VII.


Enganára-se Andrade; a viuva respondeu á carta do medico. A carta d’ella limitou-se a isto:

« Perdôo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha esquivança não tem nenhuma causa; é questão de temperamento. »

O sentido da carta era ainda mais laconico do que a expressão. Mendonça leu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi trabalho perdido. Uma cousa concluio elle logo; era que havia cousa occulta que arredava Margarida do casamento; depois concluio outra, era que Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lh’a escrevesse.

A primeira vez que Mendonça foi a Matacavallos achou-se embaraçado sobre a maneira por que falaria a Margarida; a viuva tirou-o do embaraço, tratando-o como se nada houvesse entre ambos. Mendonça não teve oocasião de alludir ás cartas por causa da presença de D. Antonia, mas estimou isso mesmo, porque não sabia o que lhe diria caso viessem a ficar sós os dous.

Dias depois, Mendonça escreveu segunda carta á viuva e mandou-lh’a pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem resposta. Mendonça arrependeu-se de ter abusado da ordem da moça, e resolveu, de uma vez por todas, não voltar á casa de Matacavallos. Nem tinha animo de lá apparecer, nem julgava conveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem esperança.

Ao cabo de um mez não tinha perdido uma particula sequer do sentimento que nutria pela viuva. Amava-a com o mesmissimo ardor. A ausencia, como elle pensára, augmentou-lhe o amor, como o vento ateia um incendio. Debalde lia ou buscava distrahir-se na vida agitada do Rio de Janeiro; entrou a escrever um estudo sobre a theoria do ouvido, mas a penna escapava-se-lhe para o coração, e sahio o escripto com uma mistura de nervos e sentimentos. Estava então na sua maior nomeada o romance de Pelletan sobre a vida de Jesus; Mendonça encheu o gabinete com todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou a estudar profundamente o mysterioso drama da Judéa. Fez quanto pôde para absorver o espirito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe impossivel.

Um dia de manhã appareceu-lhe em casa o filho de D. Antonia; trazião-o dous motivos: perguntar-lhe porque não ia a Matacavallos, e mostrar-lhe umas calças novas. Mendonça approvou as calças, e desculpou como pôde a ausencia, dizendo que andava atarefado. Jorge não era alma que comprehendesse a verdade escondida por baixo de uma palavra indifferente; vendo Mendonça mergulhado no meio de uma chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para ser deputado. Jorge cuidava que se estudava para ser deputado!

— Não, respondeu Mendonça.

— É verdade que a prima tambem lá anda com livros, e não creio que pretenda ir á camara.

— Ah ! sua prima?

— Não imagina; não faz outra cousa. Fecha-se no quarto, e passa os dias inteiros a ler.

Informado por Jorge, Mendonça suppôz que Margarida era nada menos que uma mulher de lettras, alguma modesta poetiza, que esquecia o amor dos homens nos braços das musas. A supposição era gratuita, e filha mesmo de um espirito cego pelo amor como o de Mendonça. Ha varias razões para ler muito sem ter commercio com as musas.

— Note que a prima nunca leu tanto; agora é que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da charuteira um magnifico havana do valor de três tostões, e offerecendo outro a Mendonça. Fume isto, continuou elle, fume e diga-me se ha ninguem como o Bernardo para ter charutos bons.

Gastos os charutos, Jorge despedio-se do medico levando a promessa de que este iria á casa de D. Antonia o mais cedo que pudesse.

No fim de quinze dias Mendonça voltou a Matacavallos.

Encontrou na sala Andrade e D. Antonia, que o recebêrão com alleluias. Mendonça parecia com effeito resurgir de um tumulo; tinha emmagrecido e empallidecido. A melancolia dava-lhe ao rosto maior expressão de abatimento. Allegou trabalhos extraordinarios, e entrou a conversar alegremente como d’antes. Mas essa alegria, como se comprehende, era toda forçada. No fim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do rosto. Durante esse tempo, Margarida não appareceu na sala; Mendonça, que até então não perguntára por ella, não sei por que razão, vendo que ella não apparecia, perguntou se estava doente. D. Antonia respondeu-lhe que Margarida estava um pouco incommodada.

O incommodo de Margarida durou uns tres dias; era uma simples dôr de cabeça, que o primo attribuio á aturada leitura.

No fim de alguns dias mais, D. Antonia foi sorprendida com uma lembrança de Margarida; a viuva queria ir viver na roça algum tempo.

— Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha.

— Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns dous mezes na roça.

D. Antonia não podia recusar nada á sobrinha; concordou em ir para a roça; e começárão os preparativos. Mendonça soube da mudança no Rocio, andando a passear de noite; disse-lh’o Jorge na occasião de ir para o Alcazar. Para o rapaz era uma fortuna aquella mudança, porque supprimia-lhe a unica obrigação que ainda tinha n’este mundo, que era a de ir jantar com a mãi.

Não achou Mendonça nada que admirar na resolução; as resoluções de Margarida começavão a parecer-lhe simplicidades.

Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antonia concebido n’estes termos:

« Temos de ir para fóra alguns mezes; espero que não nos deixe sem despedir-se de nós. A partida é sabbado; e eu quero incumbil-o de uma cousa. »

Mendonça tomou chá, e dispôz-se a dormir. Não pôde. Quiz ler; estava incapaz d’isso. Era cedo; sahio. Insensivelmente dirigio os passos para Matacavallos. A casa de D. Antonia estava fechada e silenciosa; evidentemente estavão já dormindo. Mendonça passou adiante, e parou junto da grade do jardim adjacente á casa. De fóra podia ver a janella do quarto de Margarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendonça deu mais alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendonça sentio pulsar-lhe o coração com força desconhecida. Surgio-lhe no espirito uma suspeita. Não ha coração confiante que não tenha desfallecimentos d’estes; além de que, seria errada a suspeita? Mendonça, entretanto, não tinha nenhum direito á viuva; fôra repellido categoricamente. Se havia algum dever da parte d’elle era a retirada e o silencio.

Mendonça quiz conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos famulos. O medico reflectio bem que aquillo tudo era fortuito, e fazendo um esforço afastou-se do lugar. Adiante parou e reflectio; havia um demonio que o impellia por aquella porta dentro. Mendonça voltou, e entrou com precaução.

Apenas dera alguns passos surgio-lhe em frente Miss Dollar latindo; parece que a galga sahíra de casa sem ser presentida; Mendonça amimou-a e a cadellinha parece que reconheceu o medico, porque trocou os latidos em festas. Na parede do quarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viuva que chegava á janella para ver a causa do ruido. Mendonça coseu-se como pôde com uns arbustos que ficavão junto da grade; não vendo ninguem, Margarida voltou para dentro.

Passados alguns minutos, Mendonça sahio do lugar em que se achava e dirigio-se para o lado da janella da viuva. Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim não podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moça. A cadellinha apenas chegou áquelle ponto, subio ligeira uma escada de pedra que communicava o jardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava justamente no corredor que se seguia á escada; a porta estava aberta. O rapaz imitou a cadellinha; subio os seis degráos de pedra vagarosamente; quando pôz o pé no ultimo ouvio Miss Dollar pulando no quarto e vindo latir á porta, como que avisando a Margarida de que se approximava um estranho.

Mendonça deu mais um passo. Mas n’esse momento atravessou o jardim um escravo que acudia ao latido da cadellinha; o escravo examinou o jardim, e não vendo ninguem retirou-se. Margarida foi á janella e perguntou o que era; o escravo explicou-lh’o e tranquillisou-a dizendo que não havia ninguem.

Justamente quando ella sahia da janella apparecia á porta a figura de Mendonça. Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou mais pallida do que era; depois concentrando nos olhos toda a somma de indignação que póde conter um coração, perguntou-lhe com voz tremula:

— Que quer aqui?

Foi n’esse momento, e só então, que Mendonça reconheceu toda a baixeza do seu procedimento, ou para fallar mais acertadamente, toda a hallucinação do seu espirito. Pareceu-lhe ver em Margarida a figura da sua consciencia, a exprobrar-lhe tamanha indignidade. O pobre rapaz não procurou desculpar-se; a sua resposta foi singela e verdadeira.

— Sei que commetti um acto infame, disse elle; não tinha razão para isso; estava louco; agora conheço a extensão do mal. Não lhe peço que me desculpe, D. Margarida; não mereço perdão; mereço desprezo; adeos!

— Comprehendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela força do descredito quando me não póde obrigar pelo coração. Não é de cavalheiro.

— Oh! isso…… juro-lhe que não foi tal o meu pensamento……

Margarida cahio n’uma cadeira parecendo chorar. Mendonça deu um passo para entrar, visto que até então não sahíra da porta; Margarida levantou os olhos cobertos de lagrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que sahisse.

Mendonça obedeceu; nem um nem outro dormírão n’essa noite. Ambos curvavão-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendonça, a d’elle era maior que a d’ella; e a dôr de uma não hombreava com o remorso de outro.