MIRAGAIA
I

Noite escura tam formosa,
Linda noite sem luar,
As tuas estrellas de oiro
Quem n'as poderá contar!


Como as folhinhas do bosque,
Como as areias do mar…
Em tantas lettras se escreve
O que Deus mandou guardar.

Mas guai do homem que se fia
N'essas lettras decifrar!
Que a ler no livro de Deus
Nem anjo póde atinar.

Bem ledo está Dom Ramiro
Com sua dama a folgar;
Um perro bruxo judio
Foi causa de elle a roubar:

Disse-lhe que pelos astros
Bem lhe podia affirmar
Que Zahara, a flor da belleza,
Lhe devia de tocar.

E o rei veio de cilada
D'além do Doiro passar,
E furtou a linda moira,
A irman d'Alboazar.

A Milhor, que é terra sua
E está á beira do mar,
Se acolheu com sua dama,
Nem de mais sabe cuidar.

Chora a triste da rainha,
Não se póde consolar:
Deixá-la por ũa moira
Deixá-la com tal dezar!

E a noite é escura cerrada,
Noite negra sem luar,
Sosinha no seu balcão
Assim se estava a queixar:

— «Rei Ramiro, rei Ramiro,
Rei de muito mau pezar,
Em que te errei d'alma ou corpo,
Que fiz para tal penar?

«Diz que é formosa essa moira,
Que te soube infeitiçar…
Mas tu dizias-me d'antes
Que eu era bella sem par.

«Que é môça, na flor da vida…
Eu, se ainda bem sei contar,
Ha tres que tinha vinte annos,
Fi-los depois de casar.

«Diz que tem os olhos pretos,
D'estes que sabem mandar…
Os meus são azues, coitados!
Não sabem senão chorar.

«Zahara, que é flor, lhe chamam,
A mim, Gaia… Que acertar!
Eu fiquei sem alegria,
A flor quem lh'a hade voltar?

«Oh! quem podéra ser homem,
Vestir armas, cavalgar,
Que eu me fôra ja direita
A esse moiro Alboazar…»

Palavras não eram dittas,
Os olhos foi a abaixar,
Muitos vultos acercados
Ao palacio viu estar.

— «Peronella, Peronella,
Criada do meu mandar,
Que vultos serão aquelles
Que por alli vejo andar?»

Peronella não responde:
Que havia de ella fallar?
Riccas peitas de oiro e joias
A tinham feito callar.

A rainha que se erguia
Por sua gente a bradar,
Sette moiros cavalleiros
A foram logo cercar;


Soltam prégas de um turbante,
A bôcca lhe vão tapar;
Tres a tomaram nos braços…
Nem mais um ai pôde dar.

Criados da sua casa,
Nenhum veio a seu chamar;
Ou peitados ou captivos
Não n'a podem resgatar.

São sette os moiros que entraram,
Sette os estão a aguardar;
Não fallam nem uns nem outros…
E prestes, a cavalgar!

So um, que de arção a toma,
Parece aos outros mandar…
Junctos junctos, certos certos,
Galopa a bom galopar!

Toda a noite, toda a noite
Vão correndo sem cessar;
Pelos montes trote largo,
Por valles a desfilar.

Nos ribeiros — peito n'agua,
Chape, chape, a vadear!
Nas defesas dos vallados
Up! salto — e a galgar!

Vai o dia alvorecendo,
Estão á beira do mar.
Que rio é este tam fundo
Que n'elle vem desaguar?

A bôcca ja tinha livre,
Mas não acerta a fallar
A pasmada da rainha…
Cuida ainda de sonhar!

— «Rio Doiro, rio Doiro,
Rio de mau navegar,
Dize-me, essas tuas aguas
Aonde as foste buscar?

«Dir-te-hei a perola fina
Aonde eu a fui roubar.
Ribeiros correm ao rio,
O rio corre a la mar,

«Quem me roubou minha joia,
Sua joia lhe fui roubar.»
O moiro que assim cantava,
Gaia que o estava a mirar…

Quanto o mais mirares, Gaia,
Mais formoso o hasde achar.
— «Quantos barcos alli véem!»
— «Barcos que nos véem buscar.»
— «Que lindo castello aquelle!»
— «É o do moiro Alboazar.»