III

Por Deus vos digo, romeiro,
Que vos queirais levantar;
Minhas mãos não são reliquias,
Basta de tanto beijar!»

O romeiro não se erguia,
As mãos não lhe quer largar;
Os beijos uns sôbre os outros
Que era um nunca acabar.

Ia a infadar-se a rainha,
Ouviu-o a soluçar,
E as lagrymas, quatro e quatro,
Nas mãos sentia rollar:

— «Que tem o bom do romeiro
Que lhe dá tanto pezar?
Diga-me las suas penas
Se lh'as posso alliviar.»

— «Minhas penas não são minhas,
Que aos mortos morre o penar:
Mas a vida que eu perdi
Em vós podia incontrar.

«Minhas penas não são minhas,
Senão vossas, mal pezar!
Que uma rainha christan
Feita moira vim achar…»

— «Romeiro não tomeis coita
Por quem se não quer coitar:
Do que fui ja me não lembro,
O que sou não me é dezar.

«Deus tera dó da minha alma,
Que meu não foi o peccar;
E a esse traidor Ramiro
As contas lhe hade tomar.»

— «Pois não espereis, senhora,
Por Deus que póde tardar:
Dom Ramiro aqui o tendes,
Mandae-o ja castigar.»

Em pé está Dom Ramiro,
Ja não ha que disfarçar:
Aquellas barbas tam brancas
Cahiram de um impuxar;

O bordão e a esclavina
A terra foram parar:
Não ha ver mais gentilezas
De meneio e de trajar.

Quem viu olhos como aquelles
Com que o ella está a mirar!
Quem passou ja transes d'alma
Como ella está a passar?

Um tremor que não é mêdo,
Um surriso de infiar,
Vergonha que não é pejo,
Faces que ardem sem corar…

Tudo isso tem no semblante,
Tudo lhe está a assomar
Como ondas que vão e véem
Na travessia do mar.

A vingança é o prazer do homem;
Da mulher, é seu manjar:
Assim perdoa elle e vive,
Ella não — que era acabar.

Vingar-se foi o primeiro
E o derradeiro pensar
Que, entre tantos pensamentos,
Em Gaia estão a pullar:

Logo depois a vaidade,
O gôsto de triumphar
N'um coração que foi seu,
Que seu lhe torna a voltar.

E o rei moiro estava longe
C'os seus no monte a caçar,
Ella so n'aquella tôrre…
Prudencia e dissimular!

Abre a bôcca a um surriso
Doce e triste — de matar!
Tempéra a chamma dos olhos,
Abafa-a por mais queimar.

Poz na voz aquelle incanto
Que — ou minta ou não, é fatal.
E, com o inferno no seio,
Falla o ceo no seu fallar.

Ja os amargos queixumes
Se imbrandecem no chorar,
E em sua propria justiça
Com arte finge affrouxar.

Protesta a bôcca a verdade:
«Que não hade perdoar…»
Mas a verdade dos labios
Os olhos querem negar.

De joelhos Dom Ramiro
Alli se estava a humilhar,
Supplíca, roga, promette…
Ella parece hesitar.

Senão quando uma bozina
Se ouviu ao longe tocar…
A rainha mal podia
O seu prazer disfarçar:

— «Escondei-vos, Dom Ramiro,
Que é chegado Alboazar;
Depressa, n'este aposento…
Ou ja me vereis matar.»

Mal a chave deu tres voltas,
Na manga a foi resguardar;
Mal tirou a mão da cotta,
Que o rei moiro vinha a entrar.

— «Tristes novas, minha Gaia,
Novas de muito pezar!
Primeira vez em tres annos
Que me succede este azar!..

«Toquei a minha bozina
Ás portas, antes de entrar,
E não correste ás ameias
Para me ver e saudar!

«Muito mal fizeste, amiga,
Em tam mal me costumar:
Não sei que fazes agora
Em me querer emendar…»

No coração da rainha
Batalha se estão a dar
Os mais estranhos affectos
Que nunca se hãode incontrar:

O que foi, o que é agora,
E a ambição de reinar…
O amor que tem ao moiro,
E o gôsto de se vingar…

Venceu amor e vingança:
Deviam de triumphar,
Que era em peito de mulher
Que a batalha se foi dar.

— «Novas tenho e grandes novas,
Amigo, para vos dar:
Tomae ésta chave e abride,
Vereis se são de pezar.»

Com que ância elle abriu a porta,
Vista que foi incontrar!..
Palavras que alli disseram,
Não n'as saberei contar:

Que foi um bramir de ventos,
Um bater d'aguas no mar,
Um confundir ceo e terra,
Querer-se o mundo acabar…

Vereis por fim o rei moiro
Que sentença veio a dar:
— «Perdeste a honra, christão:
Vida, quero-t'a deixar.

«De uma vez que me roubaste
Muito bem me fiz pagar:
D'esta basta-me a vergonha
Para de ti me vingar.»

Sentia-se elrei Ramiro
Do despeito devorar;
Com ar contricto e affligido
Assim lhe foi a fallar:

— «Grandes foram meus peccados,
Poderoso Alboazar;
E taes que a mercê da vida
De ti não posso acceitar:

«Eu não vim a teu castello
Senão so por me intregar,
Para receber a morte
Que tu me quizeres dar:

«Que assim me foi ordenado
Para minha alma salvar
Por um sancto confessor
A quem me fui confessar.

«E mais me disse e mandou,
E assim t'o quero rogar,
Que, pois foi pública a offensa,
Público seja o penar:

«Que ahi n'essa praça d'armas
Tua gente faças junctar,
Ahi deante de todos
A vida quero acabar

«Tangendo n'ésta bozina,
Tangendo até rebentar;
Que digam os que isto virem,
E lhes fique de alembrar:

«Grande foi o seu peccado,
«No mundo andou a soar;
«Mas a sua penitencia
«Mais alto som veio a dar.»

Quizera-lhe o bom do moiro
Por fôrça alli perdoar:
Mas se a pêrra da rainha
Jurou de á morte o levar!…

Veis na praça do castello,
Toda moirama a ajunctar;
Em pé no meio da turba
Ramiro se foi alçar.

Tange que lhe tangerás,
Toca rijo a bom tocar;
Por muitas leguas á roda
Reboava o bozinar.

Se o ouvirão nas galés
Que deixou a beira-mar?
De-certo ouviram, que um grito
Tremendo se ouve soar…