CAPITULO VIII
AULAS NUMA ESTREBARIA E NUM GALLINHEIRO
Devo confessar que um mez de viagens e observações me trouxe um desanimo profundo: a educação daquella gente me parecia tarefa superior ás minhas forças. Sentia-me só, achava que o meu trabalho renderia uma insignificancia em relação ao tamanho da empresa. Perguntava a mim mesmo se os meus esforços serviriam para alguma coisa e se valeria a pena começar. Estava absolutamente convencido, vista a situação moral e intellectual do meu povo, que os estudos não bastavam. Foi ahi que percebi direito a sabedoria do systema inaugurado pelo general Armstrong em Hampton. Evidentemente era um erro prender numa classe durante horas as crianças que ali viviam soltas, como bichos.
Depois de me entender com alguns cidadãos de Tuskegee, fixei o dia 4 de Julho de 1881 para inicio dos trabalhos na igreja e na cabana destinadas a elles. Os pretos interessavam-se pela nova escola e esperavam impacientes a inauguração, mas varios brancos dos arredores viam com maus olhos o nosso projecto: duvidavam que elle fosse util aos negros e temiam sobretudo uma scisão entre as duas raças. Alguns receavam que o negro perdesse qualidades preciosas sob o ponto de vista economico. Se elle adquirisse conhecimentos, abandonaria as plantações. E ninguem acharia mais criados. Esses brancos, adversarios da nova escola, imaginavam o negro instruido um homem de chapéo alto, monoculo com aro de ouro, bengala de junco, sapatos lustrosos, luvas de pelle, emfim um sujeito decidido a viver do trabalho intellectual. Outra figura de negro instruido não surgia nos espiritos.
Nas minhas primeiras difficuldades e durante os dezenove annos que se seguiram encontrei um apoio constante e conselhos proveitosos em dois homens, os meus melhores amigos em Tuskegee: o sr. Jorge W. Campbell, branco e antigo proprietario, e o sr. Lewis Adams, negro e antigo escravo. Foram elles que escreveram ao general Armstrong pedindo um director para a escola. O sr. Campbell, negociante e banqueiro, tinha-se conservado alheio ás questões de ensino; o sr. Adams, operario, fôra no tempo da escravidão sapateiro, selleiro e funileiro. Sem nunca frequentar escola, conseguira aprender leitura e escripta. Esses dois homens adoptaram o meu plano de educação, associaram-se ás minhas esperanças e ajudaram-me nas minhas experiencias. Nunca, em dias de aperto, recorri á bolsa do sr. Campbell sem que recebesse immediatamente um auxilio efficaz. Ninguem me orientaria tão bem nos negocios da escola como esses dois homens, um antigo senhor de escravos e um ex-escravo. Sempre me pareceu que o sr. Adams possuia aquella extraordinaria força de caracter por haver adquirido tres officios no tempo da escravidão. Ainda hoje, se alguem nos Estados do Sul deseja ver um negro notavel, pode estar certo de que lhe indicam um que, sendo escravo, achou meio de aprender um officio.
Quando a escola se abriu, umas trinta pessoas se matricularam, homens e mulheres, a maior parte de Macon. Muitos alumnos se apresentaram, mas haviamos decidido só receber os de mais de quinze annos e que tivessem alguns estudos. Entre os que foram admittidos varios haviam ensinado em escolas publicas e andavam nos quarenta annos. Diversos professores inscreveram-se juntamente com os seus alumnos, e, coisa espantosa, depois do exame de admissão, alguns rapazes entraram em classes superiores ás dos antigos mestres, que se orgulhavam de ter aprofundado volumes grossos de titulos sonoros. Quanto mais os livros eram pesados e os titulos compridos mais elles se vangloriavam da sua sciencia. Varios tinham ido ao latim, um ou dois ao grego, e com isto julgavam elevar-se.
Realmente nesse mez de viagem a que me referi uma das scenas mais dolorosas que presenciei foi esta: um rapaz coberto de farrapos immundos, sentado no quarto unico duma cabana de madeira, devorando a grammatica franceza. Tudo em roda era porcaria e o mato crescia no jardim.
Esses primeiros estudantes decoravam afincadamente regras complicadas de grammatica e mathematica, mas ignoravam a arte de applicar as noções adquiridas ás necessidades da vida real. Gostavam de me dizer que eram fortes em arithmetica e em contabilidade, mas logo percebi que nem elles nem os seus vizinhos tinham tido contas num banco.
Inscrevendo os nomes dos alumnos, percebi que todos, sem excepção, intercalavam uma inicial entre o nome e o sobrenome. Jayme Johns passava a Jayme J. Johns. Informei-me a respeito da significação dessa letra, e responderam-me que ella constituia o titulo da pessoa.
Quasi todos os estudantes desejavam tornar-se professores, Fóra isso, eram criaturas cheias de boa vontade, sempre dispostas a cumprir os seus deveres. Eu queria dar-lhes uma instrucção solida e simples. Logo percebi que nada sabiam das sciencias que affirmavam ter estudado. Tambem notei que as raparigas achavam perfeitamente no mappa a capital da China e o Sahara, mas eram incapazes de achar as facas e os garfos, a carne e o pão na mesa. Era-me necessario um pouco de coragem para dizer a um sujeito vaidoso de raiz cubica e contabilidade que elle devia aprender taboada de multiplicação.
O numero de alumnos cresceu e ao cabo dum mez chegou a cincoenta. Na entrada quasi todos annunciavam que ficariam dois ou tres mezes: esperavam escorregar nas classes adiantadas e concluir os estudos rapidamente.
No fim de mez e meio de trabalho, appareceu-me uma collega, mulher de intelligencia rara, miss Olivia A. Davidson, com quem mais tarde me casei. Miss Davidson tinha nascido no Ohio e estudado numa escola publica. Muito nova, sabendo que havia falta de professores no Sul, dirigira-se ao Estado do Mississipi e mais tarde a Memphis, no Tennessee, onde se dedicara ao ensino. Um dos seus alumnos fôra atacado de variola e toda a gente fugira com medo. Então miss Davidson fechara a escola, installara-se junto da criança até a cura completa. Em seguida a febre amarella rebentara em Memphis, a epidemia mais terrivel que já houve no Sul. Apesar de nunca ter tido semelhante doença, miss Davidson telegraphara á auctoridade offerecendo os seus serviços como enfermeira.
Essa moça admittia que a educação puramente livresca não convinha a uma escola de pretos. Por isso, ouvindo falar em Hampton, para lá se encaminhara. A sua intelligencia brilhante chamara a attenção da sra. Maria Hemenway, que lhe facultara os meios de, recebidos os diplomas em Hampton, passar dois annos na escola normal de Framingham, no Massachusetts. No momento de partir para Framingham, alguem lhe dissera que, sendo ella tão clara, poderia passar por branca na outra escola, o que lhe seria muito proveitoso. Sem hesitação, ella respondera que não pretendia enganar ninguem.
Foi pouco depois de terminar o curso em Framingham que miss Davidson chegou em Tuskegee, para onde trouxe idéas novas sobre methodos de ensino, uma excellente natureza e capacidade notavel de abnegação. Ninguem melhor que ella contribuiu para a fundação e o engrandecimento da escola de Tuskegee.
Logo no começo entendemo-nos admiravelmente. Os alumnos entravam bem nos livros, mas achavamos que, para deixar nelles uma impressão duradoura, deviamos dar-lhes alguma coisa mais que noções scientificas. Nos lugares donde elles vinham ninguem se importava com hygiene. E as casas que agora occupavam em Tuskegee em geral não eram melhores que as que haviam deixado no campo. Desejavamos incutir-lhes a necessidade de tomar banho, escovar os dentes, cuidar da roupa, alimentar-se direito e dormir em quartos limpos. Queriamos tambem que aprendessem officios, adquirissem a habilidade necessaria para desembaraçar-se lá fóra. Pretendiamos leval-os a pensar na vida pratica.
A maior parte delles vinha dos districtos agricolas. Nos Estados do golfo do Mexico oitenta e cinco por cento dos negros viviam da cultura da terra. Indispensavel que os nossos estudantes não se esquecessem dos trabalhos ruraes, não fossem augmentar inutilmente a população das cidades. Sem duvida era conveniente preparar muitos delles para o ensino, mas tencionavamos envial-os ao campo afim de inculcar aos negros nova energia e novas idéas, principios moraes, religiosos e intellectuaes.
Tudo isso nos preoccupava, quasi nos acabrunhava. Que fazer? Dispunhamos da cabana em ruina e da igreja abandonada que os pretos nos haviam amavelmente offerecido. O numero dos alumnos augmentava dia a dia, e isto nos desanimava. Certamente os nossos esforços seriam vãos. Toda a gente ambicionava instruir-se para livrar-se do trabalho material. E eu me lembrava de certo preto que, num dia quente de Julho, interrompeu subitamente a limpa do algodoal, ergueu as mãos ao céo e exclamou:
— Deus de misericordia! O algodão não presta, o trabalho é duro e o sol queima como fogo. Parece que este negro vai ser chamado a prégar o Evangelho.
Tres mezes depois da abertura da escola, quando nos achavamos mais cheios de inquietações, uma velha propriedade, a um kilometro de Tuskegee, foi posta á venda. A casa grande, antiga residencia do proprietario no tempo da escravidão, tinha sido queimada, mas o local era excellente. E, examinando o terreno, vi que elle convinha admiravelmente á nossa empresa. O preço não era elevado: quinhentos dollars apenas. O diabo é que não havia dinheiro. Nem dinheiro nem a esperança de encontral-o. O dono da terra fazia o negocio recebendo metade á vista e metade com o prazo dum anno. Transacção optima. Desgraçadamente eu não possuia absolutamente nada.
Nessa conjectura tomei coragem e escrevi ao general J. F. B. Marshall, thesoureiro do instituto de Hampton, expondo-lhe o caso e pedindo-lhe um emprestimo de duzentos e cincoenta dollars. Alguns dias depois chegou a resposta: nella o general me dizia que não dispunha da caixa do instituto, mas que do seu proprio dinheiro me enviava a importancia pedida. Isto me trouxe enorme surpresa. Eu nunca havia possuido mais de cem dollars, e a somma que o general Marshall me emprestava era immensa para mim, a responsabilidade do pagamento vexava-me como um fardo pesado.
Fiz a compra e mudei a escola para a velha propriedade. De construcções havia ali um resto de sala de jantar, uma cozinha, uma estrebaria e um gallinheiro, tudo bastante arruinado. Trabalhámos algumas semanas em limpeza e concertos. Reformámos a estrebaria e fizemos della uma sala de classe. Depois foi preciso restaurar o gallinheiro. Quando falei nisso ao preto velho que ali vivia e me auxiliava algumas vezes, o homem arregalou o olho, espantado:
— Que está dizendo, mestre? Limpar o gallinheiro de dia, para todo o mundo ver?
Grande parte das obras foi realizada pelos alumnos, depois dos trabalhos escolares. Logo que tivemos casa, resolvi amanhar um terreno para cultivar trigo, idéa a que os meus jovens amigos torceram o nariz. Não admittiam relação entre a cultura do trigo e a sciencia, e os que tinham sido professores perguntavam se a enxada era compativel com a dignidade de pedagogos. Para afastar duvidas, habituei-os a ver-me todos os dias, findas as licções, tomar o machado e encaminhar-me ao bosque. Percebendo que eu não tinha vergonha de trabalhar, todos me acompanharam com enthusiasmo. E conseguimos preparar um campo de tamanho razoavel e semear o nosso trigo.
Emquanto nos occupavamos nisso, miss Davidson fazia todas as especies de combinações para liquidar o emprestimo. Começou organizando festas e ceias pagas. Batia a todas as portas de Tuskegee, e obtinha um bolo aqui, um frango acolá, pães e tortas que á noite se vendiam. Os negros offereceram o que puderam, mas os brancos tambem foram generosos: nesse tempo e depois não nos faltou a contribuição delles.
As ceias de miss Davidson e uma subscripção que fizemos renderam bastante. Todos contribuiram, e tocavam-me o coração as dadivas de negros velhos callejados no captiveiro: moedas de cobre, um cobertor, um feixe de cannas de assucar. Lembro-me perfeitamente da visita que me fez uma negra de setenta annos. Entrou na sala coxeando, apoiada a um bordão, coberta de farrapos, mas farrapos limpos.
— Sr. Washington, disse, passei a maior parte da vida na senzala. Sou bruta e pobre, mas adivinho o que o senhor e miss Davidson querem fazer. Dinheiro não tenho: trago-lhe esta meia duzia de ovos que guardei para a educação dos pretos.
Tenho recebido para a escola de Tuskegee muitas offertas; nenhuma, porém, me sensibilizou como essa.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.