II

Rei Ramiro, rei Ramiro,
Rei de muito mau pezar,
Ruins fadas te fadaram,
Má sina te foram dar.

Do que tens não fazer conta,
O que não tens cubiçar..!
Zahara, a flor de teus cuidados,
Ja te não dá que pensar.

A rainha, que era tua,
Que não soubeste guardar,
Agora morto de zelos
Do moiro a queres cobrar.

Oh!.. que barcos são aquelles
Doiro acima a navegar?
A noite escura cerrada,
E elles mansinho a remar…

Cozeram-se com a terra,
Lá se foram incostar;
Entre os ramos dos salgueiros
Mal se podem divisar.

Um homem saltou em terra:
Onde irá n'aquelle andar?
Leva bordão e esclavina,
Nas contas vai a rezar.


Inda a névoa tolda o rio,
O sol ja vem a rasgar,
Pela incosta do castello
Vai um romeiro a cantar:

— «Sanctiago de Galliza,
Longe fica o vosso altar:
Peregrino que la chegue
Não sabe se hade voltar.»

Na incosta do castello
Uma fonte está a manar;
Donzella que está na fonte
Poz-se o romeiro a escutar.

A donzella está na fonte,
A jarra cheia a deitar:
— «Bemditto sejais, romeiro,
E o vosso doce cantar!

«Por éstas terras de moiros
É maravilha de azar,
Ouvir cantigas tão sanctas
Cantigas do meu criar.

«Sette padres as cantavam
Á roda de um bento altar;
Outros sette respondiam
No côro do salmear,
Entre véspera e completas;
E os sinos a repicar.

«Ai triste da minha vida
Que os não oiço ja tocar!
E as rezas d'estes moiros
Ao demo as quizera eu dar.»

— «Deus vos mantenha, donzella,
E o vosso cortez fallar:
Por éstas terras de moiros
Quem tal soubera de achar!

«Por vossa tenção, donzella,
Uma reza heide rezar
Aqui ao-pé d'esta fonte,
Que não posso mais andar.

«Oh! que fresca está a fonte,
Oh! que sêde de matar!
Que Deus vos salve, donzella,
Se aqui me deixais sentar.»

— «Sente-se o bom do romeiro,
Assente-se a descansar.
Fresca é a fonte, doce a agua,
Tem virtude singular:

«D'outra não bebe a rainha
Que aqui m'a manda buscar
Por manhanzinha bem cedo
Antes de o sol aquentar.»

— «Doce agua deve de ser,
De virtude singular:
Dae-me vós uma vez d'ella
Que me quero consolar.»

— «Beba o peregrino, beba
Por esta fonte real,
Cântara de prata virgem,
Tem mais valor que oiro tal.»

— «Dona Gaia que diria,
Que faria Alboazar
Se visse o pobre romeiro
Beber da fonte real?..»

— «Inda era noite fechada
Meu senhor foi a caçar:
Maus javardos o detenham,
Que é bem ruim de aturar!

«Minha senhora, coitada,
Essa não tem que fallar:
Quem ja teve fontes de oiro
Prata não sabe zelar.»

— «Pois um recado, donzella,
Agora lhe heisde levar;
Que o romeiro christão
Lhe deseja de fallar


«Da parte de um que é ja morto,
Que morreu por seu pezar,
Que á hora de sua morte
Este annel lhe quiz mandar.»

Tirou o annel do dedo,
E na jarra o foi deitar:
— «Quando ella beber da agua
No annel hade attentar.»

Fôra d'alli a donzella,
Ia morta por fallar…
— «Anda ca, ó Peronella,
Criada de mau mandar,

«Tua ama morrendo á sêde
E tu na fonte a folgar?»
— «Folgar não folguei, senhora,
Mas deixei-me adormentar,

«Que a moira vida que eu levo
Ja não n'a posso aturar.
Ai terra da minha terra,
Ai Milhor da beira-mar!

«Aquella sim que era vida,
Aquillo que era folgar!
E em sancto temor de Deus,
Não aqui n'este peccar!»

— «Cal-te, cal-te, Peronella,
Não me queiras attentar;
Que eu a viver entre moiros
Me não vim por meu gostar.

«Mas ja tenho perdoado
A quem lá me foi roubar,
Que antes escrava contente
Do que rainha a chorar.

«Forte christandade aquella,
Bom era aquelle reinar!
Viver so, desemparada,
Ver a moira em meu logar!..»

Lembrava-lhe a sua offensa,
Está-lhe o sangue a queimar…
Na agua fria da fonte
A sêde quiz apagar.

A fonte de prata virgem
Á bôcca foi a levar,
As riccas pedras do annel
No fundo viu a brilhar.

— «Jesus seja c'o a minha alma!
Feitiços me querem dar…
O fogo a arder dentro n'agua
E ella fria de nevar!»

— «Senhora, c'o esses feitiços
Me tomára eu imbruxar!
Foi um bemditto romeiro
Que á fonte fui incontrar,

«Que ahi deitou esse annel
Para próva singular
De um recado que vos trouxe
Com que muito heisde folgar.»

— «Venha ja esse romeiro,
Que lhe quero ja fallar:
Embaixador deve ser
Quem traz presente real.»