque de dez mil dollars. A minha intenção era legar-lhe esta somma em testamento, mas, reflectindo, achei melhor offerecel-a agora. Guardei excellente impressão da visita que o senhor me fez, ha dois annos”.
Nenhuma generosidade me deu tanta alegria. Era o presente mais importante que haviamos recebido e cahia do céo, num momento de vaccas magras. Não ha nada peor que ser director dum grande estabelecimento quando existem obrigações pesadas, o dinheiro falta e o desgraçado se volta para os quatro cantos e não sabe onde arranjal-o. É medonho.
Juntando-se ás responsabilidades, um pensamento angustiava-me: se a nossa empresa fosse dirigida por brancos e falhasse, apenas a educação dos negros, especialmente os da região, ficaria compromettida; conduzida por nós, a escola não podia vir abaixo sem arruinar a minguada confiança do povo na raça negra, que seria condemnada irrevogavelmente como refractaria á civilização. O cheque dos dez mil dollars livrou-me dum pesadelo.
A primeira vez que vi o sr. Collis P. Huntington, grande proprietario de caminhos de ferro, obtive dois dollars para o instituto. Mais tarde elle me enviou cincoenta mil dollars, que vieram engrossar o capital do estabelecimento. Alem desse, outros donativos generosos nos foram feitos pelo sr. e pela sra. Huntington.
Dirão talvez que tivemos boa estrella. Conversa. Não houve estrella, o que houve foi perseverança. Nenhuma vantagem nos chega por acaso. Não me zanguei com o sr. Huntington quando elle me offereceu dois dollars, mas decidi provar-lhe que mereciamos quantia mais avultada. Esforcei-me doze annos por convencel-o e tive o prazer de notar que elle seguia cuidadosamente os progressos de Tuskegee e que as suas offertas eram proporcionaes a elles. Deu-nos dinheiro e conselhos preciosos relativos á administração da casa.
Muitas vezes me vi em cruel embaraço nas minhas peregrinações pelo Norte. Cito um caso que ainda não contei receando que não me dessem credito. Achava-me em Providencia (Rhode Island) e não tinha com que pagar almoço. Atravessando uma rua para visitar certa senhora de quem esperava recursos, vi no trilho do bonde uma moeda nova de prata. A esta fracção de pecunia juntou-se, minutos depois, uma quantia regular que a senhora mencionada me deu.
Num começo de anno ousei pedir o sermão do costume ao reverendo E. Winchester Donald, doutor em theologia, reitor da igreja da Trindade, em Boston. Não havendo no collegio sala que pudesse conter o pessoal todo, fizemos uma enorme tenda com pranchas cobertas de verdura. Mal o reverendo começou o sermão, uma chuva torrencial forçou-o a interromper-se. Alguem tentou abrigal-o, inutilmente. Quando vi o reitor da igreja da Trindade em pé, silencioso, esperando o fim do aguaceiro debaixo dum velho guarda-chuva, percebi que o meu convite fôra temerario. Veio a calma, o dr. Donald terminou a falação, optima, e depois, livre das vestes humidas, achou que Tuskegee necessitava uma capella grande. No dia seguinte recebi de duas senhoras que viajavam pela Italia uma carta e o dinheiro sufficiente para realizarmos o conselho do reverendo.
Ultimamente o sr. Andrew Carnegie nos offereceu vinte mil dollars para uma bibliotheca nova. Como a que possuíamos occupava espaço reduzido, num canto de cabana, procurei-o, mas a principio elle se interessou mediocremente pelo assumpto. Gastei dez annos para convencel-o de que mereciamos assistencia. Ao cabo dum rude labor teimoso, escrevi-lhe a seguinte carta:
“15 de Dezembro de 1900.
Sr. Andrew Carnegie — Avenida 51, n.º 5 —
Nova York.
Illmo. Sr.
Em conformidade com o desejo que V. S. me expressou em sua casa ha alguns dias, tomo a liberdade de endereçar-lhe este pedido relativo a uma bibliotheca. A nossa escola conta mil e cem alumnos, oitenta e seis empregados e professores, que vivem com suas familias, e cerca de duzentas pessoas de côr habitam nos arredores. Toda essa gente faria uso da bibliotheca. Temos doze mil livros, mas não dispomos dum lugar conveniente para colocal-os e falta-nos salão de leitura.
Os alumnos que nos deixam dedicam-se a profissões uteis, no Sul, e os conhecimentos que obtêm aqui exercem influencia benefica sobre toda a raça negra.
Uma bibliotheca poderia custar vinte mil dollars, approximadamente. A fabricação de telhas e tijolos, trabalhos de pedreiro, marceneiro, serralheiro, tudo isto os alumnos executam. O dinheiro que V. S. nos desse teria uma dupla vantagem: habilitaria muitos rapazes nos varios officios que exige a construcção duma casa e, como o trabalho deles é pago, facultar-lhes-ia meios de liquidar as suas contas na escola.
Estou certo de que esses vinte mil dollars contribuiriam efficazmente para a elevação duma raça inteira.
Caso V. S. deseje outros esclarecimentos, estou ás suas ordens.
Amigo, admirador,
Booker T. Washington, director”.
Passados alguns dias, chegou-me esta resposta:
“Professor Booker Washington — Tuskegee,
Alabama.
Illmo. Sr.
Com muito prazer farei os gastos necessarios á construcção duma bibliotheca, até a importancia de vinte mil dollars. Considero uma felicidade poder assim manifestar-lhe o interesse que tenho pela sua generosa empresa.
Saudações.
Andrew Carnegie”.
Sempre dirigi os negocios em Tuskegee e mantive relações com os bemfeitores da escola obedecendo a principios rigorosamente commerciaes. Adoptei, no desempenho das minhas funcções, methodos que um banco de Nova York não desapprovaria.
Referi-me a sommas importantes recebidas pelo instituto, mas — coisa espantosa — foi especialmente graças a offertas miudas, feitas por desconhecidos, que elle prosperou. Dessas insignificancias, dessas migalhas que revelam a sympathia da multidão dos pobres, depende, penso eu, o exito de todas as obras de philanthropia.
Admiraveis os ministros das igrejas, diariamente importunados por todo o genero de pedidos e comtudo cheios de paciencia e bondade. Se não me sobrassem razões para crer na efficacia da vida christã, o que nestes ultimos trinta e cinco annos os pastores fizeram pelo desenvolvimento da raça negra bastaria para transformar-me em christão. As pequenas moedas colhidas nas escolas dominicaes, nas associações de actividade christã, nas missões, muito contribuiram para levantar o negro rapidamente.
A proposito desses fracos donativos, devo mencionar o costume que os nossos alumnos tomaram de, quando nos deixam, enviar-nos uma contribuição annual que chega no maximo a dez dollars.
Ao começarmos o terceiro anno recebemos com surpresa, de tres pontos, consideraveis dotações que até hoje permanecem. A primeira nos veio do congresso estadual do Alabama, que de dois mil dollars elevou para tres mil a importancia que o orçamento nos destinava. Mais tarde o sr. F. Foster, deputado pelo districto de Tuskegee, conseguiu novo augmento para quatro mil e quinhentos dollars. A segunda nos foi concedida pela fundação John F. Slater. No começo eram apenas mil dollars, mas houve successivos accrescimos e actualmente recebemos onze mil dollars por anno. Devemos a terceira á fundação Peabody, quinhentos dollars a principio e hoje mil e quinhentos.
Dirigindo-me aos encarregados dessas instituições, travei conhecimento com dois homens que muito se occuparam com a educação do negro: o dr. J. L. M. Curry, de Washington, agente geral das duas fundações, e o sr. Morris K. Jesup, de Nova York. O dr. Curry, sulista, é um antigo soldado da Confederação, amigo sincero dos negros, absolutamente livre de preconceitos de raça. No Sul brancos e negros depositam confiança nelle, coisa notavel. Encontrei-o pela primeira vez em Richmond, na Virginia. Conhecia-o de nome. E inexperiente, ainda novo, approximei-me delle tremendo. Recebeu-me com amizade, incutiu-me coragem, deu-me bons conselhos. Pareceu-me descobrir nesse homem um desinteresse completo, a preoccupação unica de trabalhar pelo bem da humanidade. Quanto ao sr. Morris K. Jesup, thesoureiro da fundação Slater, era um cavalheiro que, apesar das suas numerosas responsabilidades, consagrava generosamente á questão negra tempo, dinheiro e intelligencia. Muito deve a elle o ensino profissional.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.