Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 36

CAPITULO XXXVI
De como devoraram um presioneiro
e me levaram a assistir á scena

Aconteceu que algum tempo mais tarde, tendo de ser devorado um prisioneiro maracajá na taba Tycoarype, distante umas seis milhas da nossa, diversos convidados de Ubatuba partiram de canôa, a tomar parte na festa, e me levaram com elles

O costume nestes casos é, como já disse, prepararem o cauim e beberem-no antes de sacrificar-se a victima. Na noite em que iam beber á morte do maracajá approximei-me do prisioneiro e perguntei-lhe:

— Estás prompto para morrer?

— Sim, respondeu sorrindo, estou prompto para tudo. Mas nós maracajás temos melhores mussuranas...

Referia-se ás cordas com que amarram as victimas, feitas de algodão e mais grossas que um dedo; a mussurana empregada para amarrar aquelle prisioneiro era curta, menor uma seis braças do que as usuaes.

Eu tinha commigo um livro em lingua portugueza que os selvagens tomaram a um navio capturado com o auxilio dos francezes. Deixei o prisioneiro e puz-me a ler no livro, com um grande dó do desgraçado.

Logo depois tornei a procural-o e disse-lhe:

— Eu tambem sou prisioneiro e não vim para ajudar a devorar-te; foram os outros que me trouxeram.

O maracajá respondeu saber que a gente da nossa raça não comia carne humana.

Exhortei-o ainda a que não se affligisse, pois apenas lhe comiam a carne; sua alma voava para um lugar muito alegre, ao qual vão tambem as almas dos da nossa raça.

— Será verdade isso? perguntou-me o indio.

— Sim, é verdade. Lá para onde vão as almas é que reside Deus.

— Mas eu nunca vi esse Deus.

— Na outra vida has-de vel-o.

Nessa noite um vento horrivel açoitou a taba, chegando a arrancar pedaços do tecto das cabanas. Os selvagens encolerizaram-se commigo, dizendo:

Apomirim geropary ybytu naçu õmõ: aquelle diabinho é que trouxe o furacão, porque esteve hoje a olhar para o "couro da trovoada" (referiam-se ao meu livro).

Alegrei-me com isso, na esperança de que o máo tempo impedisse a festa, e fiz uma oração ao Senhor, rogando-lhe que continuasse a preservar-me

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.