Falei de Londres como se fosse para mima cidade única, porque Londres reuniu em uma só impressão as sensações diferentes que me causaram, ou vieram a causar, Paris, Roma, Pisa, Veneza, Nova York, Boston, Washington. É preciso, para cada um desses nomes, fazer um transporte, de raça, clima, arte, passado, para se ter a impressão inglesa equivalente; mas eu pretendo ter tido em Londres a sensação: de vida suprema que se tem em Paris, de encantamento que se tem em Roma ou Florença, de morte radiante que se tem em Pisa, de poder marítimo e solidez que se tem em Veneza, de opulência, mocidade, e beleza humana que se tem em Nova York, de silêncio, distinção intelectual que se tem em Boston, de instituições civis e indestrutíveis e gigantescas que se tem em Washington diante do Capitólio. Tudo isso transportado, eu já disse, fazendo-se, por exemplo, a redução da impressão do fórum para a da torre de Londres, ou do catolicismo para o protestantismo, como quem dissesse do papa para o arcebispo de Cantuária, ou do Vaticano para Lambeth Palace.
Não pertenço ao número dos solitários, dos fortes, que bastam a si mesmos e podem viver consigo só de arte, de história, de paisagem, de pensamento. Londres com a sua grandeza, o seu império, os seus vastos horizontes interiores, as suas estátuas, o seu friso do Parthenon, os seus touros alados da Assíria, os seus Cartões de Raphael, teria sido para mim uma solidão asfixiante, se eu não tivesse encontrado no meio dela um círculo íntimo onde descansar a imaginação da acuidade, da plenitude de todas aquelas impressões. Sem um mediador plástico, eu não teria ficado ali, apesar de todas as minhas afinidades. Se eu tivesse que definir a felicidade, diria que é a admiração, o sentimento do que é belo em conta de participação com os que nos são harmônicos. O elo de união foi para mim 32, Grosvenor Gardens.
Não tenho espaço nestas páginas para colocar os retratos do dono e da dona da casa. Só direi do primeiro, nas suas roupas de doutor de Oxford, que o seu molde diplomático está para o Brasil tão irreparavelmente perdido como para Veneza o dos seus embaixadores dos séculos 16 e 17. Da baronesa de Penedo basta-me dar este traço: vivendo por mais de trinta anos com a corte e a sociedade inglesa, ela não pôs nunca no segundo plano as suas amizades ainda as mais humildes e exerceu sempre a hospitalidade da sua mansão de Londres à boa moda de nosso país, com a mais igual afabilidade para todos, o que bem mostra a altivez de raça de uma Andrada.
Entre os íntimos de Grosvenor Gardens eu vinha encontrar Rancés, marquês de Casa la Iglesia, o mais belo homem de seu tempo, que não sei se não terá fundado em expiação do seu perfil, alguma Trappa na Andaluzia; o marquês Fortunato, que representava a realeza extinta de Nápoles tão fielmente como se Francisco II ainda habitasse Capodimonte; o velho John Samuel, que nos contava histórias do velho Brasil, tendo vivido e dirigido a moda no Rio de Janeiro no tempo de Pedro I; outro velho, Saraiva, o dicionário português de Londres, verão e inverno em um casacão que lhe descia até os pés, a longa barba inculta, a pele entalhada como um retábulo espanhol, com um montão de livros debaixo do braço e em cada bolso, primeiro e último amigo de dom Miguel na Inglaterra, e que desde 1834 se consolava do desterro, da pobreza, do frio de Londres com os seus alfarrábios e os seus ouvintes.
Encontrei ali ainda mr. Clark, o famoso correspondente do Jornal do Comércio, a quem depois sucedi, a bête noire de Zacarias, um desses old gentlemen que a Inglaterra pode mandar ao estrangeiro, com certificado, como espécime nacional, porque nada do que é essencialmente inglês, perfil, caráter, tradição, maneira, preconceito, humor, orgulho insular, deixaria de estar representado neles; Pellegrini, o caricaturista de Vanity Fair, um dos artistas napolitanos que invadiram com a sua loquacidade alegre, o seu riso comunicativo, a sua mímica irresistível, a fria e reservada sociedade inglesa e tomaram conta dela.
Devo também citar mr. Youle. Este há cinco anos serve em Londres de correspondente aos seus amigos do Brasil e de Portugal; a todos hospeda, agasalha, enche de obséquios, dando-se o incômodo de ir até a Alemanha por um rapaz que o pai quer colocar em uma casa de Hamburgo; tomando o trem de Calais, mal acaba de chegar da Escócia ou de Manchester, para deixar no Sacré Coeur de Paris uma menina que não quer continuar em Rohampton; indo a Lisboa, e, se preciso for, à Madeira para acompanhar um doente que foge do inverno inglês; pronto sempre, incansável nas suas funções de provedor de brasileiros e portugueses na Inglaterra, há meio século, e além disso o oráculo na City, nos grandes bancos, quando se trata de interesses comerciais dos dois países.
Esses eram alguns dos íntimos de 1874-76, período a que me refiro, sem contar os brasileiros que ali se achavam no Brasil. Em períodos anteriores sei que o foram entre outros Musurus Pachá e o infante don Juan, pai de d. Carlos de Espanha; o dr. Gueneau de Mussy, médico fiel da família de Orleans desterrada, e o republicano Dupont, proscrito do Império, companheiro de Ledru-Rollin e de Louis Blanc, o velho barão Leonel de Rothschild, o marquês do Lavradio, modelo dessa distinção e urbanidade portuguesa que parece requintar sobre todas as outras aristocracias.
A Legação do Brasil estava naquele tempo no seu maior brilho: pertencia ao número das casas que tinham o privilégio de receber a realeza, isto é, o príncipe e a princesa de Gales. Muitos argumentos me foram apresentados na mocidade em favor da monarquia; nenhum, porém, teve para mim a força persuasiva, a evidência, destes dois, um que me foi formulado no Pincio, outro que me foi formulado no Hyde Park: a princesa Margarida de Sabóia e a princesa de Gales. A republicanos de boa fé estética – ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte – eu não quisera apresentar outros. A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei sálica em sentido contrário, isto é, em neutralizar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer política experimental, que não se basearia somente no esplêndido e pacífico jubileu da rainha Vitória e na calma relativa em tempos cruéis para a Espanha da regência de d. Maria Cristina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher. A entrada triunfal em Paris dos restos de Napoleão nunca fará um quadro como o que Tácito nos deixou do Campo de Marte, no “dia maravilhoso” em que foram depositadas no túmulo de Augusto as cinzas de Germânico traduzidas por Agripina. Se ao prestígio da posição se alia na mulher a irradiação da mocidade e da beleza, pode-se dizer que ela tem no cetro um condão de fada. A formosura das rainhas tem, quando é perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza nacional, de dependência, tremor mesmo, do Destino, e proteção e amparo para os que se acolhem ao seu manto, que forma a dupla projeção, ascendente e descendente, do povo para o trono e do trono para o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se a si mesma com o arco-íris. Além da família real de Inglaterra e da alta sociedade de Belgrávia e Mayfair que a cerca vinham à Legação príncipes estrangeiros reinantes ou destronados, como esse jovem príncipe imperial, azagaiado na Cafraria, e cuja morte, tão inglória que parece predestinada, me faz sempre lembrar a de Saldanha em Campo Osório.
Era para tal sociedade que o famoso Cortais, inspirando-se nas glórias dos grandes cozinheiros, formava o cortejo dos seus pratos arquitetônicos, verdadeiras obras-primas com que depois pretendeu, segundo me disseram, arruinar a coroa de Itália. Ouvi também que ele, seguindo ainda nisso as tradições dos mestres da arte, mostrara uma vez o seu reconhecimento servindo em um dos banquetes do Quirinal uma composição sua inscrita no cartão real – à la Penedo. Naquele dia o diplomata brasileiro há de ter dito, como Chateaubriand, quando deram o seu nome a um beefsteak: “Agora, sim, não posso mais morrer”.
Uma dessas representações de monsieur Cortais diante de testas coroadas com toda a encenação que reclamava, inclusive o grupo de belezas profissionais da alta sociedade inglesa, não podia deixar de apagar de todo no espírito de um jovem adido de Legação brasileiro o prestígio, se o conservavam, das decapitações reais da Convenção ou de Witehall.
Não me tomem por um sibarita, porque me inclinei diante de um grande chefe como diante de um artista. “Il en faudrait au moins un à l’Institut”, dizia Talleyrand. Entre o festim de Trimalcião e um menu composto por um estilista francês, há, como entre a dança das alméias e o minuete a longa distância de civilização que separa a sensualidade da elegância.
De todos os sentidos é realmente o paladar o menos intelectualizável, o que admite menor grau de ascetismo. Mesmo a taça de bouillon servida de Maintenon em Saint-Cyr ou a taça de chá preto que conforta a rainha Vitória no terraço de Osborne é sempre um gozo material; não pode sofrer a transformação por que passa até tornar-se uma pura saudade o aroma das rosas e das violetas. O idealismo de que é suscetível a cozinha artística revela-se em não ser principalmente ao sabor que ela visa: a sua ambição seria deixar ao paladar uma sensação vaga, leve, imaterial, quase apenas de um perfume, como a do buquê no vinho, à vista, porém, a impressão durável de um quadro, de uma natureza morta pintada por um mestre. Que ingrato colorido, porém, o dos seus molhos, dos seus cremes nevados, das suas gelatinas e primeurs!
Há, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, pátrio; há sentimento, tradição, culto de família, religião, no prato doméstico, na fruta ou no vinho do país. A nós, do norte do Brasil, criados em engenhos de cana, o aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosfera da infância. E assim como há poesia na cozinha de cada país, há um quid de arte na cozinha ornamental, cozinha de refinamento, que se procura elevar pelo desenho e pela forma até o motivo do banquete, – e fazer história, fazer política...
O leitor me perdoará a confissão, mas eu não devia calar em minha formação a influência mundana estrangeira, a influência aristocrática, artística, suntuária que descrevi. Assim como a notei em um banquete real em Grosvenor Gardens, poderia notá-la em um baile dos Astors em Nova York; é a mesma impressão de uma tarde de corso na Villa-Borghese, de uma manhã de drawing room em Londres, do grande dia de corridas em Ascot; a mesma do jubileu da rainha em Westminster e do jubileu de Leão XIII no Vaticano. Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti mesmo, perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.
O fato, entretanto, é este: se eu fosse somente capaz da impressão política, social, a escravidão, a oligarquia dos partidos, e minha falsa compreensão do papel do imperador e da função monárquica, ter-me-iam talvez, depois da morte de meu pai, feito queimar o meu Bagehot e alistarme sob a bandeira norte-americana. Se, por outro lado, no momento de que dependia a minha carreira, eu tivesse tido exclusivamente a impressão de arte, teria, quem sabe, igualmente inclinado em política para a República. É como explico em Portugal o republicanismo de Ramalho Ortigão, Bordallo Pinheiro, Oliveira Martins, em suas estréias: como uma revolta contra o caráter inestético da instituição, do reinado em que desabrocham; é assim que explico entre nós o republicanismo de Castro Alves, de Ferreira de Menezes, do meu Pedro de Meirelles, de Salvador de Mendonça, de Quintino Bocaiúva, de Lafayette Rodrigues Pereira, de Pedro Luís, e outros. O que me impediu de ser republicano na mocidade foi muito provavelmente o ter sido sensível à impressão aristocrática da vida.