«Sanctiago!.. Cerra, cerra!
Sanctiago, e a matar!»
Abertas estão as portas
Da tôrre de par em par;
Nem atalaias nos muros
Nem roldas para as velar…
Os moiros despercebidos
Sentem-se logo apertar
De um tropel de leonezes
Ja portas a dentro a entrar.
Deixa a bozina Ramiro,
Mão á espada foi lançar,
E, de um só golpe fendente,
Sem mais pôr nem mais tirar,
Parte a cabeça até os peitos
Ao rei moiro Alboazar.
Ja tudo é morto ou captivo,
Ja o castello está a queimar,
Ás galés, com seu despôjo,
Se foram logo imbarcar.
— «Voga, rema! d'além Doiro
Á pressa, á pressa a passar,
Que ja oiço alli na praia
Cavallos a relinchar.
«Bandeiras são de Leão
Que lá vejo tremular:
Voga, voga, que além Doiro
É terra nossa!.. a remar!
«D'aqui é moirama cerrada
Até Coimbra e Thomar.
Voga, rema, e d'além Doiro!
D'aquem não ha que fiar.»
Á poppa vai Dom Ramiro
De sua galé real,
Leva a rainha á direita
Como quem a quer honrar:
Ella muda, os olhos baixos
Leva n'agua… sem olhar,
E como quem de outras vistas
Se quer so desaffrontar.
Ou Dom Ramiro fingia
Ou não vem n'isso a attentar:
Ja vão a meia corrente,
Sem um para o outro fallar.
Ainda arde, inda fumega
O alcaçar de Alboazar:
Gaia alevantou os olhos,
Triste se poz a mirar;
As lagrymas, uma e uma,
Lhe estavam a desfiar,
Ao longo, longo das faces
Correm… sem ella as chorar.
Olhou elrei para Gaia,
Não se pôde mais callar:
Cuidava o bom do marido
Que era remorso e pezar
Do mau termo atraiçoado
Que com elle fôra usar
Quando o intregou ao moiro
Tam so para se vingar.
Com a voz internecida
Assim lhe foi a fallar:
— «Que tens, Gaia… minha Gaia?
Ora pois! não mais chorar,
«Que o feito é feito…» — «E bem feito!»
Tornou-lhe ella a soluçar,
Rompendo agora n'uns prantos
Que parecia estalar:
«E bem feito, rei Ramiro!
Valente acção! de pasmar!
Á lei de bom cavalleiro,
Para de um rei se contar!
«Á falsa fe o mataste…
Quem a vida te quiz dar!
Á traição… que d'outro modo
Não es homem para tal.
«Mataste o mais bello moiro,
Mais gentil, mais para amar
Que entre moiros e christãos
Nunca mais não tera par.
«Perguntas-me porque chóro!..
Traidor rei, que heide eu chorar?
Que o não tenho nos meus braços,
Que a teu podêr vim parar.
«Perguntaste-me o que miro!..
Traidor rei, que heide eu mirar?
As tôrres d'aquelle alcaçar
Que ainda estão a fumegar:
«Se eu fui alli tam ditosa,
Se alli soube o que era amar,
Se alli me fica alma e vida…
Traidor rei, que heide eu mirar?»
— «Pois mira, Gaia!» E, dizendo,
Da espada foi arrancar:
«Mira, Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar.»
Foi-lhe a cabeça de um talho;
E com o pé, sem olhar,
Borda fóra impuxa o corpo…
O Doiro que os leve ao mar.
Do estranho caso inda agora
Memoria está a durar:
Gaia é o nome do castello
Que alli Gaia fez queimar;
E d'além Doiro, essa praia
Onde o barco ia a aproar
Quando bradou «Mira, Gaia!»
O rei que a vai degollar,
Ainda hoje está dizendo
Na tradição popular,
Que o nome tem — Miragaia
D'aquelle fatal mirar.