CAPIULO IV
AUXILIO AOS OUTROS
Uma difficuldade me appareceu depois do meu primeiro anno de estudo. A maior parte dos alumnos passava as ferias em casa. Eu não tinha dinheiro para a viagem, e precisava sahir: prohibia-se naquelle tempo aos alumnos passar as ferias na escola. Senti uma enorme tristeza vendo os preparativos dos collegas. Não podia voltar para casa e não tinha para onde ir.
Possuia um vestuario de segunda mão, ainda bom, adquirido já nem sei como. Decidi vendel-o e offereci-o a diversas pessoas da cidade. Enquanto procurava comprador, tentava, na minha altivez de rapaz, esconder aos camaradas a ausencia de dinheiro. Passados alguns dias, um negro entrou-me no quarto pela manhã, o que me encheu de esperança. Examinou cuidadosamente o fato, detendo-se nas costuras, e perguntou-me quanto queria por elle. Pedi tres dollars, preço que lhe pareceu razoavel.
— Muito bem, declarou o sujeito com a maior naturalidade. Levo a roupa. Dou-lhe cinco tostões agora e o resto vem depois. Está certo?
Imaginem como fiquei. Depois disso vi que era impossivel deixar Hampton. Desejava ardentemente ir para algum lugar onde pudesse trabalhar e ganhar qualquer coisa. Professores e alumnos partiram; fiquei só, num immenso desanimo.
Depois de muitas buscas na cidade e nos arredores, empreguei-me num restaurante em Fortress Monroe. Pagavam-me pouco, o necessario para a comida, mas deixavam-me tempo, que utilizei nos estudos e em leituras. Esse verão foi, portanto, proveitoso.
Devia á escola dezeseis dollars que não tinha podido pagar com trabalho. O meu mais vivo desejo era arranjar essa quantia e saldar a conta, uma divida de honra. Nem deveria tornar ao collegio, se não pudesse liquidal-a. Economizei em excesso, lavei, engommei, privei-me das coisas mais necessarias. Comtudo o inverno chegou ao fim e os dezeseis dollars não vieram. Ora um dia, na ultima semana que passei no restaurante, achei no chão uma nota nova de dez dollars, que levei ao proprietario. Este ficou muito satisfeito e me disse tranquillamente que, tendo o dinheiro sido encontrado em sua casa, tinha o direito de guardal-o. E guardou-o. Devo confessar que experimentei um choque tremendo. Isto, porém, não me desalentou. Olhando para traz na minha vida, não me lembro de, em trabalho que eu tenha decidido realizar, a coragem me haver faltado. Sempre tomei uma resolução com a idéa de que me sahiria bem e nunca supportei os individuos, muito numerosos, que nos annunciam com boas razões o naufragio dos nossos planos. As pessoas que me inspiram respeito são as que nos indicam o meio de triumphar.
No fim da semana apresentei-me ao thesoureiro do instituto de Hampton e expuz francamente a minha situação. Tive a alegria de saber que poderia continuar os estudos: concediam-me credito e não marcavam prazo para a realização do pagamento.
Retomei, no segundo anno, as minhas funcções de criado. A instrucção obtida em livros é apenas uma parte insignificante do que Hampton me deu. O que me impressionava fortemente era o desinteresse dos professores, aquella extranha abnegação que eu mal podia comprehender. Parecia que elles só pensavam nos outros. Não tardei em perceber que os homens felizes são os que semeam beneficios. Esforcei-me por não esquecer esta verdade.
Considero vantajoso para mim ter-me familiarizado com os animais e haver-me interessado pela avicultura. Tinhamos aves das melhores variedades. O estudante que se habitua a crial-as não se contenta com variedades mediocres.
No segundo anno comecei a estudar a Biblia seriamente, graças a miss Nathalia Lord, professora de Portland. Foi ella que me ensinou a admirar e amar essa leitura, pelo que ahi se contém de edificação e pelo valor literario. Confesso que nunca havia percebido nada disso. As licções que recebi ficaram profundamente gravadas, e ainda hoje, por muito occupado que esteja, nunca deixo de ler um pedaço da Biblia todos os dias, antes do trabalho.
Se tenho alguma aptidão como orador, devo igualmente parte della a miss Lord. Notando em mim disposições para a tribuna, instruiu-me sobre a maneira de respirar, a intonação, a articulação. Falar por falar nunca me tentou. Para dizer a verdade, acho inutil e vão discutir em publico um assumpto abstracto. Desde a minha infancia desejei fazer alguma coisa pela humanidade — e falar ao mundo a respeito disso. As discussões oratorias que tinhamos em Hampton eram para mim uma fonte de prazer intellectual. Realizavam-se no sabbado á tarde. Assisti a todas, e até organizei uma dessas reuniões. Entre a ceia e o estudo nocturno perdiamos regularmente vinte minutos em conversas futeis. Resolvemos então utilizar esse tempo em discussões — e acho que a applicação desses vinte minutos de folga muito proveito nos deu.
No fim do anno, graças ao dinheiro remettido por minha mãe e por meu irmão e á generosa offerta que me fez um mestre, pude passar as ferias em Malden. Ahi chegando, soube que as usinas de sal não funccionavam e a exploração da mina cessara, por causa da greve dos mineiros.
Minha mãe e os outros membros da familia ficaram encantados com o progreso que eu havia conseguido naquelles dois annos de ausencia. A satisfação dos negros da cidade, especialmente dos mais velhos, tocava-me o coração. Fui obrigado a visital-os, sentar-me com elles á mesa e em toda a parte fazer um relatorio da minha vida em Hampton. Alem disso tive necessidade de falar na igreja, diante das crianças da escola dominical, e em outros lugares. O que mais desejava, porém, trabalho, não me appareceu, por causa da greve. Passei quasi um mez procurando um emprego que desse para as despesas da volta e para os primeiros gastos da reinstallação.
Nessa busca permanente, afastei-me um dia de casa. Como de ordinario, nada consegui. Voltei á noite, fatigado em excesso, e a um quarto de legua da cidade não me foi possivel dar mais um passo: recolhi-me, para descançar, numa casa em ruina que encontrei no campo. Ás tres horas da madrugada meu irmão deu commigo ali, despertou-me e communicou-me docemente que nossa mãe tinha morrido. Foi um golpe tremendo. Fazia muitos annos que minha mãe não gozava saude, mas ao deixal-a na vespera nada me fazia suppor que eu fosse encontral-a morta. Sempre tinha desejado estar junto della naquelle terrivel momento. O que mais me estimulava em Hampton era a necessidade de obter uma boa situação que me permittisse dar socego á pobre velha. E a ambição della tinho sido viver bastante para ver os filhos instruidos e collocados.
Com a morte de minha mãe tudo em redor de nós cahiu num estado de confusão extrema. Minha irmã Amanda fazia o possivel para desobrigar-se, mas era ainda muito nova, e meu padrasto não estava em condições de chamar uma empregada. Assim, tinhamos ás vezes alimentos preparados, outras vezes nada tinhamos. Houve dias em que a nossa refeição consistiu numa lata de tomates em conserva e bolachas. Ninguem cuidava das nossas roupas, e na casa havia uma desordem completa. Julgo que foi esse o periodo mais sombrio da minha vida.
A sra. Ruffner, excellente amiga, auxiliou-me de muitas fórmas nesse tempo difficil. Pouco antes do fim das ferias arranjou-me emprego. Ganhei algum dinheiro na mina de carvão.
Um instante perguntei a mim mesmo se não seria preciso renunciar á idéa de tornar a Hampton. Livrei-me dessas duvidas: não abandonaria sem lucta um projecto que me enchia a vida. Necessitava roupas de inverno; contentei-me com algumas peças que meu irmão adquiriu. Em falta de outras coisas, havia pelo menos o indispensavel para a viagem, e isto me encantava. Chegando a Hampton, ficaria tranquillo: tornar-me-ia necessario no serviço e atravessaria sem difficuldade novo anno de estudo.
De repente uma agradavel surpresa me chegou, uma carta em que miss Mary F. Mackie exigia a minha presença na escola quinze dias antes da abertura das aulas, afim de occupar-me da limpeza e dos arranjos necessarios. Isso me encheu as medidas: ia conseguir um credito nos livros do thesoureiro. Parti immediatamente para Hampton.
E ahi chegando, tive longamente diante dos olhos um exemplo que nunca esquecerei. Miss Mackie pertencia a uma das mais antigas e mais distinctas familias do Norte. Apesar disso trabalhou duas semanas junto de mim, limpando janellas, esfregando moveis, arrumando camas. Queria que todas as vidraças estivessem immaculadas — e não descançava. Eu vivia num assombro: aquella mulher de classe elevada, intelligente e culta, rebaixava-se a trabalhos grosseiros para levantar a raça desgraçada. Desde então me insurgi contra as escolas negras onde não se cultiva a dignidade do trabalho.
Nesse ultimo anno dediquei-me com energia ao estudo: aproveitei todos os minutos que as minhas funcções de criado me deixavam. Pretendia fazer exames brilhantes e figurar na lista de honra dos oradores na distribuição dos premios.
Realizei o meu sonho: em Junho de 1875 terminei o curso. Devo o que alcancei primeiramente á influencia do general Armstrong, o caracter mais vigoroso e nobre que já conheci, em segundo lugar á comprehensão exacta do que significa a instrucção para o homem. No começo eu havia pensado, como os negros em geral, que instrucção queria dizer vida agradavel e facil, isenta de qualquer trabalho manual. Em Hampton aprendi que o trabalho, longe de constituir deshonra, deve ser amado e independentemente do que nos offerece em pecunia: deve ser amado pelo bem que nos causa, pela convicção que nos proporciona de podermos ser uteis aos outros. Lá comprehendi o desinteresse. Vi que os homens verdadeiramente felizes são os que se dedicam á felicidade alheia.
Não tinha um tostão no bolso quando terminei os exames. Com diversos estudantes que estavam em situação precaria, sahi em busca de emprego. Colloquei-me como garçon num hotel de verão, no Connecticut. Em pouco tempo notei que não possuia grande habilidade na arte de servir, embora o dono do hotel teimasse em ver em mim um garçon verdadeiro. Logo me confiou a mesa onde comiam quatro ou cinco freguezes ricos. A minha ignorancia era tão grande que esses homens não me aguentaram: reprehenderam-me com dureza, e eu fugi apavorado, abandonei-os diante da mesa vazia. Depois desse procedimento fui retrogradado para a situação de bicho de cozinha. Desejava entretanto ageitar-me no serviço. E tanto fiz que, no fim de algumas semanas, puderam reintegrar-me nas minhas funcções.
Tempo depois, quando entrei a viajar, muitas vezes me hospedei nesse hotel onde fui garçon.
No fim da estação voltei para Malden, e nomearam-me director da escola de negros. Fui quasi feliz. Estava certo de que ia ser util aos homens da minha cidade, mostrando-lhes um ideal de vida. E ao mesmo tempo ensinaria aos moços que não é sómente nos livros que se obtem instrucção.
O meu trabalho começava ás oito horas da manhã e em geral não findava antes das dez da noite. Alem da educação regulamentar que se ministra em toda a parte, eu acostumava os meus alumnos a pentear os cabellos, tratar da roupa, lavar a cara e as mãos. Inculcava-lhes sobretudo a necessidade do banho e da escova de dentes. Durante a minha carreira de ensino convenci-me de que a escova de dentes é um dos mais poderosos agentes de civilização.
Havia numerosos adultos que, apesar dos trabalhos diarios, ardiam por instruir-se. Por isso tornaram-se necessarias as classes nocturnas, que logo foram tão frequentadas como as outras. Era realmente admiravel o esforço dessas criaturas, algumas de mais de cincoenta annos.
Occupava-me activamente com essas classes. Alem disso fundei um salão de leitura, uma sociedade para debates oratorios e duas escolas dominicaes. Dava tambem licções particulares a varios rapazes que se destinavam a Hampton. Não me preoccupava com remuneração, e se podia, auxiliava os mais necessitados que eu. É verdade que o orçamento municipal me concedia uma pequena somma.
Esfalfando-se nas minas para manter a familia, meu irmão tinha-se conservado ignorante. Eu desejava preparal-o e arranjar dinheiro que lhe permittisse a manutenção na escola. Consegui o que esperava. Meu irmão esteve tres annos em Hampton, fez o seu curso e actualmente é director do ensino profissional no collegio de Tuskegee. Quando elle voltou da escola, reunimos os nossos esforços e as nossas economias para enviar a Hampton nosso irmão adoptivo Jayme. Tivemos bom resultado: Jayme é director duma secção em Tuskegee.
O meu segundo anno de professor em Malden, 1877, não differiu sensivelmente do primeiro. Nesse tempo funccionava com intensidade o Ku Klus Klan, terrivel associação que tinha por objectivo fiscalizar a attitude dos negros, especialmente em materia politica. Assemelhava-se um pouco ás patrulhas, de que ouvi contar historias na senzala. As patrulhas compunham-se de rapazes brancos que observavam todos os actos dos escravos, prohibiam que elles fizessem meetings, não estando presente pelo menos um branco, e que á noite fossem duma fazenda a outra sem passaporte. O Ku Klux Klan, como as patrulhas, operava ás escuras, mas era mais cruel que ellas. Queria destruir qualquer ambição politica no preto, e não se limitava a isto: incendiava escolas e igrejas, martyrizava grande numero de innocentes. Os actos desses bandos de vagabundos produziram no meu espirito de rapaz uma forte impressão. Fui, em Malden, testemunha duma rixa entre brancos e negros. Em cada lado havia bem um cento de homens. Muitos ficaram gravemente feridos, entre elles o general Luis Ruffner, marido de minha amiga a sra. Viola Ruffner. O general quiz defender os negros e foi atirado ao chão, recebeu feridas de que nunca se curou completamente. O espectaculo dessa lucta roubou-me toda a esperança no futuro da minha raça na America. Foram dias medonhos.
Se me refiro a esse episodio triste, é apenas com o fim de mostrar a mudança que se operou no Sul desde o tempo do Ku Klux Klan. Essa horrivel associação desappareceu, até o nome della está hoje esquecido. Em poucos lugares do Sul o espirito publico supportaria agora a existencia de semelhante organização.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.