VIII.


No dia seguinte estava Mendonça em casa fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes occasiões, quando parou á porta d’elle um carro, apeando-se pouco depois a mãi de Jorge. A visita pareceu de máo agouro ao medico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio.

— Creio, disse D. Antonia, que a minha idade permitte visitar um homem solteiro.

Mendonça procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas não pôde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se elle tambem esperando que ella lhe explicasse a causa da visita.

— Escrevi-lhe hontem, disse ella, para que fosse ver-me hoje; preferi vir cá, receiando que por qualquer motivo não fosse a Matacavallos.

— Queria então incumbir-me?

— De cousa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra cousa indiferente; quero informal-o.

— Ah! de que?

— Sabe quem ficou hoje de cama?

— D. Margarida?

— É verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eu creio que sei a razão, accrescentou D. Antonia rindo maliciosamente para Mendonça.

— Qual será então a razão? perguntou o medico.

— Pois não percebe?

— Não.

— Margarida ama-o.

Mendonça levantou-se da cadeira como por uma mola. A declaração da tia da viuva era tão inesperada que o rapaz cuidou estar sonhando.

— Ama-o, repetio D. Antonia.

— Não creio, respondeu Mendonça depois de algum silencio; ha de ser engano seu.

— Engano! disse a velha.

D. Antonia contou a Mendonça que, curiosa por saber a causa das vigilias de Margarida, descobríra no quarto d’ella um diario de impressões, escripto por ella, á imitação de não sei quantas heroinas de romances; ahi lêra a verdade que lhe acabava de dizer.

— Mas se me ama, observou Mendonça sentindo entrar-lhe n’alma um mundo de esperanças, se me ama, por que recusa o meu coração?

— O diario explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar da riqueza d’ella; Margarida adquirio a certeza de que nunca será amada por si, mas pelos cabedaes que possue; atribue o seu amor á cobiça. Está convencido?

Mendonça começou a protestar.

— É inutil, disse D. Antonia, eu creio na sinceridade do seu affecto; já de ha muito percebi isso mesmo; mas como convencer um coração desconfiado?

— Não sei.

— Nem eu, disse a velha, mas para isso é que eu vim cá; peço-lhe que veja se póde fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe influe a crença no amor que lhe tem.

— Acho que é impossivel…

Mendonça lembrou-se de contar a D. Antonia a scena da vespera; mas arrependeu-se a tempo.

D. Antonia sahio pouco depois.

A situação de Mendonça, ao passo que se tornára mais clara, estava mais difficil que d’antes. Era possivel tentar alguma cousa antes da scena do quarto; mas depois, achava Mendonça impossivel conseguir nada.

A doença de Margarida durou dous dias, no fim dos quaes levantou-se a viuva um pouco abatida, e a primeira cousa que fez foi escrever a Mendonça pedindo-lhe que fosse lá á casa.

Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de prompto.

— Depois do que se deu ha tres dias, disse-lhe Margarida, comprehende o senhor que eu não posso ficar debaixo da acção da maledicencia…… Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitavel.

Inevitavel! amargou esta palavra ao medico, que aliás não podia recusar uma reparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e comquanto a idéa lhe sorrisse ao espirito, outra vinha dissipar esse instantaneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito.

— Estou ás suas ordens, respondeu elle.

Admirou-se D. Antonia da presteza do casamento quando Margarida lh’o annunciou n’esse mesmo dia. Suppôz que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinhão cara mais de enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a esse respeito; obteve uma resposta evasiva.

Foi modesta e reservada a ceremonia do casamento. Andrade servio de padrinho, D. Antonia de madrinha; Jorge fallou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o acto.

D. Antonia quiz que os noivos ficassem residindo em casa com ella. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe:

— Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das coisas um coração que me não pertence. Ter-me-ha por seu amigo; até amanhã.

Sahio Mendonça depois d’este speech, deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia d’elle e a impressão das suas palavras agora.

Não havia posição mais singular do que a d’estes noivos separados por uma chimera. O mais bello dia da vida tornava-se para elles um dia de desgraça e de solidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o preludio do mais completo divorcio. Menos scepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, terião poupado o desenlace sombrio da comedia do coração. Vale mais imaginar que descrever as torturas d’aquella primeira noite de noivado.

Mas aquillo que o espirito do homem não vence, ha de vencêl-o o tempo, a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com elle o coração, veio a tornar-se effectivo o casamento apenas celebrado.

Andrade ignorou estas cousas; cada vez que encontrava Mendonça chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem as idéas occorrem trimestralmente; apenas pilhava alguma de geito repetia-a até a saciedade.

Os dois esposos são ainda noivos e promettem sêl-o até a morte. Andrade metteu-se na diplomacia e promette ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge continúa a ser um bom pandego; D. Antonia prepara-se para despedir-se do mundo.

Quanto a Miss Dollar, causa indirecta de todos estes acontecimentos, sahindo um dia á rua foi pisada por um carro; falleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lagrimas pela nobre cadellinha; foi o corpo enterrado na chacara, á sombra de uma larangeira; cobre a sepultura uma lapide com esta simples inscripção:


A Miss Dollar.