Durante os cinco anos que seguem (1873-78), a política é para mim secundária, quase indiferente, mas esse mesmo estado de espírito é, com relação à monarquia, um processo de consolidação, porquanto, graças a todas essas fascinações de artes e de poesia, a minha estética política, segundo a expressão de que me servi, encerrava-se, isolava-se, cristalizava-se na forma monárquica. Quem me acompanha pode estar certo de que não existe no que vou dizendo nenhuma sombra dessa admiração pela própria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome de narcisismo moral. A verdade é que, entre as molas do meu mecanismo, nenhuma teve a elasticidade e a força da que eu chamaria a mola estética. O meu juízo estético foi, em todas as épocas, ainda o é hoje, imperfeito, instintivo, oscilante, como uma agulha que girasse por todo o mostrador: para seguir algumas das suas indicações, faltou-me a resolução, a força de caráter, a coragem e o espírito de sacrifício precisos: mas, em compensação, posso dizer que, através da vida, aspirei ao Absoluto, naufragando sempre, porque na vida da inteligência, ao contrário da vida espiritual, onde, no dizer de um de seus grandes guias, não há nada que se pareça com ancoradouro, há um ancoradouro, mas esse é a religião, e a religião me pareceu, até bem pouco atrás, o remanso das mulheres e das crianças. Durante toda a minha carreira movi-me sempre por algum magnete moral; meus erros foram desvios de idealização; eu nunca teria podido confessar uma idéia, uma crença, um princípio, que não fosse para mim um ímã estético. Sendo assim, se a minha estética fosse republicana, isto é, ateniense, romana, florentina, nunca a monarquia me teria feito despregar a sua bandeira no campo da imaginação como um cavaleiro andante. Para sentir, sempre que a hasteei, a minha dignidade, a minha altivez, o meu espírito expandir-se, era preciso que o signo monárquico atuasse em mim, como uma parceria da arte que está misturada com a história e que de algum modo a diviniza.

Esse processo de idealização, pelo qual a forma monárquica se incorporou à minha consciência estética, se associou a minha idéia de arte, é o principal trabalho político que se opera em mim desde o ano de 1873 até o ano de 1879, em que tomei assento na Câmara. Nesse intervalo, eu tinha voltado à Europa e vivido um ano nos Estados Unidos. Entram neste período as influências da Inglaterra e da sociedade inglesa, da América do Norte e da carreira diplomática, além do desenvolvimento da influência literária, sob a qual voltei de Paris em 1874.

Esta última foi tão forte que, nos dois anos que passei novamente no Rio de Janeiro, não me ocupei de política; fiz, a pedido do imperador, algumas conferências na Escola da Glória sobre o que tinha visto de Miguel Ângelo, de Rafael e dos grandes pintores venezianos; fui colaborador literário do Globo e travei com José de Alencar uma polêmica, em que receio ter tratado com a presunção e a injustiça da mocidade o grande escritor – (digo receio, porque não tornei a ler aqueles folhetins e não me recordo até onde foi a minha crítica, se ela ofendeu o que há profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo); escrevi numa revista que apareceu e logo morreu no gênero da Vie Parisienne, a Epocha, e, desde os fins de 1875, entreguei-me à composição de um drama, em verso francês cuja fatura me absorveu durante mais de dois anos.

A idéia do meu drama era o problema da Alsácia-Lorena. Isso revelava bem o fundo político da minha imaginação. A política, felizmente para a inteligência que nasceu com essa diátese, tem lados ainda indefinidos que confinam com a arte, a religião e a filosofia, isto é, para falar a linguagem hegeliana, com as três esferas em que se manifesta o espírito do mundo. O meu drama com ser francês, de precedência, de motivo sentimental, elevava-se, como composição literária, acima do espírito de nacionalidade, visava à unidade da justiça, do direito, do ideal entre as nações, e baseava-se no seu entrecho sobre as afinidades e simpatias que ligaram a França intelectual moderna à Alemanha de Klopstock, Winckelmann, Jean Paul Richter, Johannes Muller, de Novalis e dos Schlegel, de Kant, Fichte, Hegel, Schelling, de Bach, Gluck, Haydn, Mozart, Schubert, Schumann e Beethoven, em uma palavra, à alma parens do século 19.

Por uma aparente anomalia, ao passo que eu era politicamente, como disse, thierista ou republicano em França, o meu drama saía todo legitimista e católico; os personagens eram tirados para mim, não por mim (a produção intelectual é involuntária), da velha rocha em que se estratificaram as grandes tradições francesas. Isso quer dizer que o inconsciente, que é em qualquer de nós o nosso único talento, o nosso único poder criador, era em mim, qualquer que fosse a causa, fosse ela o instinto, fosse a cultura, distintamente monárquico.

Uma composição literária assim caracterizada não podia deixar de ser para o meu espírito uma forte modelação política. Para não voltar a falar desse drama, cuja única qualidade é, talvez, ser inédito, contarei desde já que, depois de o fazer e refazer, copiá-lo e tornar a copiá-lo, acabei-o em 1877, em Nova York. Tenho no meu Diário desse ano a data em que, depois de uma jantar, com egoísmo inflexível de autor, infligi a leitura desses cinco atos a um pequeno comité de amigos de que fazia parte o barão Blanc, então ministro da Itália em Washington, ultimamente ministro de Estrangeiros. Ele me terá perdoado esse sacrifício, ao qual ele mesmo se ofereceu. O enigma europeu da Alsácia-Lorena, que é o fundo da tríplice aliança, lhe terá imposto na Consulta serões mais penosos e fatigantes do que aquela assentada do Buckingham Hotel.

A indiferença política em que me achava, a predisposição literária que acabo de descrever, fez-me entrar para a diplomacia em 1876. Eu tinha perdido 5 anos desde a formatura, mas nesses 5 anos não me teria ocorrido aceitar qualquer posto das mão de um ministro conservador, eu liberal. O preconceito, o extremo partidário, impediam essa apostasia. Nesse intervalo, porém, a intransigência se tinha gastado toda e agora me parecia plausível a idéia, que nunca antes me viera, de que os cargos públicos não são monopólio do partido que está no poder e devem ser confiados a quem melhor os pode desempenhar. Nem era pretensão da minha parte pensar que um lugar de adido de legação estava ao nível da minha capacidade e situação social. Era, pelo contrário, uma sensível redução de pretensões anteriores, porque, ao sair da Academia, creio que só o lugar de ministro me teria contentado. A ambição em mim foi-se progressivamente restringindo à medida que fui vivendo. Não quero dizer que se tenha deslocado do pessoal para o real, do efêmero para o duradouro, isto é, que se tenha gradualmente elevado; graças a Deus, porém, na esfera das competições que formam a luta pela vida ela nunca deu combate a ninguém.

Talvez eu tenha sentido um pouco a desdenhosa voluptuosidade do provérbio: “as glórias que vêm tarde já vêm frias”. Como a ambição foi em mim toda de imaginação e despontou pelos meus dezoito ou vinte anos, nada podia ter vindo para mim que não chegasse tarde. Do ponto de vista em que me coloco hoje, sinto bem que o pouco que me tocou, veio a tempo, no momento em que eu estava apto para o receber, e que o que não veio, deixou de vir porque não me convinha ainda, e eu teria naufragado. A impaciência da mocidade, porém, não me deixava apreciar então a generosidade do veto da Fortuna, que me excluía do que eu não estava interiormente preparado para aproveitar. Nesse tempo, eu não tinha a menor idéia de que uma grande vida pública precisa ser alumiada, como a arquitetura de Ruskin, entre outras pelas lâmpadas do sacrifício, da verdade, da imaginação, da beleza e da obediência. O talento, a forma, a eloqüência, o que tinha brilho exterior, tinha para mim maior valor do que o espírito interior de fé, continuidade e submissão, que, único, inspira e forma os verdadeiros padrões humanos.

Como quer que seja, tenho daquele cargo de adido de legação, único que exerci, a mais reconhecida e afetuosa lembrança. Nunca mais teria eu podido aceitar outro; com efeito, pouco depois entrava para a Câmara, e dava-se a minha incompatibilidade de abolicionista militante com o sistema político da escravidão, e, acabada esta, logo em seguida, surgia para mim outra abstenção forçada: a da defesa da monarquia contra os partidos. O signatário daquele decreto foi o barão de Cotegipe. A nomeação não era de certo escandalosa; em qualquer Ministério de Estrangeiros onde não existisse patronato, eu tiraria o meu lugar de adido em concurso: não tenho, porém, em mim essa medida da gratidão com que outros apuram por milímetros o favor ou o serviço que recebem; não conheço a arte de analisar, de decompor, pelas intenções secretas e circunstâncias fortuitas, o obséquio, a distinção, o benefício que nos é feito, de modo a ser o aceitante às vezes quem generosamente cativa e obriga o doador. Se o barão de Cotegipe me tivesse nomeado de vez ministro plenipotenciário, o seu crédito contra mim não teria sido maior do que foi com essa designação para o primeiro degrau da carreira diplomática.