Talvez eu pudesse resumir o processo da minha solidificação política, dizendo somente que a monarquia faz parte da atmosfera moral da Inglaterra e que a influência inglesa foi a mais forte e mais duradoura que recebi.
Quando pela primeira vez desembarquei em Folkestone, entrando na Inglaterra, eu tinha passado meses em Paris, tinha atravessado a Itália, de Gênova a Nápoles, tinha parado longamente à margem do lago de Genebra, e não me podia esquecer da suave perspectiva, à beira do Tejo, de Oeiras a Belém, cuja tonalidade doce e risonha nunca outro horizonte me repetiu. Por toda a parte eu tinha passado como viajante, demorando-me às vezes o tempo preciso para receber a impressão dos lugares e dos monumentos, o molde íntimo da paisagem e das obras de arte, mas desprendido de tudo, na inconstância contínua da imaginação. Quando avistei, porém, da janela do wagon, por uma tarde de verão, o tapete de relva que cobre o chão limpo e as colinas macias de Kent, e no dia seguinte, partindo do pequeno appartment que me tinham guardado perto de Grosvenor Gardens, fui descortinando uma a uma as fileiras de palácios do West End, atravessando os grandes parques, encontrando em St. James’ Street, Pall Mall, Piccadilly, a maré cheia da season, essa multidão aristocrática que a pé, a cavalo, em carruagem descoberta, se dirige duas vezes por dia para o rendez-vous de Hyde Park, e, dias seguidos, penetrei em outras regiões da cidade sem fim, conhecendo a população, a fisionomia inglesa toda, raça, caráter, costumes, maneiras, – posso dizer que senti minha imaginação excedida e vencida. A curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo de parar ali para sempre.
Às vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a Inglaterra, – aliás, sei bem que no começo do século quem eliminasse a Alemanha do movimento das idéias, da poesia, da arte, eliminaria o que ele teve de melhor. Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, socorrer a França. “Se madame Récamier e eu estivéssemos a nos afogar, qual de nós duas o senhor salvaria?” – perguntou uma vez madame de Staël ao seu amigo Talleyrand. “ Oh! madame,vous savez nager.” A Inglaterra, também, sabe nadar.
O gênio francês tem todos os raios do espírito humano, principalmente os raios estéticos; o gênio inglês não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos focos do espírito, que merecem o nome de franceses, em quase todos os que merecem o nome de atenienses. A Inglaterra – a associação de idéias tem sido muitas vezes feita, – é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade inamolgável, incapaz de tomar a fisionomia comum. Latinos, alemães, eslavos formarão uma só família, por muitíssimos traços comuns, antes que o inglês deixe de ser um tipo sui generis, à parte do tipo coletivo europeu. Por esse motivo, a França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; há nela mais atributos universais, maior número de faculdades criadoras, de qualidades de tronco, maior soma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do que no particularismo e no exclusivismo inglês. Em compensação, a raça inglesa parece ser mais sã, mais elástica; ter maior vigor mesmo de gênio e de criação; maior provisão de vida e de força, – ainda que a força sem a imaginação e a cultura, (que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira), possa degenerar em brutalidade e egoísmo. Estão aí as razões da minha hesitação, quando imagino um novo dilúvio universal e me pergunto que país, nos mais altos interesses da inteligência humana, mereceria o privilégio de construir a arca.
Qualquer que seja a explicação, o fato é que nunca experimentei esse prazer de viver em Paris, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, se eu vivesse entre o século 2 e o século 4, e um dia, transportado da minha aldeia transalpina ou do fundo da África Romana para o alto do palatino, visse desenrolar-se aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basílicas, circos, teatros, termas e palácios; isto é, para mim, provinciano do século 19, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. Essa impressão universal, da cidade que campeia acima de todas, senhora do mundo pelo milliarium aureum, o qual no século tinha que ser marítimo; essa impressão soberana, tive-a tão distinta como se a humanidade estivesse ainda toda centralizada. O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade, que somente Londres me deu: – não de finalidade intelectual, como dá a Atenas de Péricles, a Florença dos Médicis, a Roma de Leão X, ao homem de arte. a Versalhes do século 17 ao homem de corte, a Roma das Catacumbas ao homem de fé, a Roma antiga ao homem do passado, Niebuhr, Chateaubriand, Ampère, a pequena Weimar do fim do século 18 ao homem de letras, ou Paris, ainda neste século, até Renan e Taine, ao homem de cultura; finalidade material, se me posso expressar assim, de grandeza esmagadora e império ilimitado.
Donde procede essa impressão universal de Londres, seguida dessa sensação de finalidade, que talvez seja toda subjetiva? (Não me parece entretanto.)
O que dá à “Metrópole” esse ascendente imperial, quero crer, é a sua massa gigantesca, as suas perspectivas indefinidas, a solidez eterna, egipcíaca, das construções, as imensas praças, e os parques que se abrem de repente na embocadura das ruas, como planícies onde onde poderiam errar grandes rebanhos, à sombra de velhas árvores, à beira de lagos que merecem pertencer ao relevo natural da Terra. Este último é, para mim, o traço dominante de Londres: o estrangeiro suporia ter entrado no campo, nos subúrbios, quando está no coração da cidade; é a mesma impressão, porém, incalculavelmente mais vasta, que dava a Casa de Ouro: “O ouro e as pedras preciosas não causavam tanta maravilha, por serem já muito vulgares, e uma ostentação ordinária do luxo, como os campos e os lagos, e por uma parte as artificiais solidões e desertos, formados por bosques espessos, e por outra, as largas planícies e longas perspectivas, que dentro do seu imenso círculo se viam.” [1]
Nem pára aí o assombro. E a larga faixa do Tâmisa, com as pontes colossais que o atravessam e os monumentos assentados à sua margem desde Chelsea até a Ponte de Londres, principalmente o maciço dos edifícios de Westminster, a extensa linha das casas do Parlamento, a mais grandiosa sombra que construção civil projeta sobre a terra. É, por outro lado, a City, em roda do Banco de Inglaterra, com o Royal Exchange ao lado, e Lombard Street defronte, o mercado monetário, o verdadeiro comptoir do mundo. Aqui, nas ruas calçadas a madeira, para ainda mais amortecer o ruído, causa uma impressão singular a multidão que não perde um minuto, indiferente a si mesma, à qual nada distrairia o olhar nem arrancaria uma sílaba, e que transporta debaixo do braço, em suas carteiras, massas de capital que seriam precisos wagons para carregar em dinheiro, os cheques que vão para a Clearing-House, os bilhões esterlinos, que por ela passam, transferidos de banco a banco, importados, reexportados , pelo telégrafo para os confins do mundo donde vieram. O transeunte pára no meio de todo esse luxo e refluxo do ouro, sentindo não ouvir o tinido das libras; as oscilações contínuas, subterrâneas, dessas correntes contrárias de metal ele só conhecerá pelo seu efeito sensível: a taxa do desconto.
O que dá também a Londres o seu tom de majestade e soberania é a dignidade, o silêncio que a envolve; a calma, a tranqüilidade, o repouso, a confiança que ela respira; é o ar concentrado, recolhido, severo por vezes da sua fisionomia, e, ao mesmo tempo, a urbanidade das suas maneiras; é o retiro em que se vive no seio dela, no centro das suas ruas mais populosas; o isolamento em que se está nas suas catedrais, como no British Museum, nos seus parques, como nos seus teatros ou nos seus clubes. Esse traço de seriedade e de reserva define, a meu ver, uma raça imperial, energética e responsável, cônscia da sua força, viril e magnânima. Além disso, há uma feição notável, característica, expressão suprema de força e de domínio; não é uma cidade cosmopolita essa metrópole do mundo: é uma cidade inglesa.
Paris ao lado de Londres é uma obra de arte, imortalmente bela, ao lado de uma muralha pelásgica; é um Erechteion, em frente ao Memmonium de Tebas. De certo não há no mundo uma perspectiva arquitetural igual à que se estende do Arco do Triunfo pelos Campos Elísios até o Louvre pelo cais do Sena até apanhar Notre-Dame. Em Londres, não se tem essa impressão de arte que corre por cima da velha Paris toda como um friso grego. Para o artista que precisa inspirar-se exteriormente nas formas da edificação, viver no meio do belo realizado pelo gênio humano. Londres está para Paris como Khorsabad para Atenas. O gênio francês alegre e festivo é em tudo diferente da grande apatia inglesa, e em Paris se está defronte da obra-prima da arte francesa. Por aí não há que comparar. Para o intelectual que precise diariamente de um passeio artístico para vitalizar-se, assim como para o homem de espírito e de salão, Paris é a primeira das residências, porque é a que reúne à arte o prazer de viver em suas formas mais delicadas e elegantes. Não há nada em Londres que corresponda à aspiração francesa, hoje decadente e muito esvaecida, de fazer da vida toda uma arte, aspiração cuja obra-prima foi a polidez do século 17 e o espírito do século 18. Deixando a grande arte que tem cometido infidelidades ao gênio francês, como a de produzir fora de França Goethe, Beethoven e Mozart, as pequenas artes, – e não chamo pequena arte à obra dos grandes ebanistas, incrustadores, cinzeladores do móvel, de Riesener, Boulle, Beneman, Gouthière, – as pequenas artes são ainda exclusivamente francesas, como na Roma de Cícero eram gregas. O que há em Londres como prazer da vida, não é a arte, é o conforto; não é a regra, as medidas, o tom das maneiras, é a liberdade, a individualidade; não é a decoração, é o espaço, a solidez. Paris é um teatro em que todos, de todas as profissões, de todas as idades, de todos os países, vivem representando para a multidão de curiosos que o cercam; Londres é um convento, em forma de clube, em que os que se encontram no silêncio da grande biblioteca ou das salas de jantar não dão fé uns nos outros, e cada um se sente indiferente a todos. Em Paris, a vida é uma limitação; em Londres, uma expansão; em Paris um cativeiro, cativeiro da arte, do espírito, da etiqueta, da sociedade, cativeiro agradável como seja, mas sempre um cativeiro, exigindo uma vigilância constante do ator sobre si mesmo diante do público, que repara em tudo, que nota tudo; em Londres é a independência, a naturalidade , a despreocupação. Ceci tuera cela.
Foi, talvez este lado da vida inglesa o que me seduziu. A impressão artística é, por sua natureza, fatigante, exclusiva, e, além de certo diapasão, inconfortável, como toda vibração demasiado forte. Eu não quisera ser condenado a passar uma hora por dia diante da Jaconde, nem mesmo diante da Vênus de Milo. Para renovar a minha curta faculdade de admirar e de gozar da obra de arte, preciso de longos intervalos de repouso, para dizer a verdade, de obtusão. Londres era essa penumbra que quadra admiravelmente à minha fraca pupila estética; ali tinha à minha disposição, excusez du peu, os mármores de Fídias; não havia época artística ou literária que, querendo viver na meia hora, – de mais não me sentiria capaz, – eu não achasse representada no British Museum, na National Galery, em South Kensington, e nas outras grandes coleções nacionais. Essa proximidade bastava-me; quanto a tudo mais que faz o prazer da vida, eu preferia, como disse, a naturalidade, a calma, o descanso, as grandes perspectivas, o isolamento, o esquecimento de Londres à constante vibração de Paris, vibração cosmopolita de espírito, de prazer, de arte, através de uma atmosfera de luxo, de combate e de teatro.
Eu sei bem que há ali outra vida; que há indiferentes, solitários, reclusos na grande capital, pequenos claustros de silêncio e de meditação, onde não chegam até ao pensador e ao artista os ruídos de fora. Sem isso, Paris não produziria o grande pensamento; mas a viver isolado do movimento de Paris, antes estar separado dele pela Mancha do que pelo Sena, como o meu amigo Rio Branco, que se fechava na margem esquerda, com a sua biblioteca brasileira, as suas provas a corrigir, e os seus íntimos do Instituto.
O fato é que amei Londres acima de todas as outras cidades e lugares que percorri. Tudo em Londres me feria uma nota íntima de longa ressonância: as suas extensas campinas e os seus bosques, como o tijolo enegrecido das suas construções; o movimento atordoador de Regent Circus ou Ludgate Hill, como os recessos de Kensington Park, à sombra do arvoredo secular; os seus dias quentes de verão, quando o asfalto amolece debaixo dos pés, a folhagem se cobre de poeira, e o ar tem o calor seco das termas, como os seus deliciosos dias de maio e junho, quando as mais altas janelas se transformam em jardins suspensos, e as grandes cestas dos parques se enchem de tulipas e jacintos; as suas noites de luar, que faziam Park Lane parecer-me às vezes na névoa, com a sua rua de palácios, um trecho de Veneza, e que de Piccadilly olhando por cima da bruma de Green-Park para a iluminação em roda de Buckingham Palace, me davam sempre a ilusão do outro lado da baía do Rio, visto da esplanada da Glória, como os seus dias escuros e tristes de nevoeiro, que eu não teria então trocado pelo azul do Mediterrâneo nem pela pureza do céu da Ática; os seus traços de maior cidade do mundo, a esplêndida beleza da sua raça, e os menores detalhes de sua fisionomia própria; os mostradores das lojas de luxo de Piccadilly e New-Bond-Street, como os hansoms que paravam em frente; o Times, a Pall Mall Gazette, o Spectator, como o papel aveludado, o tipo, grande e claro, o couro liso, macio, dourado dos livros; a tranqüilidade dos clubes, o recolhimento das igrejas, o silêncio dos domingos, como a confusão, o movimento, o atropelamento em Charig-Cross e Victoria Station, da onda imensa de todas as classes e todas as cidades, que se espalha de Londres, à tarde do sábados, para as praias de mar, para as casas de campo, para as margens do Tâmisa.
Tudo isso, eu vejo bem, não era senão a minha própria mocidade... com a diferença talvez de que os outros lugares, era ela que os coloria, os animava, os assimilava a si, ao passo que em Londres ela transbordava naturalmente pelo jorrar de todas as suas fontes.
Esse sentimento paguei-o caro depois, porque foi em Londres que senti definhar mortalmente a planta humana que há em cada um de nós e sobre a qual o nosso espírito apenas pousa, como o pássaro no mais alto da ramagem: as suas raízes físicas e morais precisavam do solo em que ela se tinha formado; as suas folhas, do nosso sol. Ainda assim, foi a Londres que vim a dever, anos mais tarde, uma restituição que bem compensou aquele deperecimento. Foi em Londres, graças a uma concentração forçada, a qual não teria sido possível para mim senão em sua bruma, que a minha inteligência primeiro se fixou sobre o enigma do destino humano e das soluções até hoje achadas para ele, e, insensivelmente, na escondida igreja dos Jesuítas, em Farm Street, onde os vibrantes açoites do padre Gallway me fizeram sentir que a minha anestesia religiosa não era completa , depois no Oratório de Brompton, respirando aquela pura e diáfana atmosfera espiritual impregnada do hálito de Faber e de Newman, pude reunir no meu coração os fragmentos quebrados da cruz e com ela recompor os sentimentos esquecidos dainfância.
Notas do autor
editar- ↑ Tacito, Trad. Freire de Carvalho.