PREFACIO
AMOR, na opinião respeitavel dos sabios (os sabios são os homens que “explicam” por hypotheses e “definem” por suposições) é “um sentimento estranho cuja origem se perde ma noite dos tempos”.

A “definição” é vaga. E', talvez, inutil, mas razoavel, em se tratando de coisa tão complexa e, por isso mesmo, indefinivel. Perdoemos, pois — pobres de espirito que somos — a escapatoria subtil da noite chronologica e, sem indagar as razões por que a sciencia se apavora com duendes e não se mette por essa “noite” a dentro, para trazer de lá o “xis” de muitas coisas, contentemo-nos em examinar os subsídios que ella nos traz para que hoje, neste seculo curioso e frivolo, saibamos como agiu o primeiro homem, no “momento solenne” da conquista da primeira mulher.

Os paleontólogos, crentes na infallibitidade de suas doutrinas, fallam em encadeamento de raças, evoluções da especie, cellulas primordiaes, gerações espontaneas.. Pouco depois, porém, deixam pender os braços desalemtados porque, á série sem fim de explicações dogmaticas, segue-se, ironica e fatal, a mesma obscuridade das coisas inexplicadas, que continuam sendo, pelos seculos em fóra, coisas inexplicaveis.

Emquanto Darwin, na Inglaterra, “dogmatisa”, de dedo em riste, que o homem descende de macacos, Lecomte, na França, sorrindo com desdém, affirma que “o systema de Darwin é um romance scientifico”. Hekel berra que a progenie humana tem seu “alpha” no gorila. Agassi, bocejando, resmunga que “essa theoria é contraria aos verdadeiros methodos”. Lamarck entra em scena e joga no macaco. Mas Buchner, desanimado, exclama : “Nada podemos saber sobre a essencia das coisas” Heckel resurge carregando um monstrengo, o “Pithecautropo erecto” Dubois aparece com as mazillas de Heidelberg. Gritos. Confusão. Apartes. Rugidos. Voam papeis. Tinteiros fuzilam. E Le Play, tomando o chapéu e a bengala, sáe aos resmoneios: “Não nos cabe remontar é origem das coisas : ignoramol-as”

Essa gente ignora tudo !

RA, é evidente que taes coisas devem ser explicados. De qualquer modo. Se a sciencia não nos diz a origem do homem, inhibindo-nos, assim, de saber como amaram os nossos pre-avós, agarremo-nos á Biblia que, em theorias muito mais amaveis, nos põe ao correr dos factos.

Ahi, segundo o Genesis, somos uma “creação de Deus”. Póde não ser verdade, mas é galante. Não terá, talvez, essa theoria, a “certza positiva” que queria Heckel, mas tem, inegavelmente, muita finura, e chega a ser convincente.

Que diabo! Entre “filho de mono”, da theoria evolucionista e “filho de Deus” da doutrina evangelica, é natural que o homem, sem hesitação maior, optará, vaidoso, pela segunda paternidade, embora a Sciencia nos empurre o macaco com os nomes sonóros de “simia”, “prosimia”, “platirrincos” ou "catarrhina" Parece que não ha ninguem, de senso normal e de idéas claras, que abandone a filiação divina para cahir nos braços paternos de um gorilla felpudo e mal encarado. Se tal homem houvesse, daria pessima prova de sua integridade mental ! O caso de Dayton é recente; o professor Scoppes é um exemplo.

Vê-se, assim, que o Christianismo tem resistido aos tempos e á Sciencia, não só por motivos espirituaes, mas tambem, e principalmente, por questões de Esthetica.

Apeguemo-nos, pois, á Biblia, e vejamos ahi como o primeiro homem conquistou a primeira mulher.

Perdão !

Naquelle tempo houve uma inversão nos papeis : foi a mulher que conquistou o homem.

DÃO que bocejava, entediado com a mattaria do Eden, teve desejos de possuir alguem que o ajudasse a contemplar a terra, porque elle, sózinho, se cansára com tal trabalho.

E, segundo a Biblia, "disse o Senhor Deus : Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora, que esteja como deante delle". E, da costella do vadio, manipulou Jehovah uma "ajudadora" fresquinha e lépida chamada Eva.

Ora, Eva não veio ao mundo com a alma com que Ruskin veio mais tarde. E, assim sendo, não achou a naturezą mais bella que o seu companheiro. Enamorou-se delle. E, emquanto Adão, muito compenetrado e muito grave, embasbacava para as arvores e boguiabria-se para os regatos, ella, menos contemplativa, conspirava com a serpente, para que o lôrpa achasse nella, emfim, as bellezas sublimes que, em vão, buscava na natureza.

E o interessante é que achou !

A astucia viperina de que Eva se apossára conseguiu desviar os olhos do homem do encantamento edenico e fazel-os fixar-se, extaticos, nas graças ignoradas da companheira.. A' sombra da arvore amaram-se finalmente.

Estava consummada a primeira conquista. E estava consummada, tambem, a primeira transgressão humana a leis inviolaveis e draconianas.

Resultado : o castigo. Deus apparece e, juiz inexoravel, lança sobre a mulher avalanches desordenadas de tremendas apostrophes.

Eva treme. Faz beicinho. Chóra. Promette não peccar mais. Promessa inutil, de resto, porque o peccado se apossára, irremediavelmente, de Adão. O malandro, carregando nos hombros um castigo menor, não temeu consequencias repressivas da Divindade. E desd'ahi tem sido elle o autor audacioso da conquista.

Eva, sentindo nos ouvidos, até hoje, o resôo apocalyptico da maldição divina, teme, esquiva-se, foge... Mas Adão, menos alvejado pela ira do Creador, persegue-a, tentando-a, ou com palavras langues, ou com promessas, ou com violencias.

E ella cede...

Cede porque, nesse ponto, ella está com Wilde neste preceito commodo : "0 unico meio de atalhar as tentações é cahir no peccado"

ESDE então vem a mulher atalhando as tentações do homem. E este, para conquistal-a, usa sempre, desde millenios, os mesmos modos, os mesmos processos, as mesmas palavras, as mesmas promessas. O "desde o primeiro momento em que te vi", vem da Pedra Lascada. O "por ti darei a minha vida" é plagio do que já disse Adão... que, aliás, nunca deu a vida por Eva, nem por ninguem. E, principalmente, a tentação das joias, é que, positivamente, se perde na “noite dos tempos" Entre o "homo" das cavernas e um "almofadinha" dos salões, o parallelismo é desconcertante. Aquelle, cavalgando o mamute e este conduzindo o automovel, teem para a mulher as mesmas promessas; o primeiro offerecendo um annel de osso, o segundo acenando com um collar de perolas. Fazem-se, assim, inferiores á mulher, pois a joia é o contrapeso que os equilibra com ella. Diminuem-se. Rebaixam-se. Tornam-se ridiculos, sem a joia !
OUVE na Historia, é certo, periodos indeterminados em que a mulher, lamentavelmeute, confundiu gemmas de joalheria com gemmas poeticas. Esses periodos intermittentes manifestaram-se mais profundamente nos dias nebulosos da Edade Média e tiveram seu ponto culminante ahi por volta de 1830. E' verdade que, na época mediéva, a ausencia do marido, enupenhado em desbaratar infiéis na Terra Santa, auxiliava o effeito narcotisante dos descantes lyricos do menestrél. Mas, na madrugada do seculo XIX, a poesia era um "caso sério", e um poeta decentemente choramingão, com suas rimas e seus queixumes, conseguia da mulher o que hoje difficilmente se consegue com um bangalô de luxo e um auto de seis cylindros. E, na Grecia autiga houve um periodo, tambem, em que o poeta só encontrava um homem que o desbancava : o lutador.

Mas foram excepções que confirmaram a regra.

SSIM, pois, seguindo o exemplo subtil da Sciencia, que nada explica, e certos de que a Historia é um longo romance com muitas datas, façamos, paginas adeante, fantasias gaiatas sobre o periodo nevoento da Humanidade primitiva e, sobre os tempos historicos, supposições accórdes com o que sabemos.

E, volvendo estas paginas, o leitor verá que não sabemos nada. Mas a culpa não é nossa. Não somos historiadores gravebundos. Somos, apenas, alegres observadores. Não se pretende tirar licções moraes – valha-nos Deus ! - mas apenas sorrir um pouco á custa do Amor, essa "coisa estranha" que atravessa os seculos, sempre intangivel e invariavel. Se não fossem os Codigos, e a Policia não lhe tolhesse os instinctos, o homem agiria sempre, deante da mulher, com o mesmo furór com que agia o "homo" da Edade do Ferro, o huno do tempo de Attila, ou o "gaulez" de Vercingetorix...

Porque a Civilisação faz os Codigos, altera os costumes e refrea os instinctos. Mas não os mata. Supprimam as leis e o bestialismo campeará, infrene. Dentro de cada um de nós dorme um Satyro insolente que acórda, ás vezes, na rua, no cinema ou no bonde, que entreabre um olho maroto, mas que não salta porque o policia está alli na esquina, a observal-o... Isto quando o Sałyro se manifesta isoladamente num ou noutro individuo. Ha occasiões. porém , em que essa manifestação é collectiva, em que a Besta acórda, coincidentemente, em todos os individuos. Então não ha Codigo que o refreie, nem policia que o detenha ! Assim foi em Sodoma, assim foi na Persia, assim foi em Roma... E esse povo decáe. Porque ? Falta de intelligencia ou de caracter ?

Responda Le Bon, na "Evolução dos Povos" : "Não encontramos um só povo que haja desapparecido como consequencia do rebaixamento da intelligencia".

Mas isso já é outro assumpto.

QUE se pretende aqui é mostrar, apenas, a attitude do homem deante da mulher, no instante tragi-comico da conquista, attitude que é, sempre, ridicula ou brutal, seja nas éras lacustres, nos tempos mediévos ou nos dias contemporaneos.

Nós dissemos : sempre. E o é, com effeito, mesmo nos chamados "tempos heroicos", quando a mulher ordenava ao pretendente que cingisse a sua armadura e fosse brigar com mouros ou serracenos. Para ella, é claro, o homem voltava heróe. Nós, porém, achamol-o duplamente ridiculo porque, afinal de contas, o desgraçado era capaz de deixar a pelle com o inimigo e. a amada com algum outro !

Ora, que se perca a vida, nada de estranho, porque isso é lei immutavel e intransgressivel. Vá lá, A gente não gosta, mas sempre concorda. Mas que se perca tambem a mulher amada, é muito forte ! Dahi a conclusão de que tal modo de conquistar as graças femininas não é heroismo, como parece. É' burrice ! Burrice porque, afinal, o pobre mouro não tinha nada como peixe. no caso em que o mouro morresse. E burrice dupla, no caso da morte do "heróe", porque um homem morto parece que não serve p'ra nada nesta vida. muito menos para conquistar mulheres...

Morrer "pela" mulher é bello. Mas morrer "para" a mulher, é desagradavel.

MFIM, dando um salto sobre tudo isso, vamos á conclusão.

A conclusão é que nós quizemos dar um quináu solennissimo em Linneu, quando este sueco vaidoso chama o homem de "homo sapiens", abrangendo, nesta classificação apressada, toda a especie humana racional.

Quanto á parte feminina, arrisco-me a concordar. Concordo.

Quanto ao homem, porém, discórdo.

Discordo porque... já disse lá atraz porque. E os rabiscos deste album explicarão melhor.

Explicarão ?

Não sei. Talvez não expliquem nada.

Porque a explicação aqui, como a da Sciencia, como a da Historia, é quasi uma "explicação por hypothese".

Entretanto, ninguem ainda rasgou a Historia. Ninguem ainda incinerou a Sciencia.

Razão sobeja para que não se ponha este album no lixo, sob o pretexto de que é muito falso.

Tal argumento, porém, não colhe.

Não ha falsidade onde ha alegria.

BELMONTE.


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